quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Ajude o Projeto Baú das Letras

Ajude o Projeto Baú das Letras



O Projeto Baú das Letras visa incentivar à leitura, e para isso levará um baú contendo livros de histórias e gibis para os bairros da cidade de Taubaté-SP.

Os livros e gibis serão disponibilizados para a leitura, ademais monitores farão contação de histórias.

Maiores informações no e-mail: projeto_baudaslestras@yahoo.com.br

http://projetobaudasletras.blogspot.com/







Os Simpsons


"Eu acho que os livros têm um poder incrível de unir as pessoas"

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Leitura e qualidade do ensino

Matéria publicada em setembro/2011

Um itinerário possível para a formação de leitores

POR María Beatriz Medina

María Beatriz Medina nasceu na Venezuela. Formada em letras, autora, mediadora, pesquisadora na área de leitura y literatura infantil, professora, e consultora. Atualmente participa da Comissão Executiva do Banco del Libro, é presidente da filial venezuelana do IBBY e membro do Conselho de Sinergia, uma rede de associações da sociedade civil venezuelana.

Quando recebi o convite para refletir sobre leitura e qualidade de ensino, me posicionei a partir do ponto de vista de meu trabalho como promotora de leitura. E desse lugar me aproximei do tema, agradecendo o convite, pois tais reflexões nos permitem tomar distância e pensar sobre o que fazemos e como fazemos.

O engate inicial com essa temática começou a se delinear a partir do que já trazíamos dentro dos alforjes, como mediadores preocupados em formar um sujeito leitor independente, crítico e cidadão responsável. Isto é, o desideratum implícito – ainda que no discurso – presente em todos os espaços de promoção de leitura e, principalmente, na escola.

Parecia fácil. Comecei fazendo um balanço das possibilidades que a leitura oferece por e para a formação, mas no caminho comecei a perceber – uma vez mais – que aproximar-se da leitura e do trabalho de formar leitores é uma tarefa árdua, se avaliada pelas dimensões da busca e pelo fio da evolução de um conceito sempre em reformulação.

I. Do que estamos falando quando falamos em leitura?

Não podemos dizer que compartilhamos do mesmo conceito de leitura revisto e transformado por motivações ideológicas e pedagógicas e matizado por contribuições de concepções sociolinguísticas e socioculturais de diferentes naturezas. Hoje em dia, inclusive, se cai muitas vezes no erro de considerar que ler é simplesmente a habilidade de decifrar signos, quando o ato de ler vai muito além deste deciframento.

A leitura é acumulativa e propõe sempre um diálogo entre o leitor e os códigos verbais e não verbais, que se transforma em um espaço de elaboração e de construção de um ser social e individual. A leitura é, antes de tudo, um ato comunicacional e – por isso – uma prática social que entrelaça o texto escrito e o uso da linguagem. Quando nos aproximamos com atenção da prática leitora, ou do uso da leitura dos textos escritos, podemos percebê-la como uma prática social vital, situada na interação pessoal.

David Barton e Mary Hamilton, no texto “La literacidad entendida como práctica social”, consideram que a leitura é capaz de “dar sentido às vidas por meio das práticas cotidianas”.

Não se trata de uma referência casual, pois aqueles que como eu trabalham em projetos de promoção de leitura podem constatar que a leitura dá sentido à vida, não apenas nas práticas cotidianas, mas em situações difíceis, em que a ficção ou a metáfora se transformam em ferramentas de exceção “para ler o entorno e interpretar a realidade”. Por isso é necessário formar leitores como habitantes do mundo, parafraseando Daniel Goldin.

Mas a leitura funciona também como uma estratégia para o ensino, ainda que tenhamos que evitar o perigo de cair no reducionismo instrumental ao considerá-la apenas uma ferramenta para o desenvolvimento de competências que se identificam com a compreensão das estruturas lógicas para apreender de qualquer maneira um texto proposto.

II. Para que formar leitores?

O tema da formação de leitores está relacionado ao tipo de cidadão que queremos. Sem sombra de dúvidas, aspiramos a um leitor crítico, capaz de se posicionar no mundo, um leitor que transcenda o mero deciframento e seja capaz de abordar a leitura informativa e estética, enfrentando o texto, questionando-o, sentindo-o.

A palavra escrita e a leitura nos ajudam a criar espaços para o desenvolvimento e a transformação individual e social, uma vez que a experiência estética abarca a vastidão de nossa contraditória condição humana e estabelece pontes com a realidade na qual estamos submersos. Ela faz isto, claro está, de maneira metafórica e abstrata, para possibilitar o desenvolvimento do ser social.

III. Quem é o responsável pela formação de leitores?

O Estado, sem dúvida. Ele é o centro decisivo na hora da formulação, orientação e coordenação das políticas públicas de leitura. Formar leitores exige o compromisso do Estado e uma sólida articulação de distintas esferas da vida social: em primeiro lugar a escola, a biblioteca, as organizações sociais que trabalham com a leitura e a indústria do livro.

A formação de leitores, cabe frisar, é uma pratica ancorada em solidas premissas sobre a leitura, tais como:
  • Constitui-se num elemento inevitável na hora de educar para a vida democrática e participativa.
  • É um espaço para a formação do cidadão responsável.
  • Transforma-se na “ferramenta” do desenvolvimento de seres autônomos e críticos.
  • É uma bússola que orienta no campo da informação e leva ao conhecimento.
Somos obrigados a levar em conta as necessidades do contexto. Pois é justamente quando o contexto se faz presente, o momento em que começam a sucumbir as certezas destas e de outras premissas; isto porque a prática nos demonstra a saciedade da condição modificadora da realidade.

Como aponta Anne-Marie Chartier, ao longo do tempo a urgência de educar respondeu a um desafio social urgente (salvar sua alma, construir a República, inserir-se no mundo do trabalho). Hoje a urgência se articula em torno da formação de cidadãos.

