É fato que os currículos escolares incluem matérias relacionadas ao ensino da literatura. No entanto, a questão levantada por especialistas e demais estudiosos dos processos educativos de crianças e adolescentes é: o potencial dessas aulas é suficientemente aproveitado? A doutoranda em literatura portuguesa Vivian
Steinberg lembra que as obras literárias são complexas e que, para o aprendizado dos clássicos, é necessária uma contextualização aos alunos. “A literatura é toda uma construção do universo da humanidade, é o grande patrimônio da nossa cultura”, afirma. Já a mestre em Literatura Brasileira Celinha
Nascimento argumenta que a leitura e interpretação de textos literários são fontes de conhecimento com “caminhos tortuosos”, e que as atividades propostas a partir de uma obra não devem ser vistas como algo mais importante que o livro em si. “Num mundo cada vez mais medido e sustentado pelas ações e movimentos, é preciso abrir espaço para o delírio silencioso que é a literatura”, sugere. Leia a seguir a íntegra dos artigos escritos pelas especialistas a convite da Revista E.
Sobre a literatura e a leitura: apenas uma matéria nas escolas?
por Vivian Steinberg
“Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido.
(...)
Quem, como eu, não se lembra dessas leituras feitas nas férias, que íamos escondendo sucessivamente em todas aquelas horas do dia, que eram suficientemente tranqüilas e invioláveis para abrigá-las?”
Marcel Proust
Se vamos conversar sobre literatura, não tem como não abordarmos o tema leitura. A paixão pelos livros, pelos encantamentos das histórias, pelas viagens que nos proporcionam, é o que quero passar, em primeiro lugar.
Porém, a literatura não se resume à paixão pelas histórias. A literatura é toda uma construção do universo da humanidade, é o grande patrimônio da nossa cultura. Primeiro de uma civilização, depois de uma época, de um lugar, de um autor, marcada por valores históricos e geográficos. Devemos ler como se o texto diante de nós tivesse significado. Não será um significado único. Precisamos ler como se, de fato, as circunstâncias em que o texto foi escrito tivessem importância. Então, a leitura de um livro literário não é apenas o contar de uma história, é o contar de uma história a partir de um ponto de vista, porque o escritor não é isento e ele vive situações singulares. Ou seja, o autor parte de um universo particular, passa por uma esfera familiar. Depois, o lugar em que ele habita, a época e a língua materna são fatores determinantes para a construção de sua obra.
É preciso estar consciente de que uma obra literária é complexa, há todas essas informações. Por isso, é tão importante, nas escolas, a leitura de obras clássicas brasileiras e universais. Os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos. Os livros clássicos brasileiros são indispensáveis, justamente para serem confrontados com os estrangeiros; e os estrangeiros, por sua vez, para serem confrontados com os brasileiros. É uma forma de conhecer melhor o povo brasileiro e nos conhecermos melhor, como brasileiros. E, porque a literatura é uma das artes, o conhecimento se dá não apenas através do intelectual, mas também do emocional e intuitivo. O conhecimento e a leitura de clássicos universais ampliam a visão do homem. Até agora falamos de dois pontos importantes ao tratarmos da literatura: os clássicos universais e os clássicos brasileiros.
Outro aspecto para trazermos à discussão é a leitura como prazer, questão fundamental na construção de um currículo coerente. É importante mesclar os clássicos com outras leituras. Não que a leitura de clássicos não possa ser prazerosa, mas é preciso mostrar “o caminho das pedras.” Para ler os clássicos, temos de definir “de onde” eles estão sendo lidos, caso contrário, tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal, o que nos adverte Ítalo Calvino. E o dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás. Por isso a escola não perde de vista a literatura atual, a mais próxima dos alunos, a leitura na qual nos identificamos com personagens ou situações vividas.
