Por Fábio de Castro
“José Mindlin deixou um legado incalculável para a cultura e a ciência”, disse Celso Lafer, presidente da FAPESP, a respeito do bibliófilo e empresário morto no domingo (28/2), em São Paulo, de falência múltipla de órgãos. Mindlin estava internado desde janeiro.
Advogado, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e fundador da indústria de autopeças Metal Leve, Mindlin teve também atuação importante como conselheiro da FAPESP (1973-1974) e como secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (1975-1976).
Como conselheiro da FAPESP, teve participação importante na anulação de um decreto que havia transformado os institutos de pesquisa em empresas.
“A transformação de todos os institutos em companhias era coisa que não fazia sentido, porque há institutos que podem vender serviços e por isso devem ser transformados em empresas, enquanto outros fazem pesquisa e não têm condições de vender serviços”, disse Mindlin no livro FAPESP – Uma História de Política Científica e Tecnológica.
Segundo Lafer, como secretário de Estado, Mindlin teve a FAPESP sob sua responsabilidade administrativa. “Nesse período, ele teve um papel importante na indicação do professor William Saad Hossne para sua segunda gestão como diretor científico da Fundação. Foi um período difícil do ponto de vista político, com as dificuldades impostas pelo regime militar, e o professor Saad, em conjunto com Mindlin, responderam a esse desafio preservando a autonomia da FAPESP”, disse.
Em sua gestão à frente da secretaria, Mindlin realizou, com muita propriedade, o diálogo entre a cultura literária e humanística e a cultura científica. “Era justamente um homem de cultura, mas um homem de grande interesse nas áreas de ciência e tecnologia. Na Metal Leve, uma de suas preocupações foi a criação de um centro de pesquisas. A empresa se notabilizou no cenário industrial do Brasil por fazer pesquisa em parceria com a universidade”, disse Lafer.
Mindlin também teve atuação relevante, no campo científico, durante o período em que dirigiu o Departamento de Ciência e Tecnologia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Em sua atuação empresarial ele deu muito destaque à pesquisa, como também ao design – que é uma dimensão importante não só do ponto de vista da funcionalidade e da qualidade do produto, mas também de sua aparência estética”, apontou Lafer.
Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, também destacou a contribuição de Mindlin para a Fundação e a importância de sua atuação no campo cultural e científico. “Mindlin foi um grande amigo da FAPESP, valorizando a ciência, a tecnologia e a cultura em vários cargos de liderança que ocupou. Em várias ocasiões contribuiu para a Fundação com ideias e sugestões”, afirmou.
Brito Cruz lembrou ainda o impacto da doação, em 2006, dos mais de 40 mil volumes da Biblioteca Guita e José Mindlin à Universidade de São Paulo (USP). “Recentemente a FAPESP concedeu apoio expressivo para que a USP realize a digitalização dos volumes recebidos de Mindlin em doação, em importante iniciativa para a publicização daquela belíssima coleção”, disse.
Universalização do conhecimento
A FAPESP apoiou, por meio da modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular, o projeto Brasiliana Digital, que disponibilizará pela internet, com acesso livre, toda a coleção reunida por Mindlin ao longo de mais de 80 anos, além de outros acervos da USP.
Os recursos permitiram a compra de um sistema integrado de digitalização robotizada de livros que, atualmente, está instalado na residência do empresário. Ali, os técnicos da universidade continuam o trabalho de digitalização.
Segundo o coordenador da Brasiliana Digital, Pedro Puntoni, professor do Departamento de História da USP, a base da iniciativa é o projeto Brasiliana USP, coordenado por István Jancsó, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Para abrigar o acervo doado por Mindlin e a nova sede do IEB, a Brasiliana USP está construindo um edifício com cerca de 20 mil metros quadrados no centro da Cidade Universitária, em São Paulo.
