terça-feira, 5 de julho de 2011

Ler, verbo transitivo

Publicada em: 18/05/2007

Magda Soares

Que a questão da leitura no Brasil – “brasileiros lêem pouco”, “brasileiros lêem mal” – esteja ultrapassando as paredes da escola, saindo dos limites das discussões de educadores, e comece a aflorar na mídia e a tornar-se preocupação de outros profissionais, de políticos, de pais, é um bom sinal (tanto quanto possa ser “bom” um sinal de que a situação está chegando ao limite do tolerável e não pode mais ser ignorada). Entretanto, bem à moda brasileira, não temos ido além da denúncia e da busca de “culpados” (os pais, que também não lêem? os professores, que não ensinam ou ensinam “errado”? a escola, que não tem bibliotecas? o governo, que não tem uma política de leitura? etc. etc.)

O perigo dessa síndrome denunciatória e dessa caça às bruxas é que acabe por ficar esquecido o mais importante: a caracterização e a interpretação do problema, sem as quais é impossível encontrar suas causas e, conseqüentemente, suas soluções (e até seus “culpados”, se for mesmo importante caçar as bruxas...).

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer uma faceta fundamental do problema: quando se diz que o brasileiro lê pouco ou lê mal, o que se está entendendo por ler? Lê pouco o quê? lê mal o quê? Ler só é verbo intransitivo, sem complemento, enquanto seu referente forem as habilidades básicas de decodificar palavras e frases: diz-se de alguém que sabe ler, assim, sem complemento, ou que não sabe ler, quando se quer com isso dizer que esse alguém é alfabetizado ou é analfabeto. Para além desse nível básico, ler como prática social de interação com material escrito torna-se verbo transitivo, exige complemento: o alfabetizado, o letrado lê (ou não lê) o quê? lê mal (ou lê bem) o quê? o jornal? o best-seller? Sabrina? Machado de Assis? Drummond? a revista Capricho? Playboy? Bravo? Caros Amigos? Veja, Isto é, Época? a conta de luz, de água, de telefone? a bula do remédio? o verbete do dicionário, da enciclopédia?

Ler, verbo transitivo, é um processo complexo e multifacetado: depende da natureza, do tipo, do gênero daquilo que se lê, e depende do objetivo que se tem ao ler. Não se lê um editorial de jornal da mesma maneira e com os mesmos objetivos com que se lê a crônica de Verissímo no mesmo jornal; não se lê um poema de Drummond da mesma maneira e com os mesmos objetivos com que se lê a entrevista do político; não se lê um manual de instalação de um aparelho de som da mesma forma e com os mesmos objetivos com que se lê o último livro de Saramago. Só para dar alguns poucos exemplos.

O que se conclui é que é preciso dar complemento ao verbo ler quando se fala de ler muito ou pouco, ler bem ou mal; como também é preciso dar complemento ao verbo ler quando se avalia a leitura (SAEB, ENEM, Provão, Pisa...) e quando se pretende desenvolver práticas sociais de leitura (responsabilidade sobretudo da escola e dos professores). Neste último caso – no ensino – não se trata de escolher este ou aquele complemento para o verbo, isto é, não podem a escola nem os professores optar por desenvolver habilidades de leitura de apenas um determinado tipo ou gênero de texto: a escola deve formar o leitor da ampla variedade de textos que circulam nas sociedades grafocêntricas em que vivemos, e são diferentes processos de leitura e, portanto, diferentes modos de ensinar: é preciso desenvolver habilidades e atitudes de leitura de poemas, de prosa literária, de textos informativos, de textos jornalísticos, de manuais de instrução, de textos publicitários, etc. etc.

Ao contrário, no caso da avaliação de habilidades de leitura, há sempre uma seleção das habilidades que serão avaliadas, em função dos objetivos do órgão avaliador: quer-se verificar habilidades de leitura de que tipo ou tipos de texto? Tome-se, por exemplo, o PISA, cujos resultados recentemente divulgados tanto impacto causaram entre nós: nossos jovens de 15 anos foram os últimos colocados, num conjunto de 32 países, e a denúncia ocupou a mídia, as bruxas vêm sendo caçadas. No entanto, a pergunta fundamental não foi feita: os jovens brasileiros que se submeteram ao PISA revelaram ler mal o quê? que gênero de texto? leitura com que objetivo?