Nos primeiros anos, após a grande descoberta na infância – o aprendizado da leitura e, conseqüentemente, da escrita –, a tarefa do educador é continuar a alimentar essa alegria, essa conquista. Na história da humanidade, Santo Agostinho resumiu assim a felicidade da descoberta da leitura: “Quando as palavras na página não apenas se ‘tornavam’ sons, quando os olhos as percebiam, elas eram sons”. A leitura de livros nessa idade é fundamental; primeiro para alimentar essa alegria e, depois, para a criança perceber a grandeza dessa conquista, perceber que a linguagem escrita não serve apenas para informar, mas também para formar, não no aspecto moral, mas estético. Em outras palavras, a criança percebe que se brinca com as palavras, as histórias nos transportam para situações diferentes do nosso cotidiano.
Mas como passar essa paixão em aulas? O trabalho é não deixar essa alegria inaugural se perder. Falar é fácil, mas na prática a situação muda, não é? Com o tempo, o aluno se acostuma com essa grande conquista, o aprender a ler passa a fazer parte do dia-a-dia, as leituras viram obrigação. Aliás, a leitura faz, de tal forma, parte do cotidiano dos moradores de grandes metrópoles, que nem mais percebemos como somos dependentes dessa atividade: a leitura.
Diferentemente dessa leitura cotidiana, há a leitura necessária nas escolas, em qualquer matéria. Trabalhamos a leitura de livros a partir da alfabetização. A criança, aos poucos, percebe que existem a leitura funcional, que traz uma informação objetiva, e a leitura de histórias, na qual a imaginação é requisitada. E há, ainda, outra matéria dos currículos escolares, que discute e apresenta histórias com personagens, narrador, imaginação, fantasia, e cujo nome acadêmico é literatura.
Precisamos de experiência de vida para aproveitar melhor uma leitura. Por isso, ao abordarmos determinado livro numa sala de aula, é importante mencionar o contexto em que essa obra nasceu, já que não somos leitores do mesmo momento, e, às vezes, o autor escreve sobre determinada época anterior a ele, então, é preciso fazer essas distinções. Por exemplo, Erico Verissimo (1905-1975), que viveu no século 20, escreveu Ana Terra, que se passa entre 1777 e 1811, no final do século 18 e começo do século 19, quando o Brasil ainda nem era o Brasil. A obra conta os primórdios da formação do Rio Grande do Sul, aponta circunstâncias injustas e grotescas da vida dos homens, salienta o papel da mulher como subalterna. Se tivesse escrito sobre a época em que viveu, ou seja, o século 20, não teria distanciamento suficiente para criticar de forma tão realista.
Há vários caminhos para ler um livro. Cada pessoa tem seus livros, suas preferências e gostos, o que é indiscutível. Precisamos despertar essas preferências nos alunos, e, a partir de leituras comuns, eles estarão aptos a procurar: temas, autores, épocas de suas preferências, distinguindo leituras mais profundas das mais consumíveis.
Outra questão controversa em relação à leitura é o aspecto intelectual que o sujeito apreciador dela exibe, ou como ele é visto. O professor é colocado num pedestal, como se tivesse lido todos os livros e soubesse de tudo, sendo detentor do saber. Não é assim. Ninguém leu todos os livros. As idéias que uma leitura provoca despertam qualquer leitor atento. O papel dos livros como algo inacessível ou difícil, pertencente à alta cultura, precisa ser desmistificado. Os livros devem ser vistos como companheiros.
O papel da escola é restrito, a idéia é fazer com que, junto às leituras acadêmicas, o aluno sinta prazer em ler e escolher suas próprias leituras, nas aulas de literatura. E que, a partir de leituras compartilhadas e silenciosas, o jovem possa compreender melhor o mundo em que vive, os outros e a si mesmo, ou apenas se questionar mais. Como disse Kafka a um amigo: “Lemos para fazer perguntas”.
"É importante mesclar os clássicos com outras leituras. Não que a leitura de clássicos não possa ser prazerosa, mas é preciso mostrar “o caminho das pedras”
Vivian Steinberg é doutoranda em literatura portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Professora de português e literatura do Colégio Ítaca.
