Domínio da linguagem escrita, muito precário na escola e na sociedade em geral, é o grande desafio da educação brasileira
Rubem Barros
Dora é professora aposentada. Vive sozinha em um pequeno apartamento de classe média no Rio de Janeiro. Como o dinheiro é insuficiente, escreve cartas para analfabetos na estação Central do Brasil. Cobra R$ 1 pela redação e mais R$ 1 pelo envio. Via de regra, as histórias de vida que leva ao papel traduzem o desassossego e as esperanças de pessoas apartadas de suas famílias e de sua terra. E não resultam em comunicação, pois quase sempre terminam na lata do lixo.
Ponto de partida de Central do Brasil (1998), filme de Walter Salles ganhador do Urso de Ouro em Berlim, a história de Dora (Fernanda Montenegro) e do menino Josué (Vinicius de Oliveira), a quem ela acorre na busca pelo pai que ele não conhece, espelha algumas das questões centrais do acesso à leitura e ao letramento no Brasil. Mostra um enorme contingente de adultos que não dominam a escrita, as limitações de suas vidas em função disso, o pouco reconhecimento social destinado aos professores e o lugar ocupado pelas religiões para a construção de sentidos entre a população menos letrada.
A esses fatores somam-se outros que fazem do precário domínio da escrita e do parco entendimento da leitura problemas centrais da educação brasileira. Segundo dados de 2003 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apenas uma em cada 289 cidades do país tem uma população que, na média, permaneceu por oito anos ou mais na escola, tempo necessário, segundo a Unesco, para se atingir o alfabetismo funcional. E mais: 1.796 municípios (32,6% do total) apresentam população acima de 15 anos com escolarização média inferior a quatro séries concluídas.
Principal lócus promotor do aprendizado, a escola falha por não dialogar com o universo de origem dos alunos, invalidando suas experiências e expressões. Segundo pesquisa da Fundação Getulio Vargas divulgada em abril, 20% dos jovens entre 15 e 17 anos estão fora da escola, 42% deles por desinteresse. Os resultados das avaliações de habilidades de leitura daqueles que permanecem são insatisfatórios. No Pisa 2000, prova internacional promovida pelos países-membro da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os 5 mil alunos brasileiros participantes ficaram em último lugar entre estudantes de 22 países, atingindo apenas o nível 1 de proficiência (de cinco possíveis). Na Prova Brasil de 2005, os alunos de 8ª série tiveram desempenho médio de 222,6 pontos em 500 possíveis, cinco a menos do que o aferido no Saeb de 2003, quando comparado o mesmo universo de participantes.
Já o Índice Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf), levantamento que avalia, em anos alternados, ora as habilidades de leitura e escrita, ora as matemáticas, mostrou em sua edição de 2005 que os alfabetizados plenos - aqueles que lêem textos mais longos e conseguem fazer relações e inferências - constituem 26% do total da população entre 15 e 64 anos, número idêntico ao aferido na primeira amostragem (2001).
Mas, se o problema é de proporções preocupantes, há variáveis novas, algumas alentadoras. Os anos 90 representaram um segundo momento de universalização do acesso à educação iniciado na década de 60. "Agora estamos convivendo com um aluno que antes se evadia depois de um ano de escola. E a educação tem de trazer respostas para isso", lembra o lingüista Paulo Mendes, consultor do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD).
Analfabetos
7% dos entrevistados pelo inaf*
64% do sexo masculino
77% têm mais de 35 anos
81% pertencem às classes D e E
60% completaram de um a três
anos de estudo
Entre as políticas públicas para o setor, uma das principais apostas é a instituição do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), articulado pelos ministérios da Educação e da Cultura em conjunto com diversos organismos da sociedade civil com vistas a integrar diversas iniciativas já existentes (veja texto na página 42). Uma das metas iniciais do PNLL é reduzir a zero, até o final de 2008, a cota de municípios brasileiros que não contam com nenhuma biblioteca. Hoje eles são 595.
Alfabetizados com nível rudimentar
Lêem apenas títulos e frases; localizam informações bem explícitas
30% dos entrevistados
39% têm entre 15 e 34 anos
64% pertencem às classes D e E
49% têm de 4 a 7 anos de estudo
Letramento entra em cena
Houve também uma significativa mudança conceitual com a entrada em cena da idéia de letramento ou níveis de alfabetismo, a partir da década de 80. Trocando em miúdos, deixou-se de lado a divisão entre indivíduos alfabetizados (capacitados para codificar e decodificar os elementos lingüísticos) e analfabetos. O letramento implica associar escrita e leitura a práticas sociais que tenham sentido para aqueles que as utilizam, além de pressupor níveis de domínio das práticas que exigem essas habilidades.
