segunda-feira, 22 de março de 2010

Será o valor da escrita e da leitura relativo?

Claudia Ortiz

Ah! Tinha uma névoa, mal víamos a trilha, as lanternas tentavam em vão iluminar as noites.Vivíamos o início dos anos oitenta. Brinca-se de Fênix, e o nosso jeito de ressurgir das cinzas foi inventar uma escola rural para alfabetizar adultos.

Sim, foi tudo meio difícil. Conseguimos um antigo galinheiro desocupado, uma velha mesa de ping-pong, bancos, um mimeógrafo e a escola estava aberta.

A notícia se espalhou de boca-em-boca. Começamos com dois alunos e em pouco tempo tínhamos mais de cinqüenta. O velho galinheiro virou um "point", de repente famílias inteiras iam até lá. Isso, depois de vencida a timidez e os constrangimentos.

Olha que concorríamos com novela das oito.

Claro, Emilia Ferrero e Paulo Freire eram a meta. A primeira frase acho que foi "hoje eu carpi" e a coisa toda foi por aí afora.

Passado o tempo da euforia, descobrimos, cabisbaixos, que as letras e as palavras não fariam parte do universo daquelas pessoas.

Não, não estou sendo radical, é verdade, a única hora em que precisavam ler era quando iam às compras - ler o ônibus - mesmo as embalagens já não interessavam muito. Mas os números..., o dinheiro era sabido pela cor, pelas figuras e assim eram roubados no troco e na vida.

Investimos na matemática. Fizemos notas. Tentamos mostrar que esse pedaço de papel, igual em tamanho a este outro, valia mais, etc.

Dia após dia tropeçávamos nos atalhos que levavam ao galinheiro-escola, e nas nossas idéias e valores sobre escrita e leitura.

Claro, conseguimos algum sucesso. Mas, tem sempre um mas e tínhamos dona Maria.

Dona Maria, que gostava de desenhar as plantas, desenhava as letras e as palavras e não conseguimos nunca abrir para ela o caminho da leitura.

Ah! sim, era uma figura única, vale a pena descrevê-la. Magrinha, baixinha, encarquilhada, lencinho na cabeça, era do tempo em que se conversava sem se olhar nos olhos. Trazia sempre sua enxada na mão. Trabalhava mais e melhor que muito homem. Tinha, acredito, uns sessenta anos, nem ela sabia ao certo. Foi nosso grande fracasso, nossa frustração.

Não, nunca tinha saído da região, nunca tinha ido a São Paulo. Talvez para acalmar nossa culpa, alguém teve a brilhante idéia de mandá-la para a capital. Foi uma festa, na verdade foi uma loucura.É, a mãe de um amigo precisava de alguém para lhe fazer companhia, fazer pequenos trabalhos, ir à padaria, à farmácia, à quitanda, tudo aqui na Vila Mariana.

Em princípio, achamos que seria simples, porque sem mudar de calçada, dando apenas a volta no quarteirão, dona Maria conseguiria resolver tudo. E assim foi feito.

Claro que não deu certo. Esta mulher da roça solta em Vila Mariana.
Assucedeu o seguinte sucedido: dona Maria foi às compras e se perdeu. A coisa se complicou. Uma volta de meia hora já passava de três. Será que já devíamos ir à polícia? O jeito foi esperar. Afinal, de quem tinha sido esta idéia?

Já começávamos a sentir saudades de dona Maria. As manchetes seriam: "procura-se cabocla franzina, analfabeta, que atende pelo nome de Maria". Nem dinheiro ela entendia, embaralhava os retratos das notas. Sabia desenhar os números porque os achava lindos, mas cadê que o mistério da leitura se abrira para ela?

- Dona Maria, e aí, como a senhora conseguiu se achar e voltar?

- Ara, eu marquei as árvores e as plantas, e aí voltei.

Boquiabertos, percebemos que foi a roça quem salvou dona Maria desta selva.

Será que toda história tem que ter moral? Se, por acaso, esta tiver uma, será: às vezes, a natureza pode mais do que a escrita e a leitura.

Claudia Ortiz é mestre em filosofia e técnica do Sesc

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