Literatura na escola, o direito ao convívio com as palavras
por Celinha Nascimento
Poderíamos começar contando um tanto da história da leitura e da literatura nos bancos escolares, uma história bastante interessante que se entrelaça com a própria educação. Podemos eleger dois episódios importantes: o primeiro nos diz que a idéia de ensinar através das histórias sempre esteve presente em livros didáticos e antigos livros de leitura silenciosa, o segundo nos ensina que a leitura de obras ditas clássicas era e é obrigatória há longo tempo.
Não falaremos dessa história neste artigo, mas ela nos é importante para compreender algumas questões do tempo presente. Estamos vivendo e convivendo num tempo incrível das ações e movimentos. Tudo parece ser regido pela batuta da rapidez. Mas a literatura, ou pelo menos a boa e alta literatura, vive mais do como do que do porquê. Não importa realmente se Capitu traiu ou não Bentinho, mas sim a maneira (como) escolhida por Machado de Assis para nos contar essa história. Ou ainda, como ele não conta e deixa o segredo atormentando tantas gerações.
Como ensina Antonio Candido, importante crítico e professor de literatura da Universidade de São Paulo, “o homem precisa de uma dose diária de fantasia e realidade, e a literatura é a mais sofisticada forma de elaboração da fantasia, portanto, uma eficaz dose diária.” Num mundo cada vez mais medido e sustentado pelas ações e movimentos, é preciso abrir espaço para o delírio silencioso que a literatura, e muitas vezes somente ela, abre em nossas vidas, de todos os comos que ela nos ensina a aprender. A literatura nos convida para esse não-movimento, esse calar-se e esperar das próximas palavras, do próximo suspiro que o personagem está prometendo dar a qualquer instante. O incrível é que esse suspiro pode nem ser dado, pode não vir nunca. E encerramos a leitura sem aquilo que esperávamos, fechamos o livro e não encontramos o tal suspiro. A literatura nos convida para experiências além de nós.
A escola, evidentemente e como já dissemos, tem a preocupação antiga de formar leitores. Leitores que possam ler todo tipo de material escrito. A literatura é um desses materiais. Segundo muitos especialistas, o mais alto e o mais nobre desses materiais, mas não o único. Essa preocupação em formar leitores tem sido trabalhada de maneiras variadas ao longo do tempo. Porém, a discussão de formar leitores de literatura talvez não seja tão antiga assim. Livros paradidáticos e de leitura silenciosa estavam muito preocupados com uma leitura e um determinado tipo de texto que fosse conteudista e pragmático. O prazer da leitura demorou a chegar às escolas. Foi preciso um esforço dos educadores para que verificassem que também assim se ensinava a ler e a entender textos.
A diferença nas atividades nas quais se pede leitura e nas quais se pedem leituras literárias não é tão palpável. Herdamos, digo no plural pensando nas gerações que estudaram nos anos de 1970 e 1980, um modelo para averiguar a qualidade da leitura dos livros indicados. Essa verificação de leitura era feita através de fichas que estavam mais preocupadas em saber o que acontecia numa determinada página, que ano nasceu o autor, quanto tempo o personagem X ficou preso, o que disse o personagem Y quando caiu no chão etc. Enfim, tais fichas traziam perguntas concretas que não ajudavam a entender a obra, apenas estavam em busca de saber e constatar se o aluno realmente havia chegado ao final da leitura. Novas formas de avaliação de leitura foram construídas ao longo do tempo, na tentativa de abandonar essas fichas e colocar em seu lugar uma verdadeira discussão sobre as obras. Outra questão, bastante atrelada a essa verificação, está colocada na busca por ensinar e extrair conteúdos quando se lê uma obra literária. Alguns professores utilizam uma narrativa para ensinar matemática, ciências, geografia, história, religião. Esquecem de ensinar literatura.
