terça-feira, 23 de março de 2010

Crepúsculo da leitura

A contradição entre adotar livros de apelo popular e censurar obras consagradas expõe a falta de critério das políticas de incentivo à leitura
Edgard Murano
Casal protagonista do filme Crepúsculo, versão de best-seller
incorporado à lista de livros da rede de ensino paulista

Os incidentes pareciam acidentais e isolados. Mas com ações controversas, de desconcertante sintonia, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina transformaram em vidraça as políticas de estímulo à leitura no Brasil.

A rede municipal de ensino carioca, por exemplo, mandou recolher um livro didático de história da coleção Projeto Pitanguá (editora Moderna) por conter uma gravura supostamente imprópria a crianças do 4o ano do fundamental. O desenho Cena Canibal (1593), um clássico da iconografia, é de Theodore de Bry (1528-1598) e mostra índios tupis torturando e canibalizando rivais. A apostila foi selecionada por professores da rede a partir da lista recomendada pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do MEC.

Em Santa Catarina, o premiado escritor Cristovão Tezza não esperava, por sua vez, ver seu livro Aventuras Provisórias (Record) censurado nas escolas do estado onde nasceu. O governo havia comprado 130 mil exemplares da obra para o ensino médio, mas depois tomou o conteúdo como inadequado à faixa etária - descrições de sexo e palavras de baixo calão.

Tezza declarou-se "horrorizado" com a retirada a fórceps de sua obra das escolas. Segundo ele, não haveria nada em seu livro que os adolescentes não descubram em outras mídias e não possa ser contextualizado nas discussões em aula.

Manoel de Barros
De outra espécie, porém, foi o "horror" manifestado pelo governador de São Paulo, José Serra, no mês passado, sobre a coletânea em quadrinhos Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol (Via Lettera), uma das seis obras retiradas das escolas paulistas depois de serem escolhidas para o programa Ler e Escrever, da Secretaria de Educação do Estado, para serem usadas em aula.

A secretaria comprou R$ 35 mil em exemplares da HQ, durante a gestão de Maria Helena Guimarães de Castro, mas que foram retirados das escolas pelo atual titular da pasta, o ex-ministro Paulo Renato de Souza. A obra foi tida por sua gestão como inadequada para adolescentes devido à linguagem chula e a alusões sexuais. O mesmo fio da navalha que decepou a HQ atingiu o poeta Manoel de Barros. Seu Memórias Inventadas - A Infância (Planeta) também foi recolhido, por suposto conteúdo erótico. Assim ocorreu com a coletânea Poesia do Dia: Poetas de Hoje para Leitores de Agora (vários autores, editora Ática), Um Campeonato de Piadas (Nova Alexandria), de Laer­te Sarrumor e Guca Domenico; O Triste Fim do Menino Ostra e Outras Histórias (Girafinha), de Tim Burton; e Manual de Desculpas Esfarrapadas: Casos de Humor (FTD), de Leo Cunha.

Repercussão
A operação lembrou o caso dos livros escolares produzidos pela Fundação Vanzolini e distribuídos pelo governo de São Paulo em março, com erros de informação graves, como mapas com dois Paraguais, a localização invertida do Uruguai e a ausência do Equador. Na ocasião, a Secretaria de Educação atribuiu o erro à fundação. Esta, por sua vez, afirmou que os professores responsáveis pelo material foram indicados pela própria secretaria.

Agora, o jogo de empurra continua. A Ática, responsável por Poesia do Dia..., alega que a obra não integra o catálogo de literatura infantil, mas juvenil, portanto não recomendada a menores de 13 anos, indicação que está explícita na contracapa, mas que o governo estadual desconsiderou. Segundo a editora, foram solicitados pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), do governo de São Paulo, 28 livros de seu catálogo, entre os quais 1.743 exemplares da coletânea.

A exposição da vulnerabilidade de programas de incentivo à leitura embalou uma repercussão em cadeia em torno da adequação de obras escolhidas pelo governo para os alunos da rede pública. Até Um Contrato com Deus (Devir), do desenhista Will Eisner, mereceu palmatória por parte de educadores paulistas por integrar a lista de livros distribuídos pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), do governo federal, para bibliotecas de escolas.

Tudo por causa da cena em que uma menina se insinua a um adulto em troca de dinheiro - nada que um Jorge Amado ou um Aluísio Azevedo, igualmente adotados por programas do gênero, deixaram de mostrar em seus romances. A imprensa, para variar, fez uma cobertura emocional de cada episódio. O jornal Agora São Paulo chegou ao ponto de soltar a seguinte manchete referente à obra de Eisner: "MEC distribui livro com pedofilia para alunos de 11 anos".