“Estamos sentindo muita falta do doutor Mindlin e é muito triste que ele não possa ver pronta essa grande casa dos livros pela qual ele é responsável. Ele fará falta como amigo, como homem de cultura e como pensador, mas deixou para todo o Brasil um grande presente, ao qual sua memória estará sempre associada”, disse.
Segundo Puntoni, o objetivo é concluir as obras dentro de um ano. Está pronta a primeira etapa da construção, correspondente às estruturas de concreto da ala Mindlin. “A estrutura metálica está contratada e, assim que estiver pronta, passaremos à fase de acabamento. A ala do IEB ainda está na fase inicial da parte de concreto”, contou.
Puntoni acrescenta que, além das novas instalações da Biblioteca Brasiliana e da digitalização de todo o acervo, existe um projeto associado que prevê a criação do Centro de Restauro de Livro e Papel Guita Mindlin, voltado para atender à demanda da USP para a formação de restauradores profissionais. “Com a criação desse espaço, queremos formar um centro de convergência de múltiplas disciplinaridades em torno do objeto livro”, afirmou.
No fim de abril, segundo Puntoni, a partir de uma proposta de Mindlin, a USP, em parceria com o Ministério da Cultura (Minc), promoverá um simpósio internacional sobre políticas de acervos digitais que trará ao Brasil grandes nomes do universo da digitalização de livros.
“Sua ideia era criar um ambiente acadêmico e cultural de discussão de temas como o direito à cultura, direitos autorais e sustentabilidade de projetos, convergindo para a formação de uma política pública de digitalização de acervos”, afirmou.
Tradição e modernidade
João Grandino Rodas, reitor da USP, conta que o empresário e sua esposa Guita Mindlin – morta em 2006 – foram estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (FD-USP), onde se conheceram. Rodas, que foi diretor da faculdade entre 2006 e 2009, lembra que Mindlin e Guita se notabilizaram como alunos exemplares da universidade.
“Se olharmos para os 192 anos da Faculdade de Direito, ele certamente se destaca entre nomes como Rui Barbosa e o Barão de Rio Branco. Mindlin foi um desbravador em vários aspectos. No que diz respeito à herança deixada à USP, trata-se de um legado imenso, mas ainda maior é a ideia, por ele plantada, de que a universidade precisa juntar tradição e modernidade”, disse Rodas.
A tradição, segundo o reitor da USP, só é importante se for distribuída a todos – e isso só é possível com a tecnologia. “Mindlin reuniu todos esses livros e criou um tesouro incalculável. É preciso considerar o valor de cada obra e o valor de ter juntado essas obras. Mas seu pensamento vai além: ele pensava na digitalização dessas obras para que elas possam ser universalizadas. Aceitamos essa ideia imaginando que isso não se devesse circunscrever simplesmente à Biblioteca Brasiliana”, disse.
Segundo ele, a digitalização de bibliotecas é uma tendência moderna, ainda pouco disseminada no mundo. “Mindlin nos mostrou a necessidade de digitalizar todo o acervo da USP, em suas 41 unidades, que não pode ser confinado entre quatro paredes e limitado à consulta em horário útil”, destacou.
Outro aspecto importante da contribuição de Mindlin, segundo Rodas, foi o esforço feito durante 15 anos para conseguir que a USP aceitasse a doação de seu acervo.
“Percebemos que nas universidades públicas brasileiras geralmente é extremamente difícil a doação de acervos particulares. Isso não pode continuar. Verificamos que hoje, no mundo, várias bibliotecas recebem acervos importantes doados por brasileiros às universidades estrangeiras, porque não conseguem fazer o mesmo no Brasil. Mindlin foi pioneiro nesse aspecto. Graças a ele, esses procedimentos se tornarão mais fáceis”, disse.
“O que mais me encantou em Mindlin é que, além de todos esses aspectos, era uma pessoa extremamente simples, afável, agradável, que deixava a todos à vontade e com isso cativou a todos – esse é um legado imprescindível. Foi uma pessoa de estatura gigantesca que continuou simples como o mais comum dos homens”, disse.
Fonte: Agência FAPESP
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