É preciso ler literatura como literatura. Sem a preocupação dos conteúdos que se podem extrair dela. Aliás, extrair conteúdos pode ser tão prejudicial e desaconselhável como a prática de, ao final de cada narrativa, perguntar ao aluno “qual mensagem o autor quis nos passar?” Não penso que se deva estar preocupado com tal pergunta. Creio que os livros ensinem coisas por caminhos tortuosos e, de novo, retornamos à idéia de um contexto no qual as respostas imediatas são as mais aceitáveis e mais esperadas. A literatura é ferramenta da espera, da paciência com o texto e o autor. Existe uma verdadeira sofreguidão em fazer atividades pós-leitura: pedem-se com freqüência desenho, resumo, reescrita, novos finais. Todas essas atividades são legítimas, mas não podem tomar o lugar ou serem mais importantes que a leitura do texto. O texto deve fazer sentido por ele mesmo. A literatura também se alimenta de si mesma e pode ser entendida e analisada dessa forma. Podemos terminar uma leitura e simplesmente fechar o livro e nem mesmo perguntar se a turma gostou ou não da história. Pode parecer estranho, mas ler por puro prazer é também uma maneira de ler, é também uma forma de falar do prazer de ler.
Penso, portanto, que, além dessa maneira mais filosófica de pensar a literatura, também podemos pensar que ensinar literatura é falar de autores, editoras, ilustração, gêneros, épocas e estilos. Esses elementos se combinam e se misturam, mas não são mais urgentes ou importantes que a própria narrativa. Um bom exemplo, ou até dois, estão sendo comemorados neste ano: Machado de Assis e Guimarães Rosa criaram, à revelia de estilos e épocas, maneiras absolutamente singulares de edificar suas obras. Quando dizemos texto machadiano ou roseano, não estamos adjetivando pelo sobrenome, mas afirmando que é quase impossível enquadrá-los numa escola literária. Não são modernos, contemporâneos, realistas, são machadianos e roseanos, apenas. Também precisamos pensar a literatura que se alimenta de literatura, de autores que são leitores. Quando ofereço Harry Potter [J.K. Rowling, Editora Rocco] para meus alunos, preciso ensiná-los que a autora bebeu em fontes anteriores, então não posso me furtar de mostrar Crônicas de Nárnia [C.S. Lewis, Editora Martins Fontes], Senhor dos Anéis [J.R.R.Tolkien, Editora Martins Fontes], Escola de Magia [Michael Ende, Editora Martins Fontes] e toda a belíssima literatura oral e escrita medieval, nas quais aparecem mágicos, bruxos, lugares e animais fantásticos, enfim, todo o incrível universo utilizado e recriado pela autora do tão famoso bruxinho Harry. Ou quando tenho em mãos deliciosas narrativas que brincam com outras misturando personagens, citando outras obras e autores, preciso aproximar meu leitor dessas referências que dão ainda mais vida para a leitura.
Uma atividade de leitura muito querida pelos alunos é o Mar de Histórias. Distribuídos sobre um belo tecido, muitos livros estão disponíveis para a escolha de ávidos leitores. O convite é para que os alunos façam suas escolhas pessoais baseadas no desejo, na curiosidade, em algum tipo de necessidade, pois elas existem. Posteriormente, eles falam dessas leituras/obras escolhidas. Mas não é só o Mar de Histórias, o trabalho deve conter gêneros, autores, temas, leituras individuais e coletivas e, em especial, muito diálogo depois das leituras. O que importa em todas essas atividades é que as crianças possam, verdadeiramente, mergulhar nas leituras feitas, como num mar.
Se afirmarmos que o autor é também leitor, não podemos deixar de dizer que o professor também é modelo de leitor. Ele deve ser um apaixonado pela leitura e pela literatura e estar aberto e afiado para ouvir as leituras coletivas que surgem da análise de uma obra, das diversas leituras feitas por seus alunos.
E, como comecei meu texto citando Antonio Candido e em homenagem aos seus 90 anos completados este ano, termino citando-o novamente: “A literatura existe porque a realidade não basta”.
“É preciso ler literatura como literatura. Sem a preocupação dos conteúdos que se podem extrair dela. Aliás, extrair conteúdos pode ser tão prejudicial e desaconselhável como a prática de, ao final de cada narrativa, perguntar ao aluno “qual mensagem o autor quis nos passar?”
Celinha Nascimento é mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), coordenadora dos projetos de leitura Letras de Luz (2007 e 2008), Ecoteca (2001 a 2006) e da Escola Castanheiras.
Fonte: Revista E SESCSP
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