III. Voltando ao tema que nos interessa: Leitura e qualidade do ensino.

Em uma primeira aproximação, vemos uma equação direta que deveria nos levar a fechar questões acerca do trabalho contínuo e sustentado de formação de leitores em todos os espaços que assumem esta tarefa. Obviamente, a escola não é uma exceção.

No entanto, para que essa equação se faça realidade, é necessário assumir a leitura como um elemento vital de desenvolvimento humano e promover, ao mesmo tempo, a internacionalização de uma verdadeira valorização dessa prática.

É tarefa dos docentes articular caminhos que deixem inequívoca a condição essencial da leitura para o ser humano e abram as comportas para a multiplicidade de possibilidades que oferece ao leitor como ferramenta para a comunicação e a experiência docentes.

IV. Como conseguir isso na prática?

1. Em primeiro lugar, repetirei uma máxima: criando dentro da escola espaços e tempos de leitura de uma grande variedade de textos. Isto é, propiciando em espaços leitores e bibliotecas escolares o encontro com textos de diferentes formatos, alinhados com os objetivos escolares e assumindo a leitura como condição essencial para o desenvolvimento pessoal e social, como centro das práticas educativas (no plural) e como eixo transversal.

Uma prática que implique na intenção de construir um marco do fazer educativo em afinidade com as correntes contemporâneas teóricas e práticas, por meio de um leque de opções leitoras que se transforma no ponto de encontro de inclinações e preferências temáticas.

2. Cabe-nos, portanto, reverter o lema da descolarizacão que nós, promotores de leitura, temos defendido, uma vez que boa parte das práticas escolares tinham desterrado a condição prazerosa que as primeiras aproximações com a leitura exigem, isto em nome do “trabalhoso prazer de ler”, que promove esse tropeçar com a linguagem escrita, “com as suas ambiguidades e entonações”. Hoje em dia não é mais suficiente escutar a narração do conto, é preciso “tê-lo lido, isto é olhá-lo como uma forma e transitá-lo, palmo a palmo, como quem percorre um terreno minado” – como afirma María Fernanda Palácios. A literatura é, dentre todos os textos escritos, um recurso de exceção para o desenvolvimento da leitura. María Eugenia Dubois afirma que o “Sistema educativo em geral nunca levou em conta a transcendência de ler desde uma postura estética: evocando imagens, recordações, sentimentos, emoções. A leitura se estuda na escola como algo à margem, que está fora de nós mesmos para ser carregado, levado, recordado, mas não vivido, sentido.”

E é assim porque a literatura põe à prova nossa visão ordinária das coisas, e questiona nossos preconceitos. Permite ao homem, pegando emprestadas as palavras de Stevenson “chegar a compreender que não tem sistematicamente razão, e que aqueles de quem discorda não estão sempre absolutamente equivocados.”

3. Reivindicar a literatura dentro da escola. O que implica a “criação de um itinerário de leitura por parte dos docentes que permita às novas gerações transitar para as possibilidades de compreensão do mundo e desfrutar para a vida que a literatura abre”, como diz Teresa Colomer na introdução de Andar entre livros.1

Traçar, então, um itinerário de leitura, que depurado, decantado, maduro, permite uma experiência de mudança pessoal e social na qual cada um pode se reconhecer ou não. A escola não pode se isolar do contexto social no momento de estabelecer os objetivos de ensino, seus conteúdos e a maneira de transmiti-los.

Nessa aceitação transversal da leitura é preciso sustentar, em primeiro lugar, a leitura estética que nos leva a enfrentar os desafios das estruturas mentais e abre brechas na consciência do leitor, o que pode nos distanciar da literariedade.

Com isso não se quer dizer excluir a leitura informativa, apenas que o itinerário do leitor se afirma desde uma aproximação estética para abrir as comportas da compreensão textual que deriva de outros tipos de texto que dinamizam o aprendizado.

4. Criar as condições para um verdadeiro trabalho em rede, que tem se limitado a ser apenas anunciado, como podemos comprovar na prática com frequência. Um trabalho no contexto de políticas de leitura e escrita educativas, em torno das quais se articulam as estratégias interdisciplinares que fomentam a competência discursiva na aula.

5. Formar o docente como leitor, como conhecedor das propostas textuais estéticas e informativas e envolver a família no processo. Essas ações se dirigem, principalmente, às crianças e jovens em processo de formação. É precisamente para esse destinatário que a articulação se faz necessária. A escola e a família constituem instituições básicas de qualquer formulação de planos integrais de leitura; daí o trabalho de sensibilização e capacitação de pais e professores se convertem em etapas inevitáveis em programas dessa natureza.

Enfim, estamos diante de um itinerário possível, que ganha sentido apenas a partir de uma verdadeira valorização da leitura que nos conecte com a realidade através da palavra que tudo contém e que é, principalmente, uma forma de interagir com a realidade, de reinterpretá-la. Assim, a leitura se constitui – tomando emprestada uma expressão dos pescadores da costa oriental da Venezuela – num cabo de terra.


TRADUÇÃO: DOLORES PRADES


* Texto apresentado no Encontro de Leitura e Qualidade do ensino, organizado pela OEI e a Fundação SM, em Bogotá, novembro de 2009.
1 Colomer, Teresa. Andar entre livros. São Paulo: Global, 2007.


Bibliografia citada:
Agenda de políticas públicas sobre o livro e a edição, CERLALC.
Caraballo, Darwin; Pífano Clementina; Medina, María Beatriz. Consultora: María Elena Zapata. Libros para niños y jóvenes. Documentos de trabajo de Desarrollo Social – Educación. Caracas: Corporación Andina de Fomento, 2005.
Chartier, Anne-Marie. Enseñar a leer y escribir: una aproximación histórica. Espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2004.
Larrosa, Jorge. La experiência de la lectura: espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
Palácios, Maria Fernanda. Cuentos para volar: 10 relatos venezolanos para celebrar un doble aniversario. Caracas: Producto, 2002.
Rosenblatt, Louise M. La experiencia de la lectura: espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.

