Muitos especialistas dizem que a infância e a juventude são os melhores períodos da vida para o indivíduo adquirir a prática da leitura – considerada inerente ao desenvolvimento do ser humano por diversificar e ampliar a sua visão de mundo. A questão, diante desse desafio, é saber indicar o que o jovem deve ler para ingressar na literatura: a intimidade com as palavras deve ocorrer pela leitura das obras clássicas ou dos autores contemporâneos? O professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, Paulo Franchetti, e o filósofo e pedagogo, Nivaldo de Carvalho, analisam o tema.
A construção do leitor
por Paulo Franchettii
Antes de refletir sobre qual o melhor caminho para ensinar literatura, penso que o melhor seja tentar responder à pergunta “por que ensinar literatura?”. E, antes de formular essa pergunta, talvez seja útil pensar em que consiste o processo da leitura.
Quando lemos um romance, por exemplo, nós nos colocamos na posição das personagens, repudiamos ou aprovamos o seu comportamento, nos identificamos ou nos indignamos com suas opções morais e movimentos espirituais. Como no cinema, experimentamos emoções que não nos pertencem originalmente, mas que sentimos até com mais intensidade do que as nossas próprias. Estamos ali mais livres. Olhamos para os dramas, os ridículos, o desespero ou a alegria do triunfo sem um interesse particular.
Usei, para destacar o ponto, uma analogia entre um romance e um filme. Mas há grandes diferenças entre eles, como há entre um poema e uma canção com letra e entre uma peça teatral escrita e suas encenações. Uma das mais evidentes é que o cinema é uma arte combinada: o efeito geral é produzido pela combinação de imagem, palavra, música, ruídos, efeitos visuais. Um romance ou um poema pode e deve produzir emoção, riso e outras respostas afetivas, mas apenas por meio da palavra.
Por depender só da palavra, a literatura tem uma força que as artes combinadas não possuem. Ela abre enorme espaço à projeção do leitor. De fato, tudo depende da sua imaginação: a forma de um rosto, por mais pormenorizadamente descrita, é uma para cada leitor. Assim também o tom da voz de uma personagem, uma paisagem, um ruído de guerra, o som de um grito ou de um encontro amoroso. E a importância disso se comprova quando vemos um filme sobre um livro que nos apaixonara. A concretização do rosto, do traço, a associação com uma voz real é perturbante. Mais ainda a presença de tudo aquilo que não aparece ou se apaga durante a leitura.
Por exemplo, quando lemos a descrição dos olhos de Capitu, não pensamos que ela tem mãos. Nem pés. Não imaginamos que vestido estaria usando, nem somos obrigados a lidar com particularidades como brincos, penteado, maquiagem etc. Não há nada senão as imagens que se juntam para dar ideia daqueles olhos. Mas, quando se filma ou se desenha Capitu com traço realista, todas as coisas não nomeadas no texto do Machado [de Assis] (partes do rosto, do corpo, do ambiente) vêm junto com os olhos, empanam o seu brilho, enfraquecem a sua força, de forma que uma representação pictórica dos olhos de Capitu nunca terá, sobre um leitor de Dom Casmurro, impacto semelhante ao dos trechos do romance em que eles são tratados.
Concentremo-nos agora no processo da leitura – na leitura de um romance, por exemplo. O que sucede ali? O leitor por acaso o decifra palavra por palavra? Não, por certo. Ele voa sobre elas, busca ao mesmo tempo o sentido do conjunto e o tom do trecho e do livro. Ele precisa entender se uma passagem é dita em tom irônico. Precisa perceber os sentidos que se formam além dela, pela alusão a eventos históricos, a outros textos, a costumes. E precisa fazer muitas outras operações complexas de interpretação, com base apenas no texto escrito, nas palavras que se sucedem nas páginas. Além de apreciar o ritmo das frases e a justeza ou o inusitado das imagens. Esse leque de capacidades não é trivial. Não é fácil dominar o conjunto complexo de habilidades que permite ao leitor ter pleno acesso ao prazer e à emoção que um bom livro lhe pode dar.
A mais rica fruição da literatura pressupõe ainda um exercício amplo da cultura, naquilo que ela tem de relação com o passado, como continuidade ou ruptura. É o passado que dá sentido ao presente da literatura. Uma obra solta no tempo não tem significação literária, no sentido que damos a essa palavra hoje. Um texto literário faz contínuas referências a outros textos que o precederam, e há alguns em que, sem o conhecimento do texto aludido ou incorporado, o sentido se perde ou, pelo menos, não se apresenta em totalidade.
A literatura é, assim, uma forma de ligação com o passado, uma forma de revivificá-lo. De aprender com ele, mas também uma forma de nos apropriarmos dele. A literatura fala pelo passado e faz o passado falar pelo presente. Ensinar literatura, portanto, em sentido amplo, é criar as condições para que o estudante, o leitor em formação, possa tornar-se ele também um herdeiro desse manancial.