O Programa (PISA = Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) responde claramente a essas perguntas: seus objetivos são avaliar habilidades de leitura necessárias em situações da vida real, e por isso privilegia o texto informativo e esquemas cognitivos de leitura (esta afirmação pode ser confirmada no Relatório Nacional do PISA 2000, encontrado no site do INEP.

Dos resultados do PISA pode-se talvez afirmar que os jovens brasileiros lêem mal esse tipo de texto, não dominam esses esquemas cognitivos de leitura, e não têm estas habilidades que o PISA avaliou: localizar, organizar, inferir, relacionar informações a partir da leitura de textos informativos. (O “talvez” no início dessa frase quer deixar implícito que muitos outros aspectos devem ser levados em conta na interpretação dos resultados do PISA, aspectos que não cabe considerar neste texto.) Mas dos resultados do PISA nada se pode concluir sobre as habilidades de leitura de outros tipos de texto, além do texto informativo. Como também, e sobretudo, não se pode concluir que a escola e os professores estão ensinando “errado”: podem não estar desenvolvendo adequadamente habilidades de leitura de textos informativos, que o PISA privilegia, mas quem sabe estarão desenvolvendo habilidades de leitura e apreciação de poemas, de textos literários, que são bem diferentes das habilidades de leitura de textos informativos? ou quem sabe não desenvolvem adequadamente nem umas nem outras, porque não está sendo considerada na escola a diversidade dos processos e habilidades de leitura em função dos diferentes gêneros de textos? Finalmente, também não se pode concluir, para “corrigir” os resultados dos nossos jovens no PISA, que é preciso desenvolver estas ou aquelas habilidades de leitura, privilegiar este ou aquele tipo de texto, desenvolver estas habilidades antes daquelas, ou privilegiar este gênero de texto antes daquele. É função e obrigação da escola dar amplo e irrestrito acesso ao mundo da leitura, e isto inclui a leitura informativa, mas também a leitura literária; a leitura para fins pragmáticos, mas também a leitura de fruição; a leitura que situações da vida real exigem, mas também a leitura que nos permita escapar por alguns momentos da vida real.

Por tudo isso, certamente não é justo, sem uma análise mais ampla e objetiva da questão, atribuir à escola e aos professores a “culpa” por não estar preparando os nossos jovens para provas internacionais de avaliação que têm objetivos muito específicos e bem delimitados.

Por: Magda Soares
Professora Emérita da Faculdade de Educação da UFMG e fundadora do Ceale

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Gosto pela leitura

Por Ayne Salviano

Conheço muitos pais que desejaram e planejaram seus filhos. Conseguem associar o trabalho fora e dentro de casa com a paternidade/maternidade responsáveis. São capazes, por exemplo, de, mesmo no final de um dia extenuante, ainda deitarem-se com seus rebentos e lerem para eles um bom livro. Mesmo depois que suas crianças crescem, ainda dividem a mesma cama no final da noite e, agora, ouvem as histórias - reais ou fictícias - vividas por aqueles personagens principais das suas vidas.

Pra sempre

Iniciativas simples assim como ler e contar histórias marcam positivamente a vida das pessoas. Ninguém pode negar então que a atenção dos pais desde a primeira infância e o exemplo deles pelo resto são comportamentos fundamentais que influenciam os seres humanos. Pois não é diferente com a leitura. São os pais que despertam o gosto, e não simplesmente o hábito de ler nos filhos.

Prazer

Sim, porque há uma diferença gritante entre ler por hábito e ler por prazer. A psicóloga Rosely Sayão é uma das defensoras desta tese. Durante encontro com educadores na Unicamp no ano passado, do qual participei pela Folha da Região, ela foi clara em afirmar que aquilo que é feito por hábito - inclusive a leitura - é, às vezes, até nocivo. Ao contrário de ler por prazer, que só acrescenta: conhecimento, emoção, autonomia, discernimento, cultura.

Ameaça

Há outros riscos que a leitura por prazer afasta naturalmente. Por exemplo: não há como ignorar, hoje, que o contato diário e direto de crianças e jovens com a internet pode prejudicar até na aprendizagem da grafia correta das palavras. Chats, redes sociais e outras ferramentas têm uma linguagem própria, a qual, diga-se de passagem, muitas vezes nem lembra a norma culta do português, há frases inteiras até sem vogais. Ler por prazer ajuda a reforçar a grafia correta das palavras, sem esforço e apesar dos vícios da internet.