A leitura subindo as vielas

Matéria publicada em Setembro 2011


Uma experiência no fomento à leitura

POR Grupo Fiandeiras 

Com mochilas nas costas, recheadas de livros de literatura, o grupo Fiandeiras – composto por sete moradores da comunidade do Real Parque que se reúnem aos finais se semana para fazer mediações de leituras e ouvir histórias de outros moradores – percorre becos e vielas das comunidades do Real Parque e Jardim Panorama, na zona sudoeste da cidade de São Paulo.

Por acreditar que as comunidade do Brasil são ricas em sua diversidade cultural, abrangendo uma multiplicidade de sotaques, ritmos, comidas e danças, o grupo também realiza saraus itinerantes em bares, valorizando a cultura e a produção artística local, como um meio de estreitar ainda mais as relações entre os moradores, possibilitando ambientes de convívio e de troca.

Assim, as Fiandeiras, com o projeto “Quando as Leituras e as Artes sobem a viela...” pretendem contribuir para a promoção de ações culturais, literárias e artísticas capazes de ampliar o universo cultural dos moradores e desmistificar a ideia que alguns possuem acerca da leitura, entendida, muitas vezes, como algo enfadonho e “chato”.


Nos quintais da favela, por Diana Salles

Realidade social, econômica, especulação imobiliária, luta pela moradia digna, resistência e reinvenção cultural, luta pela saúde... são muitas as necessidades, são muitas as lutas. Como escreveu Drummond: “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”.

Dentro de tudo que está posto na comunidade Real Parque existe uma inquietação. Um incômodo. Ao olhar e me incomodar, logo vem o desejo de interferir, não somente para mudar o outro, mas para me mudar. Quando mudo meu espaço, mudo a mim também. Interfiro instantaneamente na minha realidade.

Estamos falando de mudança em pequenas esferas, no encontro entre nós e outros de nós. Nossos pares. Só há intervenção porque desejamos interferir nesse cenário, propondo nele um movimento de liberdade e ofertando outra opção. Não como forma de levar a cultura, mas como meio de mexer nos movimentos culturais que estão postos nesses finais de semana da favela.


O lugar que não tem espaços instituídos para as crianças brincarem. Mas isso não significa que as crianças não brinquem. Elas se apropriam de qualquer pedaço de terra ocioso e invadem, disputando com as plantas dos blocos dos Cingapura, seus espaços de lazer.

As crianças aqui se reúnem facilmente, disputam seus espaços com os adultos.

Nesse mesmo lugar, ouço os moradores adultos gritando da janela: “Tira essa bola daí, não vai quebrar as minhas plantas”. Esses mesmos adultos, nos finais de semana, ocupam ruas, bares, calçadas com ações de lazer, festas, músicas e também drogadição. As crianças compartilham desses espaços, comungando suas belezas e deformações. É bonito brincar na rua, quando não se tem uma rua na qual a violência se manifesta de diferentes formas. Nas conversas sobre os fatos e acontecimentos ocorridos, na repressão policial, na tabela “inspiram fumaça de mato queimado“, de quem tem o poder e é referencia.


Também comungam as vozes que ecoam no funk machista e dominador de micropoderes, frases como: “Ela dá pra nóis, que nóis é patrão”, que reproduz uma relação capitalista e de poder.

E, quando a literatura e as artes sobem a viela, assim, timidamente, rasgam todo esse cenário e convidam para um universo simbólico. E juntos imaginamos a conversa entre um girino e uma lagarta, entramos no palácio de um rei que não sai da banheira ou somos convidados para um festa com a bruxa – bruxa! Imaginamos e criamos outros mundos. No meio de tantas vozes, as Fiandeiras gritam assim: com liberdade e literatura.


 As realidades de uma favela são múltiplas. Entre suas belezas há labutas de um povo trabalhador, entre suas guerras há suas carências, sua violência e suas necessidades. Mas há que se escavar nesse cenário toda sua poesia, comédia, drama, tragédia, ficção, amor e dor.

Há que se ler e escrever mais histórias, mostrar mais nossas histórias, há de se instaurar outros movimentos. Libertários, literários. Essa é a nossa militância.

Precisamos gritar com amor, intervenção e revolta que não suportamos mais e não concordamos com as múltiplas violências do estado presente e ausente na comunidade Real Parque.

Quando fechamos a Marginal, gritamos para fora, pedimos atenção. Quando abrimos os livros, gritamos para dentro.

Um grito de amor para os outros, da gente.



* Membros do grupo Fiandeiras
Diana de Sousa Sales –25 anos, moradora da comunidade do Real Parque há dez anos, graduada em pedagogia. Atua na educação voltada para o público jovem em comunidades periféricas, desenvolvendo formações que visavam à ampliação de repertório cultural, social e político de jovens e adultos. Trabalha como educadora com jovens da periferia do Embu das Artes.

Genivaldo dos Santos Piauí – 23 anos. É morador da comunidade Real Parque há 14 anos. Com sua câmera de filmagem registra todos os momentos das intervenções das Fiandeiras nas comunidades, produzindo todo o material áudio visual do grupo. Além disso, também trabalha na Central de Locação, empresa que loca equipamentos de cinema.

Gleice Silva Licá – 22 anos, moradora do Real Parque. Trabalha numa produtora de filmes como finalizadora de vídeos.

Jadir Alves de Jesus – 40 anos, morador do Real Parque há 25 anos. Mediador, organizador de saraus. Fotógrafo, auxilia na montagem de equipamentos. Conhecido na comunidade como Jaja, tem fortes vínculos com os moradores, e faz a parceria das Fiandeiras com outros grupos e pessoas da comunidade. Também trabalha como operador de áudio e assistente de câmera em uma produtora de filmes.

