quinta-feira, 17 de junho de 2010

Ler é uma terapia

LUCIANA ARAGÃO: "a literatura funciona como uma terapia,
porque você abstrai o pensamento" NEYSLA ROCHA

Especialistas podem até não usar o termo, mas para quem adora livros, a leitura é uma terapia, sim. No silêncio e na solidão, os enredos ajudam a refletir sobre a vida real.

Ela vivia num tédio só. Morava em uma cidade pequena, era casada, mas não realizada. De tão insatisfeita com a vida que levava, acabou por trair (várias vezes) o marido, um médico dedicado e devoto ao casamento, mas que ela achava ´sem graça´. Alguma semelhança com pessoas conhecidas ou, quem sabe, com você mesmo?

O ela do início do parágrafo é Emma Bovary, personagem clássico do romance Madame Bovary (1857), do escritor francês Gustave Flaubert. Alguma identificação? Lembranças vieram à mente ou, até mesmo, sentiu-se instigado a refletir e discutir sobre as entranhas das relações humanas?

Tudo bem, isso é comum. Essas sensações são condizentes com o universo da Literatura. As obras literárias, como defende a psicanalista Eliane Diógenes, amparada por preceitos do pensador francês Roland Barthes, possuem exatamente esse papel: provocar. Nas palavras de Eliane, mestre em Psicanálise pela PUC-SP e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), ´o leitor se depara com o enigma da existência humana´.

Segundo a psicanalista, na literatura fica exposta a ´vida trágica´ que possuímos e, às vezes, tentamos burlar, substituindo pela idéia de que ´tudo está bem´ . Essa tragédia escrita, conforme ressaltou, aparece não como sinônimo de decadência, mas como reflexo da instabilidade, da escassez, do desequilíbrio, enfim, do ´descompasso das relações´, presentes no dia-a-dia de qualquer um.

Psiquismo

No caso, como detecta, ao se envolver com a narrativa, o leitor é provocado, pois entra em contato com sentimentos intensos como ódio, saudade, traição, amor... ´A literatura sublinha sem nenhum pudor, nem constrangimento, o mundo envergonhado que fala desses assuntos. Na palavra, tudo pode´, afirma.

Dessa forma, a psicanalista explica que os romances, poesias, contos, entre outros, acendem e despertam no psiquismo sentimentos, imagens, fantasias e marcas, presentes no inconsciente. ´Vai abrindo gavetas. Cada leitor depara-se com facetas, aspectos, paradoxos, com os quais se identifica, mas não assume como seu, porque é o outro (o personagem)´, estabelece.
LEVI TEIXEIRA: "a escrita literária ultrapassa a palavra.
 Aumenta a percepção do mundo" FRANCISCO VIANA
Sobre essa identificação do leitor com a obra e com os personagens, Eliane Diógenes atesta que, como teoriza Barthes, acontece no momento solitário e silencioso da leitura ´a morte do autor´. De fato, como destacou, ´não importa o que o autor quis dizer, porque o sentido é refeito pelo leitor, que faz o com o texto o que quiser´.

Sendo assim, a professora ainda esclarece que o intelectual francês defende a premissa de que a ´literatura não ensina, não é para confortar, para dar segurança. Não é para entender, nem compreender, já que não há nenhum ensinamento para repassar, mas, sim, fragmentos de emoção´. Aliás, são esses trechos, frases e passagens que rodopiam nas nossas mentes, quando nos percebemos em situações que aquela história, por vezes lidas anos trás, retomam, subitamente, ao nosso imaginário.

Não raro, os trechos, mesmo antes de serem deixados de lado, ajudam a entender e a refletir sobre angústias, tristezas e circunstâncias vivenciadas. ´Nos livros têm frases que parecem que foram tiradas da sua vida´, observa Porcina Costa, 63 anos. Para a aposentada, o legado deixado por Machado de Assis, Jorge Amado, Érico Veríssimo e Rachel de Queiroz ´ajuda a encontrar soluções para os problemas´, diz Porcina, afirmando que, em geral, faz comparações e descobertas sobre si mesma ao ler.

Ou, às vezes, a melhor solução para lidar com os sentimentos é ´ tirar a cabeça de você mesmo´, como prefere a universitária Luciana Aragão, 22 anos. Na opinião dela, ´a literatura funciona como uma terapia, porque você abstrai o pensamento. Quando estou triste vou ler, pois, dependendo do que estava lendo, influencia em mim´, comenta a estudante identificando que seria como se a ação ´purificasse o espírito e apaziguasse a alma´, resume.

Inclusive, para satisfazer o que ele define como ´uma exigência superior do meu espírito´, é o que leva o aposentado A.F., 74 anos, a ler, na maior parte do dia. Segundo o leitor, os livros lhes dão sensações e possuem o papel fundamental da companhia. ´Ler me dá prazer, tranqüilidade. Fico anestesiado, é uma diversão nobre e compensadora. É a maneira de ter uma companhia fiel e discreta´, revela o aposentado que identifica ser a leitura ´uma terapia porque não há preocupação que resista à meia hora de leitura´.

Por outro lado, o universitário Levi Peixeira, 20 anos, aproveita o relaxamento, a concentração e a descoberta proporcionados pela leitura para unir as palavras escritas às melodias. Segundo ele, a intenção é usar ´a poesia declamada performática´. Afinal, unir essas artes mostra que ´a escrita literária ultrapassa a palavra. Aumenta a percepção de mundo´ e, tudo isso, pode, sim, ser musicado.

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