Ajuda
Quer saber mais como despertar o desejo em alguém de ler por prazer? Pais, educadores e interessados vão encontrar uma ajuda extra na Cartilha sobre Educação, do Educar para Crescer do Grupo Abril, fácil de encontrar: http://familiaeducadora.blogspot.com/2011/03/cartilhas-sobre-educacao.html.

Dicas 

Vamos compartilhar alguns conselhos desse material: Leia sempre – é bom para você e excelente para o seu filho, que seguirá o seu exemplo naturalmente. Converse com ele sobre o livro, a revista ou o jornal que estiver lendo. Deixe todo este material ao alcance das mãos dele. Eles servem para ser lidos, não para enfeitar prateleiras e mesinhas de centro da sala.

Descobertas

Escreva sempre: bilhetes, cartas, e-mails, listas de compras. Pais que utilizam a escrita em casa ajudam na alfabetização dos filhos. Além disso, quem escreve melhor fala melhor, acredite!

Sugestão

Tenha um dicionário. É importante buscar o significado correto das palavras para aumentar o vocabulário e a capacidade de expressão. Também é bom saber e usar a grafia certa das palavras. Crianças que observam pais e professores buscando significados entendem essa atitude como algo natural.

Passeio feliz

Você leva seu filho à biblioteca? Se nunca levou, esta é a hora de começar. Faça uma ficha pra ele agora! Em Araçatuba, na Biblioteca Municipal “Rubens do Amaral”, as inscrições são gratuitas. Há até uma nova hemeroteca sendo organizada depois que as responsáveis participaram do curso do Ler para Crescer. Aproveite!

Brincadeiras

Outra dica: pratique jogos de raciocínio. Brinque com seu filhos e alunos de forca, caça-palavras, palavras cruzadas. São estímulos!

O principal

Você faz o que fala? Seja coerente: suas atitudes refletem o que você pensa. Mostre que estudar é importante e ler, divertido. Estude e leia na frente do seu filho.

Notícia boa

Atitudes como essas estão,sim, modificando comportamentos. Neste mês, durante o 2o. Encontro Nacional do Varejo do Livro Infantil e Juvenil, realizado dentro do 13ª Salão Nacional do Livro Infantil e Juvenil, no Rio de Janeiro, uma pesquisa divulgada pela Câmara Brasileira do Livro apontou que o gosto pela leitura está em alta entre os jovens brasileiros. Do total de 12 mil títulos novos lançados em 2010, cerca de 2,5 mil foram direcionados a crianças e adolescentes.

De acordo com o presidente da ANL (Associação Nacional de Livrarias), Ednilson Xavier, a parte destinada à literatura infantojuvenil já representa cerca de 15% do faturamento das lojas e as vendas do setor cresceram 9,6% em 2010 em relação ao ano anterior.

Fabulário da Imagem

Os livros ilustrados acompanham o desenvolvimento da criança até a vida adulta, determinando sua relação com a leitura e o aprendizado

Como seria o universo sem imagens? A criança, desde o nascimento, reconhece o que lhe cerca por meio de códigos visuais. Para que passe a dominar a escrita é fundamental ter domínio dos signos imagéticos. Os livros infantojuvenis são os primeiros aliados nessa transição, ao unir ilustração e palavra em um mesmo objeto. O filósofo alemão Walter Benjamin escreveu, em 1924, um artigo sobre o surgimento do gênero, que pode ser lido em Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação (Editora 34, 2002): “[As crianças] aprendem no colorido. Pois na cor, como em nenhum outro lugar, a contemplação (…) está em casa”. Benjamin é um dos autores de sua geração que se debruçam sobre o universo infantil, elucidando termos como “o brincar”, “a pedagogia”, “o teatro infantil”. Isso porque o conceito de criança nasce apenas no final do século 18, afirmando a necessidade de estabelecer a didática e o ensino para os pequenos.
No Brasil, a partir da década de 1920, Monteiro Lobato (1882-1948) torna-se figura-chave para repensar a produção literária feita para crianças. Em Monteiro Lobato, Livro a Livro (Editora Unesp, 2008), organizado por Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini, publicou-se uma carta de Lobato, de 1916, em que ele demonstra a insatisfação pelo que era produzido até então: “Ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para criança. (…) Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta. É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos”.
Monteiro Lobato publica sua primeira versão infantil em 1920 sob o título Fábulas de Narizinho com uma novidade: as mais de setenta páginas do livro eram acompanhadas por ilustrações de Voltolino. Segundo Ceccantini, antes de Lobato, o livro brasileiro era feio, aos moldes do francês das capas tipográficas e amareladas. Seria o autor – e sua visão de editor –, ao fundar a Monteiro Lobato & Cia., quem investiria em papel de qualidade e capas coloridas e desenhadas. Outros títulos seriam ilustrados por nomes importantes do início do século 20, tal qual Belmonte, chargista da vida política da época que emprestou seu traço às histórias do escritor. A partir de então, no Brasil, o livro infantojuvenil começará a ganhar outro status para, nos anos de 1970, dar o grande salto.