Juliana Dos Santos Piauí – 25 anos, moradora da comunidade do Real Parque e formada em pedagogia. Idealizadora do Projeto “Quando as leituras e as artes sobem a Viela”, foi ela que em 2006  cogitou as possibilidades  fazer as leituras  nas ruas, becos Vielas.  Além de  todas as demandas do grupo Fiandeiras, Juliana também atua  como mãe  Erick de 2 aninhos e  professora na educação infantil numa escola particular.

Luciana Gomes do Nascimento – 30 anos, moradora da comunidade do Real Parque e formada em pedagogia, é mediadora, formadora e produtora do sarau. Além de colocar suas energias nas intervenções das Fiandeiras também atua como educadora e assistente pedagógica no Projeto Casulo.

Márcia Silva Licá – 26 anos, moradora da comunidade do Real Parque, pedagoga. Além de fazer as mediações de leituras, organizar saraus e outras atividades no grupo Fiandeiras, também trabalha como educadora cultural na Associação Vagalume.

Fonte: Revista Emília

Biblioteca Escolar, Leitura-escrita e Web 2.0

Matéria publicada em 5/12/2011
 
Por Cássia Furtado e Lidia Oliveira especial para a biblioo

PORTO, PORTUGAL – A sociedade contemporânea, sob forte impacto das tecnologias de informação e comunicação, oferece mudanças nos processos de acesso e uso da informação por parte dos indivíduos, uma vez que têm à sua volta uma heterogeneidade de espaços a disponibilizar informação. Em decorrência dessas alterações, as instituições educacionais perderam o monopólio de detentoras do conhecimento e fontes de informação e aprendizagem.

Esse fato atinge a biblioteca escolar e de maneira mais aguda. Levado em consideração que, por estar inserida no sistema educacional, sofre as implicações das mudanças de paradigmas que atingem a educação, assim como também, o novo perfil do seu utilizador potencial, crianças e jovens, que sofreram mudanças drásticas se comparado com algumas décadas precedentes.
O conhecimento precoce das novas tecnologias

Os meios de comunicação e a forte introdução tecnológica no ambiente doméstico, possibilitam que os alunos, ao frequentarem uma instituição educacional, já carreguem um leque de informações vasto e diversificado, apesar de ainda não dominarem o código alfabético. Além do que, na maioria das situações, já utilizam com desenvoltura, as mais modernas tecnologias de comunicação e informação.

Esta realidade ratifica a responsabilidade da família em preparar as crianças e jovens para o uso benéfico das tecnologias e a escola com o encargo de converter o uso da internet em contributo para a aquisição de informação e construção do conhecimento.

A biblioteca escolar, tradicionalmente vinculada ao acesso à informação e à leitura, dentro do processo de educação formal, continua na Sociedade da Informação a ser o centro informacional da escola, que enriquece o processo ensino e aprendizagem. Mas, agora, assume novos papéis e responsabilidades, é o cerne gerador de ambientes leitores híbridos.

Considera-se como uma das competências mais necessárias dos indivíduos na sociedade atual a capacidade de leitura híbrida: “ler” diferentes conteúdos, em diversos formatos e suportes, somar a leitura de documentos impressos às informações advindas do media (?), com autonomia crítica face aos conteúdos dos mesmos e também, ter capacidade de se expressar e manifestar suas opiniões, de forma responsável, nos diversos tipos de documentos e meios de comunicação.

A leitura alfabética como competência básica

Todavia, esse conjunto de competências tem como base a leitura alfabética que continua a ser a competência básica e principal, é a forma de aquisição de informação e o ponto de partida para as habilidades decorrentes e futuras, condição fundamental para o exercício da cidadania. O indivíduo hábil nos processos cognitivos e mecânicos da leitura, de maneira plena, apresenta mais condições para dedicar-se à leitura por prazer, para ser absorvido pelo texto literário.

Considera-se que o ambiente virtual engrandece as práticas de leitura e escrita, mesmo que não sejam as práticas requeridas pelas instituições educacionais, mas estas não podem ser menosprezadas, pois a cada avanço da tecnologia a formação de leitores e suas práticas são afetadas, isto aconteceu desde a invenção da imprensa e continua a perdurar.

Com os meios de comunicação tradicionais tinha-se um desenho assimétrico da comunicação e uma divisão clara dos papéis, com a web 2.0 percebe-se alterações no processo da comunicação, mudanças de atitudes e de comportamentos dos usuários. A lógica divisória entre emissor-receptor fica cada dia mais tênue, têm-se a oportunidade de operar tanto como emissor como receptor, leitor como escritor, consumidor e produtor de informações e conteúdos.

Percebe-se então que, com a web 2.0, torna-se mais imperativo a formação de leitores e atividades inovadoras em torno da leitura a serem oferecidas pelo sistema educacional, em especial as oferecidas pela biblioteca escolar, que tem esta como uma das suas principais funções.

Dessa maneira, torna-se relevante conhecer as atividades que as crianças desenvolvem quando usam internet, pois assim as bibliotecas podem desenvolver estratégias mais eficientes no incentivo à leitura e mais próximas da realidade do seu público, buscando resgatar também o leitor que se encontra disperso, conquistando dessa maneira a formação de novos utilizadores.

Com a constante presença da internet no cotidiano das crianças, considera-se que a biblioteca deve incluir nas atividades de leitura os sítios de livros digitais, visando trabalhar com os dois formatos: livros impressos e livros digitais. Além do que, pode utilizar sítios diversos relacionados com a literatura e outras expressões culturais para o incentivo à leitura literária, fazendo a ponte entre as diversas manifestações culturais.

Leitor tradicional versus o moderno

A web 2.0 possibilita maior dinamismo à leitura, pois permite ao leitor amplo espaço de atuação: ler, recriar e criar em cima do texto. Em tempos remotos, o leitor se manifestava com escritos nas margens do livro e/ou marcação de trecho que considerava relevante, em um ato isolado e silencioso. Essa atitude perdura nos dias atuais, entretanto, afora essa manifestação solitária e resguardada, o leitor agora, pode partilhar suas experiências e emoções, através dos media sociais (?) e interagir com os outros leitores e até mesmo com o próprio autor. O leitor além de mais ativo e autônomo, tem mais oportunidade de seleção, de criação e até de reinvenção do texto nas mais variadas formas de expressão.