A censura atingiu o poeta Manoel de Barros. Seu livro Memórias Inventadas
foi recolhido em São Paulo sob o pretexto de conter trechos eróticos

Por meio de nota oficial, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo admitiu que se equivocou ao selecionar obras como Dez na Área... como material de apoio a alunos da 3ª série. Segundo o órgão, só 1.216 cópias da obra - uma entre os 800 títulos selecionados - foram distribuídos às escolas, menos de 1% dos 1,79 milhão de livros postos à disposição das crianças.

Potter obrigatório

Estimar a porcentagem de adolescentes que tiveram contato com o material, no entanto, não resolve a questão de fundo: o papel do Estado na definição do que lemos. Num outro lance que colocou em evidência os critérios de seleção de livros pelo Estado, São Paulo decidiu incluir best-sellers nos acervos de suas escolas. Autores de apelo popular como J. K. Rowlings, criadora da saga Harry Potter, e Stephenie Meyer, idealizadora da franquia Crepúsculo, ganham espaço até o fim do ano em bibliotecas de 4,2 mil escolas para ficar, ao lado de obras de Machado de Assis e José de Alencar, ao alcance de 3,3 milhões de estudantes de 5ª a 8ª séries do ensino médio e fundamental.

O governo estadual vai adquirir 2 milhões de exemplares ao todo, entre livros que estão na moda, como os de Harry Potter, e obras clássicas como Sagarana, de Guimarães Rosa, e Estrela da Vida Inteira, de Manuel Bandeira. Os investimentos chegam a R$ 19,3 milhões.

Numa aparente inversão de valores literários tradicionais, a mesma mão que corta um Manoel de Barros incentiva um Harry Potter.

Déficit

A decisão de incluir títulos mais atraentes ao público jovem no acervo das escolas pode ser explicada pelos resultados preocupantes obtidos em pesquisas como a Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro. Segundo o estudo, divulgado ano passado, só 35% da população dedicam-se à leitura em seu tempo livre, equivalente a 60 milhões de pessoas, ante 73% que veem TV. Vale dizer que, desses 60 milhões, cerca de 67% têm entre 18 e 24 anos.

Não por acaso, as políticas públicas de estímulo à leitura movimentam milhões anualmente. Em 2008, só o PNBE investiu mais de R$ 65 milhões nos ensinos infantil, fundamental e médio. Em 2009, já foram distribuídos 10.389.457 de exemplares às bibliotecas de todo o país, beneficiando mais de 20 milhões de alunos de 53 mil escolas.

Fora as iniciativas da União, é com parte de orçamentos anuais destinados à Educação que estados e municípios saem a campo para abastecer escolas de todo o país, com a inclusão de obras no currículo ou no acervo de bibliotecas.

Caso a caso

Em situações como a da censura à literatura que se julga erótica, o problema pode ser menos a obra escolhida que o critério usado para escolhê-la. No caso dos best-sellers com aval do Estado, há uma ruptura com o cânone literário que será saudável se lastreada por política de leitura que use o sucesso de vendas como trampolim para novas leituras, e não só para levar mais leitores a Harry Potter ou Crepúsculo.

Para o professor de literatura Flavio Aguiar, o problema está em saber como, diante das verbas de fato disponíveis, os órgãos de Estado estabelecem suas prioridades e políticas para o setor de educação.

- A lista de livros escolhidos, de Harry Potter a Sagarana, não me revela um critério auto-evidente. Fica um mistério. Quanto à inclusão de livros com cenas de sexo e palavrões, não vejo problemas conceituais. A questão é saber se os livros são bons e o que será feito com isso. Se fosse por cenas de sexo, a Bíblia também deveria ser proibida - diz Aguiar.

Narrativas atraentes como o bruxo inglês Harry Potter
podem ser úteis para conquistar leitores, dizem especialistas

Prioridade

Segundo Jane Paiva, da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio (Uerj) e coordenadora de pesquisa sobre o PNBE, não há por que temer os best-sellers.

- Não precisamos temer que os jovens se aproximem dessas obras desde que sejam formados para ser leitores, e a formação de leitores apresenta caminhos complexos e imprevisíveis. O problema não são as obras oferecidas por programas de leitura, que são mais programas de distribuição de livros do que de leitura propriamente dita - afirma a professora, para quem o problema é a incapacidade de a escola lidar com livros, em bibliotecas ou nas salas de aula.

Seja qual for o caso, estabelecer o que a juventude deve ou não ler se revela uma tarefa delicada, e é incerto que dispense debate mesmo quando bem-intencionada. Crítica literária, professora da USP e da PUC e colunista de Língua, Beth Brait é a favor da leitura, ainda que de best-sellers ("Se as crianças amam, podemos, com inteligência, levá-las a ler outras coisas também"), mas lamenta que a inclusão deles ocorra em detrimento de outras obras, tão mais significativas.