Experiências que investiram na alfabetização apenas visando dotar os indivíduos do domínio dos códigos, deixando-os depois à própria sorte, naufragaram. No Brasil, o grande exemplo foi o Mobral, programa de alfabetização de adultos levado a cabo nos governos militares, que teve alto grau de reversão do processo de alfabetização dos participantes. Recentemente, a China anunciou fracasso similar em programa desenvolvido entre 2000 e 2005. Os quase 10 milhões de beneficiários da ação viram as escolas fecharem após serem dados como alfabetizados. Acabaram por esquecer o que haviam aprendido.
A professora Magda Soares, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da UFMG, lembra que a entrada no mundo da escrita se dá por meio de dois passaportes. "Um é a tecnologia, que é aprender a codificar e decodificar, saber que a escrita representa os sons da língua, as relações de fonemas e grafemas etc. O outro é o uso dessa tecnologia. Apenas com um desses passaportes não se entra no mundo da escrita."
Subjacentes à idéia de letramento, existem no campo da educação duas correntes distintas, a liberal e a radical. A primeira adota o conceito de letramento funcional, voltado à integração do indivíduo à sociedade e ao mundo do trabalho, por meio dos desenvolvimentos cognitivo e econômico. A segunda, fortemente influenciada pelo educador Paulo Freire, acredita que leitura e escrita são meios de conscientização e transformação das realidades sociais.
Reflexo disso está presente no cruzamento dos resultados da prova do Pisa com as entrevistas. Há países em que a leitura é pragmática, mas os leitores declaram não gostar de ler, como na Coréia do Sul, que ficou em 7º lugar na prova. Já os brasileiros, apesar da sofrível capacidade leitora, estão entre os que declaram maior gosto pela leitura. "Ainda que se minta sobre o fato de gostar de ler ou de ganhar um livro de presente, a leitura é um valor de reconhecimento social, o que pode ser um ponto de partida", diz Vera Masagão, coordenadora de projetos da ONG Ação Educativa.
Hoje, não são poucos aqueles que, mesmo mais afeitos à idéia radical, consideram o modelo funcional como um avanço. "Chegar ao modelo adaptativo, para funcionar bem com uma sociedade global, não é uma conquista pequena, se for bem feita", acredita Roxane Rojo, lingüista da Unicamp. Mas alerta que a escola está distante das culturas locais e juvenis. "Há uma cisão radical entre o que é da escola e o que é da vida", diz.
O problema, no entanto, tem uma face mais complexa e não se restringe ao Brasil ou a países em desenvolvimento. "Vivemos uma crise da linguagem escrita. No final dos anos 80, estive no Centro de Estudo da Leitura, na Universidade de Urbana-Champaign, nos EUA, e verifiquei que as deficiências na leitura eram uma grande preocupação para os americanos e que havia programas de intervenção e pesquisa", diz a educadora portuguesa Isabel Alarcão.
Novas métricas
A própria existência do Inaf, realizado em conjunto pela Ação Educativa e pelo Instituto Paulo Montenegro, é reflexo dessas mudanças no campo teórico. O Inaf é o primeiro instrumento voltado a medir o uso social da leitura em contexto não escolar. Como lembra Magda Soares, avaliações como o Saeb medem apenas o letramento escolar, avaliando os alunos por meio de questões de múltipla escolha. Já o Inaf vê, por meio de entrevistas, como o indivíduo se relaciona com o texto de uma revista - se e como busca as informações, como as relaciona etc.
Alfabetizados com nível básico
Lêem textos curtos, localizam informações explícitas ou que exijam pouca inferência
38% do total
53% são mulheres
40% pertencem à classe C
40% têm de 4 a 7 anos de estudo
Mesmo assim, ainda é um instrumento com limitações, alerta Vera Masagão. "O Inaf mede a dimensão cognitiva da leitura, e não a capacidade de leitura literária, por exemplo." Ou seja, para um diagnóstico mais preciso, seria necessário pesquisar mais a fundo as habilidades daqueles que hoje são considerados leitores plenos.