A história de uma cor
Em meados de 1960, Ziraldo era colaborador de vários jornais e revistas como chargista. No Pasquim, junto com Jaguar, Fortuna e Millôr, contribuiu para aplicar o humor e a blague contra a ditadura militar. Mas foi um convite despretensioso do editor português Fernando Ferro, à frente da Editora Expressão e Cultura, em 1969, que faria do cartunista um autor – e modificaria para sempre o papel da ilustração nos livros infantis. “Esse editor era um sujeito inteligente, havia encomendado um livro chamado 10 em Humor para dez humoristas brasileiros. Foi o primeiro álbum de humor coletivo feito no Brasil. Levei meu desenho para ele; aproveitei e propus que fizesse um álbum com meu personagem Jeremias, o Bom. Ele topou e me perguntou se eu não tinha um livro infantil na manga, naqueles moldes europeus. Disse na hora: ‘Claro que tenho!’”, declara Ziraldo.
Evidente que não tinha, como afirma o cartunista. Mas os chargistas europeus de vanguarda, os quais admirava, todos já haviam feito livros para crianças, deixando nos humoristas brasileiros a vontade de seguir os mesmos passos. “André François, Tomi Ungerer... todos tinham seu livro infantil. Fui para casa sem livro nenhum, era sexta-feira e teria de entregar na segunda. Então tive a ideia de fazer um livro para criança sem desenho – mas aí elas não iam gostar –, quando achei melhor colori-lo todo, com uma página de cada cor. Daí pensei em escrever a história de uma cor, sem que ela tivesse forma. O livro estava todo na minha cabeça, foi só paginar. Comprei papel contact, azul, vermelho, branco etc., colei a história e levei na segunda para o editor”, revela Ziraldo. Flicts, cuja personagem é uma cor que tenta descobrir sua própria identidade, seria um sucesso imediato de crítica e público.
Colunistas de grandes jornais resenharam o livro, que ganhou prefácio de Carlos Drummond de Andrade: “O mundo não é uma coleção de objetos naturais, com suas formas respectivas, testemunhadas pela evidência ou pela ciência; o mundo são cores. (...) Tudo é cor. O que existe, existe na cor e pela cor. A cor ama, brinca, exalta, repele, dá sentido e expressão ao sítio ou à aparência onde ela pousa”, sentenciou o poeta.
Naquele momento, havia na revista Recreio importantes escritores que se dedicavam às fábulas infantis – Ruth Rocha e Ana Maria Machado eram nomes dominados pela lembrança de Monteiro Lobato. Já a romancista Rachel de Queiroz, no mesmo ano em que Ziraldo lançou o Flicts, escreveu O Menino Mágico, publicado com ilustrações do italiano Gian Calvi. “Ele foi um ilustrador importante para a literatura brasileira. O Menino Mágico veio um pouco antes do Flicts”, diz Ziraldo ao referir-se às colagens de pano feitas por Calvi.