Dessa forma, pondera-se que esse espaço de incentivo à leitura na web social deva ser da responsabilidade da biblioteca escolar, tendo como repertório livros impressos e digitais e a formação de redes de leitores-escritores, congregando toda a comunidade escolar, aqui incluso os docentes e a família do educando, para interação e participação na temática da literatura infantil e juvenil, gerando assim uma nova forma de sociabilidade.

Cássia Furtado é professora mestre da Universidade Federal do Maranhão, doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais na Universidade de Aveiro (o Porto, Portugal) e Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão.

Lidia Oliveira professora doutora do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro/PT. Pesquisadora do Cetac.media.

Fonte: Biblioo

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Por que professor não gosta de ler?

Matéria publicada em 10/09/2011

Ensino brasileiro ainda reproduz uma pedagogia ineficaz na valorização da leitura

Aloísio Milani

Institutos de pesquisa, entidades de classe e editoras até hoje não conseguiram aferir, mas, nos bastidores, todos sabem: professor não gosta de ler. Como toda nota vermelha no boletim, essa também chega com muitas justificativas e desculpas. As explicações vão desde a formação educacional até o preço dos livros, passando pela indefectível falta de tempo.

O baixo poder aquisitivo é uma das explicações para o pequeno volume de leitura do professorado. Em estudo de 2001, divulgado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), 41% dos docentes afirmaram ler ao menos um livro por mês, 34% deles eventualmente lêem e 25% não responderam ou não costumam ler.

O problema da leitura no Brasil - denunciado ano após ano pelos índices de aprovação em exames e vestibulares - não é novo. Alunos são massacrados pelos pais e pela escola por apresentarem péssimos rendimentos em interpretação de textos, por não compreender o que lêem, por não gostar de ler.

Segundo pesquisa publicada no livro letramento no Brasil, realizada em 2001, com 2 mil pessoas de 15 a 64 anos, 69% dos brasileiros dizem que nunca vão a bibliotecas. Quando indagados sobre as pessoas que mais influenciaram o gosto pela leitura, 37% dos entrevistados creditaram o hábito a um professor, 36%, às mães. Os dados, levantados pelo Instituto Paulo Montenegro - entidade ligada ao Ibope - e pela ONG Ação Educativa, dão uma amostra da importância do educador nesse processo.

Por mais que haja empenho em se melhorar os índices brasileiros de leitura, nenhuma campanha terá sucesso se não levar em conta que os próprios professores também não cultivam o hábito de ler por prazer - o que não inclui livros técnicos e material didático, cujas leituras são tidas como obrigação da profissão.

Poucos se dão conta de que os mestres que, hoje, apregoam a importância do hábito de ler, quando alunos, não guardaram boas lembranças dos livros e também sofreram com a leitura imposta, tratada como obrigação e treinamento.

O professor repete para o aluno a mesma visão de ensino que teve em sua formação. Muitos dos atuais mestres também tiveram de fazer os ineficazes resumos de obras clássicas; vários nunca foram sensibilizados para o prazer da leitura; outro tanto não tinha condições financeiras para comprar livros. Fica o dilema: como um professor que não gosta de ler pode estimular esse prazer em seus alunos?

"Grande parte do professorado realmente lê pouco, mas não podemos sentenciá-la como culpada. Essa parcela faz parte do contexto de aprendizagem que não coloca a leitura como categoria fundamental", expõe Edmir Perrotti, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. Para ele, essa situação reflete uma falha profunda nas políticas educacionais.

Na prática, há uma desvalorização do livro como meio básico de educação desde o ensino fundamental. "É um círculo vicioso para o professor: estuda numa escola que não usa direito o livro; forma-se educador sem saber lidar com a biblioteca; e retorna para o ensino reproduzindo isso", explica Elizabeth Serra, diretora das bibliotecas públicas do Rio de Janeiro.
Por que os professores não lêem mais? Entre os especialistas, é consenso dizer que a questão da leitura está muito mais ligada às condições de acesso ao livro e à informação do que ao interesse das pessoas. Essa tese coloca que ler é um hábito mais próximo das camadas sociais mais ricas, em que a presença da cultura letrada é mais forte.

Luiz Percival Britto, presidente da Associação de Leitura do Brasil, explica que "ler para estar bem informado depende das condições de vida". Para Britto, o discurso que acusa o professor chega a ser preconceituoso e inocente: "Essa discussão é político-social; a leitura depende de uma política de Estado. Os professores são apenas agentes visíveis do processo."
No primeiro semestre deste ano, a CNTE divulgou um estudo feito em dez estados brasileiros que mostra que a maioria dos professores está na rede pública, tem uma experiência entre 12 e 18 anos de trabalho e ganha entre R$ 500 e R$ 1 mil.

É nesse contexto que se discute a política de incentivo da leitura do professor. Mas ler o quê? E para quê? Logicamente, os professores já lêem cotidianamente para seus planejamentos de aula. Antônio Augusto Gomes, do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coloca que o professor "tem pouca familiaridade de utilizar textos mais literários e acadêmicos", só que está treinado e "especializado no seu método de ensino". Mais ainda. "Existe uma tensão entre o que o professor gostaria de ler e ser como profissional e como realmente é", observa Gomes.