Tornar-se herdeiro significa não só poder compreender, mas poder vivenciar em si mesmo o passado. Isso inclui poder deslocar a sua perspectiva temporal sobre vários assuntos, de modo a compreender que quase nada de “natural” existe no comportamento e nas instituições humanas, que quase tudo é cultural, ou seja, muda ou pode ser mudado. A literatura expõe a historicidade das formas de sensibilidade, convocando o que permanece ainda vivo em nós e o que já não permanece; o que nos rege desde o mundo dos mortos porque ainda é vivo e o que nos rege desde lá sem nenhuma razão para isso.
É certo que uma pessoa pode adquirir os instrumentos necessários para ler literariamente por meio da convivência solitária com os livros, no caso de dispor de acesso a uma biblioteca. Mas como ler literariamente é uma atividade que exige treinamento, referências culturais e repertórios específicos, faz sentido imaginar que a escola forneça meios para o estudante situar-se desde logo no campo literário.
Podemos tentar responder agora à pergunta metodológica que se apresenta, às vezes, com urgência e que foi o gatilho deste texto: deve-se começar o ensino da literatura pelos clássicos ou pelos contemporâneos?
Há quem julgue que pelos contemporâneos, tendo por princípio que se deve começar do mais fácil para o mais difícil. Do que tem mais apelo imediato para o que tem menos. Os que assim pensam acreditam que o essencial é despertar o gosto pela leitura. Entre esses, muitos creem que qualquer forma de leitura é melhor do que nenhuma e por isso não hesitam em usar os best-sellers, o livro ainda fresco da gráfica ou mesmo a adaptação cinematográfica, como degrau para a literatura.
Já os que pensam que se deva começar pelos clássicos têm, como argumento, que à escola compete fornecer a maior quantidade de experiências culturais, bem como quadros amplos de referência. Para esses, o gosto pela e na leitura deve ser construído, não apenas despertado. Esta é a posição com que simpatizo mais.
Para a maior parte das pessoas, as demandas do presente podem incentivar a leitura de best-sellers, livros de autoajuda ou romances-reportagem. Raramente, ainda mais num ambiente culturalmente pobre, um jovem será exposto à literatura de qualidade que nos é legada do passado recente, quanto mais do passado remoto.
No que toca à literatura, assim, creio que o mais interessante que a escola tem a oferecer é uma experiência da tradição viva, na qual os pontos altos de realização possam ser percebidos como tal; é a formação de um repertório de leituras que permita que o estudante, depois, pela vida afora, possa traçar o seu próprio caminho pelo campo da cultura literária, tornando a literatura, para ele, uma experiência plena e uma fonte de prazer intelectual.
Do meu ponto de vista, a questão não é atrair os jovens para a literatura, mas permitir-lhes o acesso à leitura mais refinada, que só a experiência e o repertório podem propiciar. Um jovem leitor não precisa da escola para ler um best-seller. O marketing das grandes editoras o induz a isso. Nem provavelmente para ler um romance contemporâneo sobre tema momentoso. Mas, sem a orientação e o estímulo de um leitor mais experiente, é pouco provável que esse mesmo jovem tenha acesso à beleza dos poemas homéricos, à complexidade da Divina Comédia, das tragédias gregas ou do Quixote ou de tantas outras obras que forneceram, ao longo dos séculos, padrões de gosto e matéria sempre renovada para novas obras literárias – ou mesmo a textos contemporâneos de maior complexidade ou menos investimento de publicidade.
É claro que, para isso, a escola precisa de livros e, sobretudo, de professores bem formados e que tenham vivência literária ampla e íntima. Sem isso – e, na época da explosão do acesso a textos literários pela internet, sem, sobretudo, professores educados e competentes – não há muito que fazer com a literatura na escola. Mas essa é já outra discussão.
Paulo Franchetti é professor titular do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).
“Ensinar literatura (...), em sentido amplo, é criar as condições para que o estudante, o leitor em formação, possa tornar-se ele também um herdeiro desse manancial”
Os jovens e a literatura
por Nivaldo de Carvalho
Atrair o interesse dos jovens para a literatura parece cada vez mais difícil numa época dominada pelas novas tecnologias da informação e da comunicação. Os jovens não parecem dispostos a trocar jogos, músicas e vídeos em celulares e computadores por um livro. Por outro lado, o lançamento de vários best-sellers, com tradução simultânea em várias línguas, hipnotiza uma legião de jovens leitores em todo o mundo. A contradição entre as duas situações se desfaz, ao se desatar o nó que amarra à força o gosto pela leitura ao prazer pela literatura.
Não há interesse pela literatura que subsista sem o incentivo à leitura, mas nem toda leitura é necessariamente literária. Há jovens que estão acostumados a ler jornais, revistas e livros, mas não apreciam literatura. Assim como saber ler e gostar de ler nem sempre coincidem, o contato com a literatura não garante a formação do gosto pelos textos literários, ainda mais quando isso ocorre sob a forma de imposições curriculares na escola.