Filão para todas as idades
A imagem terá, a partir de Flicts, um papel predominante na compreensão da narrativa infantil – anteriormente, apoiada apenas nas palavras. A geração de ilustradores dos anos de 1970 e 1980 levaram a cabo a experimentação e feitura do livro como objeto estético. Ângela Lago, Eva Furnari e Eliardo França são nomes de destaque nesse cenário. “A literatura infantil se abriu para algo que os críticos chamam de Picture Books, qualquer literatura em que, sem imagem, a obra não acontece. A palavra diz uma coisa; a imagem, seu oposto. E a obra acontece exatamente na negação de um e outro”, explica o ilustrador Odilon Moraes, um dos três curadores da exposição Linhas de História (ver boxe Aprender e Brincar), amplo recorte sobre o panorama do livro ilustrado no Brasil, em cartaz entre os dias 12 de julho e 29 de agosto, no Sesc Belenzinho.
Segundo Moraes, o Picture Book nasceu de uma ideia simples e se tornou uma das obras mais complexas da literatura infantojuvenil. “No processo de aprendizagem existem dois iniciantes: a criança na leitura e o adulto se reiniciando nas imagens”, diz o curador. É comum o adolescente abandonar o livro ilustrado quando ingressa na leitura formal dos clássicos. “O problema do livro para adultos é que é inacessível para as crianças, já os bons livros infantis servem para todas as idades.”
A escritora e ilustradora Eva Furnari completou 30 anos de carreira, no ano passado, com mais de 50 livros publicados, dentre os quais A Bruxinha Atrapalhada, que recebeu o prêmio de melhor livro-imagem da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), em 1982. Nascida em Roma, Itália, radicada no Brasil, passa a fazer livretos sem texto na faculdade de arquitetura, ainda na década de 1970, quando nasce sua filha. “A literatura infantil já estava no meu imaginário. Comecei a fazer ilustrações sem texto e desenvolvi jogos de palavras, até que, em 1990, passei a inventar histórias mais complexas e me tornei escritora também”, diz Eva. O convívio com o universo lúdico a fez perceber que o livro ilustrado é uma alternativa para as crianças diante da imagem vinculada à publicidade, tão recorrente nos dias atuais. “Elas têm acesso a uma arte produzida sem o risco dos estereótipos, uma ponte para as artes visuais”, afirma Eva.
Graça Lima, autora de livro-imagens como Sai da Lama Jacaré, também acredita nesse contraponto ao apelo comercial. “A criança cresce sabendo o que é McDonald’s e marcas de brinquedo. A boa ilustração fará o diferencial em relação à massificação da imagem”, diz. “A criança prefere imagens realistas. Em um primeiro momento, ela sente um estranhamento com a forma abstrata. Mas ao crescer, seu repertório se tornará mais amplo caso os pais incentivem a leitura desses livros.”
A responsabilidade das ilustrações na educação infantil é tal que as editoras são cada vez mais cuidadosas quanto à produção dessas obras. Afinal, o Ministério da Educação é o maior comprador de livros infantojuvenis do país, podendo adquirir em torno de 4 milhões por ano pelo Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE). “É muito importante que eles sejam adotados nas escolas, pois terão vida mais longa. Temos um cuidado pedagógico, mas também nos preocupamos muito com que as ilustrações estabeleçam diálogo com as crianças”, afirma Júlia Schwarcz, editora do selo Companhia das Letrinhas. Outro fator de mudança é a autonomia dos ilustradores dentro das editoras. Além de receberem direitos autorais, discutem o projeto gráfico com os escritores, prática antes impensável. “Hoje em dia, os ilustradores têm uma narrativa própria, sugerimos que evitem repetir o mesmo caminho trilhado no texto”, afirma Júlia.
Em 2010, os vencedores do Prêmio Jabuti na categoria infantil – Nelson Cruz com Os Herdeiros do Lobo Comboio de Corda (Grupo SM); Roger Mello com Carvoeirinhos (Cia. das Letrinhas); e Ângela Lago com A Visita dos 10 Monstrinhos (Cia. das Letrinhas) – eram todos escritores e ilustradores de suas próprias obras, fato que afirma a dimensão autoral desse profissional no século 21.