Para Magda Soares, da UFMG, três aspectos são centrais para desaguar nos baixos índices: ambiente familiar com escasso acesso ao livro, concorrência dos meios audiovisuais e formação inadequada dos professores. Quanto à influência familiar e dos meios audiovisuais, a escola pouco pode fazer, a não ser ampliar a noção de letramento, incorporando novos tipos de alfabetização (digital, audiovisual etc.). "A interferência que se pode fazer imediata e diretamente é a mudança na formação do professor. É difícil entender por que se faz isso tão lentamente ou não se faz", diz Magda.
Para outro militante histórico, Ezequiel Theodoro da Silva, presidente da Associação de Leitura do Brasil e ex-secretário de Educação de Campinas, o país avançou nos planos teórico, epistemológico e acadêmico desde o primeiro Congresso de Leitura (Cole), em 1980. "Há muitas obras e grupos de pesquisa dedicados à reflexão. O que não muda é a falta de infra-estrutura física e humana. A metade da rede escolar pública não tem biblioteca", afirma.
Leitura e literatura
Um fator histórico que distorce a noção de leitura no país é a identificação do leitor apenas como leitor literário, letrado, na acepção original da palavra. A identificação dos gêneros textuais de uso social - aqueles que o cidadão comum lê cotidianamente, como jornais, revistas, letreiros, legendas de filmes etc. - e sua introdução no universo escolar nas últimas décadas são essenciais para dar sentido social às práticas de leitura e escrita.
Alfabetizados com nível pleno
Lêem textos mais longos, localizam e relacionam mais de uma informação, comparam textos, identificam fontes
26% do total
53% são mulheres
70% têm até 34 anos
60% têm pelo menos o ensino médio completo
Mais de 1/3 são das classes A e B
"Ler é mais do que ler literatura, é inserir o indivíduo na sociedade. A literatura tem exigências que outras esferas não têm. É preciso identificar o que alunos trazem de seu ambiente para ensiná-los a narrar, expor, argumentar. Isso é dever da escola", defende Paulo Mendes, consultor do PNLD.
Magda Soares lembra que os aprendizados de leitura e escrita, apesar de paralelos, são diferentes, seja do ponto de vista lingüístico, psicológico ou social. E que a leitura é mais presente e exigida do que a escrita. Cita como momento mais crítico de vazio conceitual, na época em que se começava a adotar a idéia de letramento, que muitas escolas exageraram na dose da diversidade de gêneros textuais. "Andaram botando as crianças na escola para escrever rótulo e bula de remédio. São gêneros que têm de ser lidos, mas não se tem de aprender a escrever isso na escola", pondera.
Outro equívoco que a introdução de novos gêneros trouxe é o de deixar o texto literário para quando os alunos estiverem maduros. O melhor caminho é o de diversificar as experiências. "Colocar a literatura no meio de outras produções é muito bom. É preciso dessacrilizar certos produtos em relação a outros. Idolatrias, às vezes, mais afastam do que ajudam", pondera Regina Zilberman, professora de literatura, pesquisadora do CNPq e autora de A Literatura Infantil na Escola (Global, 2006).
Em meio a outras produções, a literatura pode criar diálogos importantes, diz a autora. "Apesar de termos todas as marcas da diversidade, sempre pensamos a partir de uma perspectiva homogeneizadora, a partir do centro, uma coisa meio narcísica. A literatura dá a possibilidade de lidar com a idéia do outro, com o pensamento do outro, com a alteridade."
A caminho de Bom Jesus do Norte, a Dora, de Central do Brasil, usa uma metáfora sobre os meios de transporte e as relações amorosas para responder a Josué que, cansado, diz preferir viajar de táxi: "Melhor o ônibus. O ônibus tem um caminho certo. O táxi, não. Toma um rumo qualquer e depois se perde", fala em alusão aos que trocam de amores. No caso dos caminhos da leitura no Brasil, a melhor solução parece ser percorrer os caminhos do táxi. Porém, ofertando os lugares dos ônibus.
Para saber mais
Letramento, um Tema em Três Gêneros, de Magda Soares (Autêntica/Ceale, 1998)
Letramento no Brasil, org. Vera Masagão Ribeiro (Global Editora, 2004)
Literatura e Educação, de Gabriel Perissé (Autêntica, 2006)
Fim do livro, fim dos leitores?, de Regina Zilberman (Senac, 2001)
Fonte: Revista Educação
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