Literatura e trabalho - A professora Deise Capitani tem 36 anos e faz dupla jornada de trabalho em São Paulo (SP). Pela manhã, ela dá aulas no ensino fundamental na Escola Estadual Walter Belian e, à tarde, na Escola Municipal Ataulfo Alves, ambas na zona leste da cidade. Deise concluiu, no ano passado, o Programa de Educação Continuada (PEC) de professores de primeira a quarta séries, que lhe deu diploma de nível superior.
No curso - uma adequação à Lei de Diretrizes e Bases que impõe a necessidade de graduação para os docentes do ensino básico -, Deise estudou as linhas pedagógicas de vários educadores, como Paulo Freire, Piaget e Perrenoud. "Nós dávamos aula, mas não sabíamos classificar e nortear a prática do ensino de acordo com os pensadores", explica.
Deise admite a dificuldade em arranjar tempo para a leitura: "No trabalho, somos cientistas, professores e psicólogos. Nem sempre sobra tempo para ler e se atualizar." Por exemplo, nas horas de trabalho pedagógico - horários pagos para o professor se aprimorar -, muitas vezes se discutem apenas problemas pontuais de sala de aula. Não há orientação de especialistas no período.

A professora lembra que, fora as exigências do PEC, os últimos livros que leu foram duas biografias: Anjo Pornográfico, de Ruy Castro, e uma biografia de Monteiro Lobato. A leitura das obras, segundo a professora, foi importante para sua didática. "Acho que o professor deveria ser mais valorizado pelas políticas públicas. Se pudéssemos ter um salário para lecionar em apenas uma escola, a situação seria diferente", analisa.
Segundo Deise, uma maneira de se estimular a leitura dos professores é o governo e as secretarias de educação investirem na assinatura de periódicos: "As revistas Época e Veja, por exemplo, trazem informações históricas com explicações atuais. São textos prazerosos. Acho imprescindível que o professor também leia por prazer."

Salários baixos - Em sintonia com o discurso da professora está a própria presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Juçara Vieira, que reconhece a escassez de tempo para investir na leitura. "Com a internet, se multiplicaram as formas de acúmulo de conhecimento, mas os trabalhadores da educação são absorvidos pelo volume de trabalho que assumem para ganhar um salário razoável", pondera.
Um levantamento feito pela Unesco em 1998 evidenciou que o salário médio inicial dos professores da rede pública brasileira chegava a ser até seis vezes menor do que na Alemanha, na Espanha e nos Estados Unidos. Na comparação, a média brasileira era menor até que os índices do Uruguai, da Malásia e da Tailândia.

Mas há vozes dissonantes. "Não há como dizer que o professor realmente lê muito mal. Sabemos que ele é intelectualizado, apesar de, como os brasileiros em geral, não ter acesso à maioria das publicações", analisa Wander Soares, presidente da Associação Brasileira de Editores de Livros (Abrelivros). "Há uma demanda reprimida da leitura no país. Se houvesse melhora econômica, haveria mais consumo de livros", acredita Soares.

Entre os livreiros, os descontos também não são a estratégia unânime. "Os descontos são mais uma forma de propaganda do que um incentivo à leitura. Há, muitas vezes, alunos de pedagogia que passam quatro anos estudando e não chegam a ler seis livros inteiros", dispara Ednilson Xavier, da Associação Nacional das Livrarias e gerente da Livraria Cortez.
Xavier coloca que, dos dez livros da área mais vendidos pela Cortez, em julho deste ano, estão quatro do pedagogo Paulo Freire e um do educador Edgar Morin. Alguns deles chegam a custar menos de R$ 11. "Depende mais do incentivo à leitura do que dos preços. Livro precisa de valor prático."

Clarisse da Silva leciona matemática na escola estadual Sérgio Leça Teixeira, em Franca, interior de São Paulo. Graduada em matemática com licenciatura plena, a professora se candidatou a uma vaga em concurso aberto pela Secretaria Estadual de Educação para lecionar no ensino básico.

Com a bibliografia do concurso em mãos, Clarisse procura estudar e ler o máximo que pode nos meses que antecedem o teste. Mesmo tendo formação universitária, a professora diz que o estudo na faculdade "não lhe deu base suficiente para concurso". Para ela, "o nível superior não cobra muita leitura e, devido à falta de tempo, os alunos só lêem o que é cobrado". Ela ainda completa: "Há muito desinteresse dos alunos e dos professores."
Antônio Augusto Gomes, do Ceale, explica que o problema da formação do professor surgiu no recrutamento em massa de professores, desde a década de 70. "No perfil social, a maioria faz parte da primeira geração, alfabetizada na família. Isso impõe um desafio enorme para a estrutura de formação", aponta.

Clarisse avalia que "nunca existiu tanto livro na escola para os professores, mas poucas vezes se usa bem o que se ganha". Sua escola, como todas as outras 3.126 do estado de São Paulo, receberá da Secretaria da Educação um pacote do programa Biblioteca do Professor com mais 219 títulos.

Mas só comprar livros não tem resolvido a questão. Nesse ponto, o professor Edmir Perrotti lembra os resultados de uma pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que apontam que o maior problema das bibliotecas não está nos recursos financeiros e, sim, no isolamento e na falta de comunicação entre acervos e salas de aula (leia mais à pág. 44).

Segundo Elizabeth Serra, diretora das bibliotecas públicas do Rio de Janeiro, o professor precisa ser formado para descobrir a literatura e com isso mudar seu ensino.
"Eu acho que a obra de Monteiro Lobato, por exemplo, pode ser usada como projeto pedagógico. Os livros são didáticos, trabalham a diversidade e são verdadeiros clássicos." Elizabeth faz questão de reforçar: "Leitura não deve ser apenas o 'fim', mas o 'meio' da educação", acredita.

Ler é inventar problemas

Leituras Educadoras - Edição 175
Matéria publicada em 31/10/2011
 
A leitura acontece como um jogo de tetris: cada texto construído se dissolve aos poucos diante do leitor, para dar espaço a novas linhas que serão criadas

Gabriel Perissé*

A leitura é ato criativo, o que significa pensar nos diferentes modos de ler e nos mais surpreendentes objetivos por parte do leitor. Posso praticar a leitura como distração ou como tarefa vinculada a uma pesquisa acadêmica, como forma de aprender a escrever, como busca de soluções profissionais ou existenciais, ou como inspiração para conhecer a mim mesmo, ou como forma de preencher a solidão, ou como caminho de solidariedade.