Por uma identidade visual brasileira
A partir dos anos de 1990, uma nova geração de ilustradores retoma um antigo tema, esquecido em meio à profusão dos livros importados: a questão da identidade nacional. Um dos fatos marcantes para esse passo foi a homenagem a ilustradores brasileiros realizada na Feira de Bolonha, Itália, em 1995, que os levou a ter contato com a produção internacional. O autor europeu era muito fiel a suas origens enquanto a produção brasileira evitava esbarrar no nacionalismo tão presente nas obras de Monteiro Lobato dos anos de 1920. “O trabalho deles era infinitamente mais poderoso do que o nosso. Apesar de sermos mais atuantes no mercado, não chegávamos aos pés dos europeus”, revela Graça Lima. “Começamos a nos questionar e chegamos à conclusão de que eles tinham um respeito pela própria cultura muito grande”, completa.
A partir de então a produção de livros ilustrados no Brasil tem uma guinada. “Os artistas fizeram um mergulho ?no folclore brasileiro, passaram a usar uma paleta de cores mais fortes e vibrantes”, informa o ilustrador e curador Odilon Moraes. Para Graça Lima, alguns desses produtores, entre eles Roger Mello, Andrés Sandoval e Fernando Vilela, estão no limiar da vanguarda devido à experimentação da linguagem e por permitirem à criança ?um repertório imagético apurado. “O livro Lampião e Lancelote, do Fernando Vilela, dialoga com as gravuras do Lívio Abramo”, diz Graça.
Vilela, gravurista e ilustrador, também curador da exposição Linhas da História, no Sesc Belenzinho, afirma que o desenvolvimento da ilustração no Brasil e no mundo só se concretizou pela compreensão do livro como objeto artístico, para além da função didática para crianças. “É uma condição muito específica de trabalho em que texto e imagem se transformam numa forma de expressão artística, tanto que é consumido por adultos também”, ressalta Vilela, que ilustra a capa da Revista E deste mês.

Imagem e tecnologia
Com o desenvolvimento da tecnologia e a inserção do livro digital no mercado, autores se deparam com uma nova mudança por vir, pela qual a animação terá um peso ainda maior na narrativa, proporcionando participação ativa entre leitor e obra. “Estamos diante de uma mudança social grande, com certeza isso altera a maneira de a criança olhar o mundo e acaba interferindo na linguagem do livro”, diz Eva Furnari. “O livro requer uma escuta mais atenta, e a tecnologia ainda não preenche algo essencial do livro: o ritmo mais humano do texto.” Para Ziraldo, as circunstâncias mudaram, mas a criança é a mesma. “Elas seguem sofrendo e sorrindo pelas mesmas razões. Não podemos fazer previsões quanto ao fim do livro, mas vou continuar a escrevê-los”, informa o autor, que lançará no mês de julho Meu Primeiro Maluquinho em Quadrinhos, pela Editora Globo. A obra contém apenas imagens, para introduzir a criança (e os adultos) no universo narrativo dos quadrinhos. “O adulto só vai ler com felicidade se leu os livros da infância. Se não leu, ler para ele será sempre um sacrifício”, diz.

BOXE 01 – Colcha de retalhos

Confira algumas linhas de força presentes na produção da ilustração brasileira atual

Livro-Imagem – Não contém palavras e se apoia na narrativa visual para criar significados. “Esse tipo de obra é aberta a qualquer pessoa que se disponha a abandonar a segurança da palavra”, afirma Fernando Vilela, ilustrador e um dos curadores da exposição Linhas da História. Nessa categoria, nomes como Juarez Machado, Nelson Cruz e Roger Mello (ilustração) são destaques.
Humor – A influência do cartoon e das histórias em quadrinho é visível na obra. “O ilustrador que tem como berço o desenho de humor é habilidoso como contador de piadas gráficas e sabe tecer comentários pontuais e irônicos”, afirma Vilela. Eva Furnari, Mariana Massarani (ilustração) e Ivan Zigg são referências para as novas gerações.
Clássicos e Contos de Fadas – Ilustrar clássicos pode ser um desafio, pois esses livros já ocupam o imaginário de crianças e adultos. Trabalhos ilustrativos que renovam a linguagem dessas histórias podem ser conferidos em Chapeuzinho Vermelho e Outros Contos por Imagem, de Rui de Oliveira, e O Rouxinol, Contos de Andersen, de Eliardo França (ilustração).
Experimentais – O trabalho está bem próximo das artes visuais, com inclinação para a busca de materiais novos e soluções que ampliem os sentidos das histórias. “Muitos ilustradores contemporâneos extrapolam os limites da pintura, do desenho, da colagem e das ferramentas digitais”, revela Vilela. Trabalhos como o de Luiz Zerbini, Andrés Sandoval (ilustração) e Daniel Bueno caracterizam-se pela força da experimentação.
Artesanato – Muitos artistas trabalham de forma artesanal para criar ilustrações delicadas e com texturas diferentes. O tecido e o bordado são elementos que aproximam as crianças do universo sensorial do toque, por exemplo. “Em contrapartida ao uso do computador, muitos seguem a tradição do trabalho manual”, diz Vilela. A família Dumont é exemplo representativo dessa tradição. Graça Lima também se aventurou ao compor A Menina Transparente (ilustração).
Cultura Brasileira – Autores vão atrás dos contos e folclores enraizados no interior do Brasil para compor narrativas e ilustrações com influência nas celebrações do candomblé, das lendas amazônicas e histórias de saci. “O tema da cultura brasileira sempre esteve presente na nossa literatura infantojuvenil. As narrações inventadas se apropriam e dialogam com esse universo cultural”, explica Vilela. A imersão nas tradições populares em trabalhos de Roger Mello, Nelson Cruz (ilustração) e Pedro Rafael é exibida na exposição que ocorre no Sesc Belenzinho (veja boxe Aprender e brincar).