Os jovens, depois de oito anos de leituras variadas na escola, são apresentados formalmente à literatura apenas no início do ensino médio. Esse contato tardio ocorre sob a forma de um estudo sistematizado baseado na história da literatura. Nessa perspectiva, os textos literários figuram apenas como ilustração de uma determinada estética literária situada no tempo. Excertos das obras constam do livro didático e quase sempre dispensam o contato direto com textos integrais e originais dos autores, exceção feita às leituras obrigatórias dos exames vestibulares. Além disso, os exercícios escolares propostos limitam-se à verificação da leitura realizada sem estimular a reflexão sobre os temas abordados pelo autor.
Muitos jovens terão na escola a única oportunidade de entrar em contato com textos de literatura. Mas essa oportunidade única nem sempre é encarada como uma possibilidade de discussão de valores, de questionamento moral e político e de estímulo à reflexão estética. A opção por um ensino reflexivo exige a leitura direta dos textos, além da seleção de obras e de autores que possam contribuir para a formação do gosto literário dos jovens e para sua avaliação dos produtos culturais consumidos na atualidade.
Um critério bastante utilizado para a seleção dos livros indicados para leitura leva em consideração o gosto dos jovens. A preferência recai quase sempre sobre os últimos lançamentos do mercado editorial, sem uma avaliação mais cuidadosa da qualidade literária dos livros. O perigo desse tipo de escolha não está somente na adequação e submissão ao conformismo e à trivialidade, mas em imobilizar o gosto dos jovens e tratá-los somente como consumidores de banalidades históricas e culturais.
Além desse critério, há a disputa entre autores clássicos e escritores contemporâneos como forma de acesso ao universo literário. Contra os clássicos, invoca-se a ideia de que os jovens têm muita dificuldade para ler textos complexos, considerados chatos e com um vocabulário difícil. Assim, ao invés de prazerosa, a leitura literária torna-se uma penitência interminável. A favor dos contemporâneos, pesam a proximidade da linguagem e atualidade do conteúdo, o que torna a leitura mais agradável e rápida.
Nem todas as obras clássicas são enfadonhas e desestimulantes. Insistir nessa via adia interminavelmente o contato dos jovens com a literatura clássica, privando-os de uma experiência estética insubstituível. Por outro lado, muitos autores contemporâneos são muito difíceis de serem lidos, principalmente os que fazem experimentações com a linguagem. Por isso, a seleção bibliográfica deve equilibrar prazer e desafio, levando em consideração principalmente a qualidade literária das obras e não apenas o seu conteúdo.
A qualidade literária de uma obra não se mede pela época em que foi escrita, mas por critérios estéticos. O texto literário é muito mais do que uma simples história contada por um autor. Há, no discurso literário, além do conteúdo representado pela ação e pelos personagens, a forma ou expressão, os recursos de que dispõe o autor para expor ideias morais, políticas e estéticas, num diálogo crítico com a sua época e com a tradição, visando ao futuro. A literatura ocupa-se não somente do conteúdo, mas principalmente da forma ou expressão.
O discurso literário recria os conteúdos da realidade, conferindo-lhes uma expressão não percebida antes. Portanto, não se trata de realidade reproduzida, mas recriada. O prazer proporcionado pela literatura ultrapassa o nível do entretenimento ou da diversão, pois é um processo de fruição que consiste em perceber a recriação do mundo por meio de vários recursos estilísticos. Assim, a realidade é transfigurada na literatura através da linguagem. A própria linguagem deixa de ser automática no processo de criação literária e ganha contornos inusitados.
Portanto, o gosto pela literatura não é somente gosto pela leitura, envolve também curiosidade e descoberta. Talvez seja essa a pista a ser explorada com os jovens na leitura dos textos literários. Se a juventude é a época de constituição da futura identidade, um período de turbulência e de conflitos para os jovens, a literatura pode atrair a atenção dos jovens, na medida em que apresenta perspectivas, questionamentos e modos de vida diferenciados.
Mas a escolha das obras literárias deve levar em conta a contribuição delas para a formação do gosto do jovem leitor, não somente em termos morais e políticos, mas principalmente estéticos. A leitura do texto literário deve propiciar aos jovens condições de apropriação gradativa da linguagem literária, tornando-os aptos à leitura de textos cada vez mais complexos e intrincados.
Aprende-se a gostar de literatura não somente na escola, mas também fora dela, nos próprios livros e textos, seja por indicação de amigos, seja pela leitura de uma resenha crítica ou ensaio em jornais e revistas. Embora a época atual não pareça coadunar-se com as exigências da literatura, é preciso marcar essa diferença como forma de lançar um olhar crítico para a realidade do mundo atual e das formas de produção cultural contemporânea. A leitura literária contribui também para que se desconfie de gostos moldados por índices de audiência, listas dos mais vendidos e sucessos de bilheteria.
Nivaldo de Carvalho, assessor de comunicação da Escola Vera Cruz, é graduado em Filosofia e Letras pela Universidade de São Paulo (USP)
“(...) o gosto pela literatura não é somente gosto pela leitura, envolve também curiosidade e descoberta. Talvez seja essa a pista a ser explorada com os jovens na leitura dos textos literários”
Fonte: Revista E SESCSP
Adorei o texto.
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