Uma outra maneira de ler é a filosófica. Ler filosoficamente é ler para pensar. Não um pensar qualquer, exercício mental apenas. Filosofar é um pensar responsável, em busca de tudo aquilo que nos torne mais humanos.

A leitura com espírito filosófico não teme inventar problemas. Tudo o que não inventamos é falso, repetindo o poeta Manoel de Barros. O encontro com as verdades humanas depende de nossa abertura para o inesperado. Ir ao encontro dessas verdades é um modo radical de estudar.

Leitura como encontro

A leitura inventiva não inventa do nada. O encontro filosófico com as palavras requer o cumprimento de algumas exigências. Uma delas é deixar que o texto de um autor entre pelos olhos e ouvidos. O trecho de um texto maior será saboreado sem desgastar-se. Vejamos, por exemplo, o primeiro parágrafo de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do escritor moçambicano Mia Couto:

A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito Mariano.

Primeiramente, deixar-se impregnar pelas palavras - sonoridade, sentidos, as imagens que evocam. O parágrafo a ser contemplado possui três períodos.

No primeiro período, a imagem do umbigo. O umbigo é uma cicatriz. Nasce de um corte. Antes do corte, o parto. Associando parto e morte, Mia Couto inicia sua história, uma viagem ao centro da vida. A morte, como o umbigo, lembra uma existência anterior. Na cicatriz, a ausência de algo diz tudo, nas entrelinhas. A morte, mais do que ausência de vida, é sinal de que houve vida. Estamos diante de uma permanência disfarçada de ausência.

Ler e reler o primeiro período faz a comparação cada vez mais nítida. A morte é como o umbigo. A cicatriz é lembrança da vida. Filosofar, como diziam os antigos, é aprender a morrer, o que nos ensina a viver melhor. A lembrança de uma existência anterior ao parto, associada à de uma existência anterior à morte, insinua um pós-morte em equivalência a um pós-parto.

Aprender a morrer é, então, um aprender a nascer? Eis um problema inventado pela leitura filosófica.

O segundo período fala da morte como algo que atua e direciona os vivos. A morte vai ditando suas ordens. É um capitão - ou melhor, é capitã comandando o barco dos vivos. O narrador está a bordo do barco. Seu destino é uma ilha. A ilha, um lugar à parte, leva a pensar no além. Para além da terra firme, uma outra terra firme. Mas é preciso fazer a travessia, sob o comando da morte.

Para onde, então, a morte nos leva? Este é mais um problema inventado.

A morte volta a ser mencionada no terceiro período. O que não incomoda o espírito filosófico. Filosofar é abandonar a cidade, fazer a viagem, sair de si. O que há de habitual na cidade deve ser abandonado. O que há de conhecido e seguro na cidade deve ser substituído pela viagem. O enterro do avô é o motivo da viagem. O corpo ainda não foi enterrado. A viagem tem um destino. O viajante vai em direção ao morto, ao encontro do mistério. Se o enterro é ato sagrado, a viagem também.

Outro problema inventado - quando começarei a fazer a viagem decisiva?

Leitura como jogo

Outra exigência da leitura filosófica é entrar no jogo, e jogar até o fim. O poeta brasileiro Felipe Fortuna escreveu um poema intitulado "Tetris":

A vida aparece aos poucos:
sua construção de acaso
não decifra o dia seguinte.
Bloco sobre bloco se executa
a obra que corrói o corpo.
Nós somos pouco.

Um dos mais antigos (e até hoje um dos mais viciantes) jogos eletrônicos, o Tetris nasceu em 1984, na União Soviética. Na tela, tetraminós (blocos formados por quatro quadrados iguais) vão descendo sem parar. O objetivo é empilhá-los de modo a formar linhas horizontais perfeitas. Cada linha que se forma, desintegra-se, e as camadas superiores descem um pouco mais. Ganham-se pontos. O jogador que em dado momento já não consegue criar linhas horizontais é vencido pelos tetraminós.

A vida é como os tetraminós: fatos, pessoas, formas variadas vão surgindo sem parar. Cada vez que conseguimos completar uma obra, construir alguma coisa, essa coisa deixa de existir como desafio. E novos fatos, outras pessoas, outras formas continuam surgindo.

Mas há um momento em que não conseguimos dar conta do recado. E o jogo termina. Somos incapazes de vencer o tempo todo. O que não impede que inventemos um novo problema: seria possível jogar para sempre? Em tese, sim, seria possível. Contudo, por mais entusiasmante que seja o jogo da vida, a evidência é que "somos pouco".

Ler é jogo viciante. Cada linha horizontal que construímos como leitores dissolve-se diante de nossos olhos. E outras linhas vão sendo criadas. E somos sempre pouco. Dentro em pouco, seremos superados. Somos pouco para tantos livros, tantos autores. Somos pouco para tanta vida.

O poeta afirma que ele é pouco, e que somos pouco. A leitura filosófica admite essa verdade. No entanto, o paradoxo persiste. Ao mesmo tempo que afirmamos sermos pouco, algo em nós resiste. O poema se refere ao "dia seguinte" não decifrado. Hoje, somos limitados. Hoje, perdemos o jogo. Mas (outro problema inventado) quem disse que o dia seguinte não virá?

*Gabriel Perissé (www.perisse.com.br) é doutor em Filosofia da Educação (USP), pesquisador do NPC - Núcleo Pensamento e Criatividade

A biblioteca pessoal

Leituras educadoras | Edição 177
Matéria publicada em 20/12/2011
 
Os professores precisam de quem os ensine a ensinar: os livros

Gabriel Perissé*


A leitura variada e profunda é vital para a formação docente. A educação brasileira precisa de professores que sejam leitores constantes, com repertório amplo, com linguagem atraente/convincente, com visão de mundo fortalecida pela reflexão, com sensibilidade para não prender disciplina alguma em rotinas burocráticas, em fórmulas apáticas, em métodos repetitivos.