- Podemos lamentar as ausências, jamais as presenças. O que não acho correto é que não se junte a essas obras, por exemplo, O Menino que Vendia Palavras, de Ignácio de Loyola Brandão - afirma ela.

O jornalista Marcelo Coelho, do jornal Folha de S.Paulo, vê com bons olhos a iniciativa do governo paulista de combinar títulos de sucesso e obras fundamentais como complemento ao currículo dos estudantes.

- Não sou dos que esbravejam contra Harry Potter. O que notei de bom em sua estrutura é que nada é entregue de imediato ao leitor. Acho isso um instrumento fundamental para criar o gosto pela leitura. Quem se interessa pelas primeiras páginas se vê "obrigado" a continuar lendo. Livros acessíveis demais, ao contrário, terminam desestimulando o leitor - afirma Coelho.

Complemento
O termo "cânone", do grego kanón, é o nome dado a um conjunto de regras ou critérios, em geral ligado às artes, que servem como modelo a ser seguido. O cânone literário brasileiro, por exemplo, inclui nomes como Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Não é incomum que obras nacionais de qualidade sejam descobertas por novos leitores apenas por meio de incentivo oficial. Por isso, a presença de best-sellers como leitura oficial é uma inovação considerada radical para o ensino brasileiro.

Para muitos, obras do gênero já seriam suficientemente difundidas pelo mercado, dispensando estímulo estatal. No Brasil, os sete títulos da série Harry Potter já venderam 3 milhões de exemplares (no mundo, foram 400 milhões). Crepúsculo, também adaptado para o cinema, até o momento arrecadou US$ 138 milhões de bilheteria só nos EUA. Títulos nacionais dificilmente alcançam números e cifras como essas. Mas o desempenho dos best-sellers para adolescentes inseridos em listas oficiais de leitura podem revelar-se uma tentativa de despertar o gosto pela literatura nos alunos - sem perder de vista o que de melhor se escreve em português.

A iniciativa do Estado de dialogar com novos autores e o episódio do recolhimento das obras evidenciam a relação ambivalente das políticas públicas de leitura com a nova geração de leitores. Ao mesmo tempo em que se busca o gosto dos jovens por narrativas contemporâneas testadas pelo mercado, teme-se expô-los a conteúdos impróprios, hoje cada vez mais difíceis de delimitar e acessíveis por outras mídias.

Orlando Pedroso, organizador do polêmico Dez na Área..., aprova as aquisições literárias pelos programas do governo. Mas destaca dois erros cruciais no episódio do recolhimento dos livros com linguagem inadequada.

- Quanto à seleção dos livros, o que pode ter havido é engano ou displicência. Essa é uma falha que a auditoria da secretaria de educação deve encarregar-se de descobrir e corrigir de imediato. Os livros devem ser analisados por pessoas competentes, aptas a julgar a quem esse ou aquele título se destina. Se o governo implanta um programa de compra de livros, deve levar tão a sério quanto a contratação de médicos para a rede pública de saúde. Especialistas e educadores devem, ao máximo, evitar erros e aperfeiçoar os critérios - afirma o ilustrador.

O segundo erro, para Orlando, foi a maneira como a questão foi enfrentada, ao se denegrirem livros que tinham outro destino que não crianças do 1º grau.

- Tanto o governador Serra quanto a mídia erraram, pinçando situações isoladas e que estavam dentro do contexto das obras para denegrir um álbum que está entre os melhores já publicados no Brasil [referência ao livro Dez na Área...] - justifica Orlando.

Detalhe da gravura Cena Canibal (1593), de De Bry, que fez a secretária
Municipal de Educação do Rio de Janeiro censurar livro de história: exagero

Bizarrice oficial
Jane Paiva, da Uerj, classificou como "bizarro" o episódio da proibição. Para a professora, a polêmica revelou como alguns conjuntos mais conservadores da sociedade brasileira apresentam uma "visão estreita" sobre o acesso à cultura literária e o que deve ou não ser lido pelas crianças.

- Esse incidente mostra como nossos dirigentes não são capazes de dialogar com a sociedade, e preferem impor seus valores. É estarrecedor que o sistema de ensino exerça tal controle sem fazer disso um motivo para discutir o papel educativo da leitura e elevar a compreensão das pessoas sobre o significado da escola pública e da ação do gestor público - afirma Jane.

Importante ferramenta de estímulo ao hábito da leitura, os programas oficiais de definição de obras literárias para consumo escolar não deveriam, por princípio, provocar confusões. Um livro escolhido para adoção em salas de aula deveria, como sugere a pesquisadora da Uerj, ser pretexto para um debate além das fronteiras da linguagem dos alunos. Tal como está, a falta de um critério claro para as políticas de incentivo revela-se como a ponta de um iceberg que, pequeno por fora, sinaliza problemas muito mais profundos.

Fonte: Revista Língua Portuguesa

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