José Carlos Fernandes
“Tenho lido a média de dois livros por mês na linha Boqueirão-Carlos Gomes. Nunca tive enjoos ou naúseas. Leitura é um santo remédio...” Carlos Eduardo Guariente, 39 anos, gestor de marketing, na Carta do Leitor da Gazeta do Povo
Tenho cá para mim que brasileiro não gosta muito de ler em público. Abrir um livro ou jornal no meio de estranhos, credo, equivale a arrancar a roupa na frente da Catedral. É coisa do tarado da vila. Eu mesmo já fui repreendido pelo despudor de ter debulhado um romance no meio da rua: acusaram-me de pouco-caso, de ter panca. Fiquei com dó de mim.
Mas discordo. Se víssemos mais leitores “se despindo” na XV, nós os imitaríamos. Leitura dá coceira em quem vê. O mesmo vale para ciclistas, consumidores de cenouras orgânicas e pedestres, para citar três figurinhas urbanas cujas virtudes mereciam o céu.
A suspeita de que a leitura é vista como hábito doméstico se confirmou na magnífica pesquisa feita em 2008 pelo Instituto Pró-Livro. A maioria dos entrevistados disse que lê no recesso do lar. Suspeito de que tal ponto de vista nasça de uma confusão entre o que é ler e o que é fazer lição de casa. Ou entre ler e passar os olhos numa revista antes de apagar o abajur e babar na fronha. “Perigo, perigo”: ler é um ato libidinoso. Se não rolou, procure um oculista.
Lembro-me do que fazia o crítico Wilson Martins, morto em janeiro deste ano: ele lia depois do almoço, sentado num divã, com o cobertor sobre as pernas. Ou seja, lia como quem ia deitar a pestana depois da feijoada. Se a cabeça não despencasse, afirmava, tinha o primeiro indício de que o texto era bom. Os autores de soníferos odiavam esse método e se vingavam pintando-o como o monstro do Lago Ness. Mas essa é outra história.
O fato é que nos falta infraestrutura básica para desfrutar do direito de ler: horas vadias, poltrona do Emirates Airlines, a família de férias no Nepal, o cachorro na tosa e o telefone cortado. Resta-nos ler no ônibus. Ops!
Dia desses me disseram para não fazer isso, sob risco de “descolar a retina e ficar mais cego que Ray Charles”. Desconfiei do diagnóstico, mas como não sei cantar, tenho fechado as vistas nos solavancos. E sigo em minha imoralidade. Virou uma obsessão. Sonho escrever um “manual de leitura no coletivo”. Quero fazer dele um best-seller do naipe de Quem mexeu no meu queijo? Terei seguidores no double decker bus de Londres e nas jardineiras de Assunção.
Parto do que vejo a bordo do “Água Verde-Juvevê”, onde os passageiros quase não emitem sons. Já tomei condução em tantas cidades e nunca vi nada parecido. O busão, portanto, responde às supostas circunstâncias ideais para a leitura: é mais silencioso que o mosteiro trapista de Campo do Tenente.
Seria perfeito, não fosse estarmos obrigados a quase sempre viajar em pé, sujeitos ao sacolejo involuntário das [nossas] cadeiras. Arriba. Manter um livro aberto nessas condições dançantes, só por pirraça. Mas se não fosse por ela, Appa Sherpa não teria subido o Everest 20 vezes. Sobreviver às viações Glória, Redentor e Do Carmo, idem, não é fichinha, mas dá-se um jeito.
Aconselho usufruir de uma das regras da cadeia: crie seu próprio quadradinho no coletivo. A tática tem selo de qualidade Carandiru. O povo respeita. Explico. Aquelas barras de metal que vão do forro ao piso da lotação são o amparo do leitor aflito. Abrace-as como se fossem a cintura de sua garota e se incline 20 graus, formando seu pequeno território. Depois segure o livro com as duas mãos e mande ver. Delícia.
Em tempo. Uma vez sentado, o pior lugar para ler são os bancos do fundo, onde o atrito das rodas conspira contra a ficção: é sempre um choque de realidade. Mesmo assim, mantenha a classe. Nada desperta mais curiosidade do que um leitor a bordo. Somos feitos de feições de surpresa e de risos no canto da boca. Queira Deus que nossa retina não descole. E que nem tudo seja passageiro.
Fonte: Gazeta do Povo
Fonte: Gazeta do Povo
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