Que em cada escola, pública ou particular, houvesse uma excelente biblioteca destinada exclusivamente aos professores. Não só com os livros de pedagogia, essenciais, e os documentos oficiais, os referenciais, as diretrizes nacionais e internacionais, e a legislação, os parâmetros, os projetos, as estatísticas. Mas também com abarrotadas estantes de história, filosofia, antropologia, literatura, arte em geral, sociologia, ciência, tecnologia e outros tantos temas e "logias" necessários para a vida intelectual.

E que na sala dos professores tivéssemos a vontade natural de superarmos as questões epidérmicas e cosméticas. Que tivéssemos tempo e espaço, estímulo e ânimo para conversar sobre temas de fundo, não apenas os (interessantes, sem dúvida) assuntos propostos ou impostos pelas revistas semanais (algumas caras, outras baratas), pelos telejornais que nos globalizam, ou pelas urgentes pautas sindicais. Podemos sempre mais!

A biblioteca professoral

Além da biblioteca coletiva da escola (iniciativa que demonstraria os verdadeiros méritos de uma prefeitura, de uma secretaria de educação, de uma diretoria), é igualmente vital para os professores terem sua biblioteca particular, com seus clássicos pessoais, com seus livros de consulta, para estudo cotidiano e também para momentos de entretenimento cultural.

De novo, não seria biblioteca restrita aos temas, às abordagens, aos autores que todos conhecemos como importantes na formação docente. Que estejam presentes Paulo Freire e John Dewey, Freinet e Piaget, Claparède e Lourenço Filho, Wallon e Morin, Anísio Teixeira e Montessori, Makarenko e Comênio, entre tantos outros. Mas que outros tantos autores, mesmo não rotulados de educadores, tenham o seu lugar assegurado na fila das nossas futuras leituras.

Autores brasileiros e estrangeiros, contemporâneos ou de muitos séculos atrás, mais racionais ou mais emocionais, materialistas ou espiritualistas, prolixos ou concisos, contundentes ou conciliadores... É praticamente infinito o espaço das escolhas. E é também o momento de saber se sabemos escolher. Montar uma biblioteca exige interesse, pesquisa, curiosidade. E a coragem de optar.

Os clássicos (claro!) são sempre referência incontestável. Devemos conhecer Dante, Homero, Balzac, Cervantes, Shakespeare, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, nem que seja para dizer que preferimos outros clássicos. Entra aqui a capacidade de escolher nossos clássicos pessoais, como dizia Italo Calvino. E esses clássicos podem ser nomes menos conhecidos, menos elogiados, desprezados, ou até mesmo odiados pela crítica dominante. Mas nada disso é importante. Os clássicos pessoais serão legitimados pela pessoa que os classifica como algo que valha a pena ler, reler e recomendar!

As consequências práticas e didáticas são óbvias. Um professor que tenha escolhido os seus clássicos pessoais, e que os frequente com interesse, torna-se, perante seus colegas e dirigentes, perante seus alunos, na classe, na hora da aula, um professor com personalidade intelectual, com perfil definido. Não é mero repetidor de conteúdos livrescos ou apostilescos, não é simples educador de giz e quadro-negro, de retroprojetor, flip chart, lousa eletrônica, power-point, laptop ou tablet. Sua visão e sua voz estão fundamentadas numa tecnologia antiga e insuperável - na leitura livre. Livre das modas e muletas de todo gênero!

De livro em livro

Não se cria uma biblioteca em um dia, em um ano. Biblioteca é projeto para a vida inteira. E requer amor aos livros. É uma contradição ser professor de pouca leitura. Se uma casa sem livros é uma casa sem janelas (frase atribuída a vários pensadores), uma existência de professor sem leitura é vida fechada para o aprendizado.

A biblioteca pessoal é construída livro a livro, uma aquisição hoje, outra amanhã, é feita de visitas à livraria, ao sebo. Trata-se de investimento pessoal. Não é despesa, ainda que pese no bolso. Mais pesada, porém, é uma vida sem a leveza das ideias, sem a beleza das imagens, sem a força das metáforas e dos argumentos que um livro traz.

Não pode haver maior incoerência que um professor não ler ou, até, não gostar de ler. Mas também sabemos que essa incoerência se explica pelas limitações da profissão docente no Brasil. Quando reivindicamos melhores condições de trabalho, incluímos (imagino eu) possibilidade para comprar livros e tempo livre para ler.

A poeta Adélia Prado diz... "escrevo um livro para ver se me livro". Podemos parafrasear: "eu compro um livro para ver se me livro". Para ver se nos livramos da superficialidade, dos preconceitos, dos lugares-comuns, de tudo aquilo que não condiz com a arte de ensinar.

De livro em livro a biblioteca preenche a alma. Não se trata de estabelecer quantidades para o acervo, mas serve aqui de inspiração lembrar as metáforas usadas por leitores apaixonados. Os livros são chamados de amigos constantes, sábios conselheiros, de flores perfumadas, de remédios eficazes, de alimento saudável, de amantes, de orientadores, de asas, de navios e, de modo especial, são vistos como professores.

Nós, professores, precisamos de professores que nos ensinem a ensinar. Os livros têm essa capacidade. Um poema nos ensina a ver para além das coisas opacas. Um romance nos ensina a redimensionar os dramas pessoais. Um ensaio filosófico nos torna mais reflexivos, mais ponderados. Uma biografia nos leva a compreender o valor inestimável de uma única vida. Um livro de história nos dá acesso à memória humana. Enfim, não tem fim a capacidade de um livro nos ensinar.

De livro em livro, construímos uma biblioteca. Que reflete nossos gostos, preferências e, sobretudo, aponta para o nosso futuro. Na biblioteca pessoal de um professor, vemos o futuro desse profissional.

E o futuro da educação nacional.

*Gabriel Perissé (www.perisse.com.br) é doutor em Filosofia da Educação (USP), pesquisador do NPC - Núcleo Pensamento e Criatividade