BOXE 02 – Aprender e Brincar

Mostra no Sesc Belenzinho apresenta Labirintos ?de histórias e contos de fada em tamanho real

A exposição Linhas de História – Um Panorama do Livro Ilustrado no Brasil, aberta ao público no dia 12 de julho, no Sesc Belenzinho, reúne uma pesquisa inédita em torno da ilustração no Brasil. Com curadoria conjunta de Fernando Vilela, Odilon Moraes e Kátia Canton, a mostra abarca a produção de 40 artistas a partir do final da década de 1960 até 2010. Terá dois núcleos expositivos: Homenagem, sobre cinco livros que se destacaram ao longo do tempo por seu pioneirismo – Flicts, de Ziraldo; A Bruxinha Atrapalhada, de Eva Furnari; O Rei de Quase Tudo, de Eliardo França; Ida e Volta, de Juarez Machado; e Cântico dos Cânticos, de Ângela Lago. As obras funcionam como instalação, reverberando por todo o espaço expositivo com grandes intervenções criadas a partir da temática de cada livro.
No núcleo Panorama, dividido em seis eixos temáticos, será possível mostrar as vertentes da ilustração produzida até então. Nomes como Ângela Lago, Eva Furnari, Marcelo Cipis (imagem ao lado), Roger Mello e Graça Lima dividem-se em categorias como Livro-Imagem, Humor, Experimentais, Cultura Brasileira e Clássicos, e Contos de Fada. “Esse tipo de produção ocupa um posto quase de vanguarda dentro do gênero. No Brasil, não temos uma pesquisa que dê conta da ilustração brasileira. Por isso tentamos apontar quem são os principais autores e quais linhas seguem ao longo de suas carreiras”, afirma Alcimar Frazão, assistente responsável pelas exposições de artes visuais do Sesc Belenzinho. A produção brasileira se caracteriza desde o desenho e a pintura, as técnicas tradicionais, a colagem, a fotografia e os bordados. Será a oportunidade de crianças e adultos vivenciarem o mundo mágico das narrativas infantis e entrarem em contato com o universo plástico das ilustrações.

BOXE 03 – Jogos da imaginação

Edições Sesc São Paulo investem em livros com apelo visual para todas as idades

Os livros experimentais, em que o universo da ilustração ganha força, tanto em histórias para crianças quanto para adultos, conquistaram espaço de destaque no catálogo das Edições Sesc São Paulo. Exemplo disso é o lançamento, em julho, de Quer Jogar? (imagem ao lado), de Adriana Klisys e ilustrações de Carlo Dala Stella. A narrativa se apoia em regras e conceitos da brincadeira por meio do olhar poético de Carlo Dala Stella.

Já para os adultos, mas sem excluir as crianças das páginas ilustradas por importantes autores brasileiros, as Edições Sesc São Paulo, em parceria com a Cosac Naify, lançaram a coleção Ópera Urbana, composta de quatro livros com apelo gráfico para narrar o ritmo acelerado da cidade de São Paulo. Uma homenagem à “selva de pedra” por meio de ilustrações que se identificam muito com o jovem que transita pelas ruas. São eles: Av. Paulista, de Carla Caffé; Surfando na Marquise, de Paulo Bloise e ilustrações de Daniel Kondo; Cidade dos Deitados, de Heloisa Pietro e ilustrações de Elizabeth Tognato; e Montanha Russa, de Fernando Bonassi e ilustrações de Jan Limpens.

Fonte: Revista E

Mais livro do que gente!