Pesquisadora argentina defende que, para trabalhar com produção de textual, os professores também precisam ser bons leitores e escritores
Ana Gonzaga
MIRTA TORRES
"Tal como um piloto de avião precisa acumular
horas de voo para ser hábil, um escritor precisa
somar muitas oportunidades de escrita." Foto: Axel Indik
Se ensinar as crianças a produzir textos de qualidade é um desafio, preparar os educadores para realizar essas tarefas é uma responsabilidade igualmente complexa e instigante. E é essa missão que Mirta Torres tomou para direcionar sua carreira. Especialista em didática da leitura e da escrita, ela já foi diretora de Educação primária de Buenos Aires e esteve à frente de vários programas de melhoramento pedagógico.
Atualmente, coordena um grupo que trabalha com a alfabetização de alunos que foram reprovados ou entraram na escola mais tarde e também integra o projeto Maestro + Maestro, que, prevendo dois professores para cada sala de aula, visa diminuir as dificuldades de estudantes do 1o grau, etapa em que se concentram os maiores índices de repetência no sistema argentino. Apesar da pouca afinidade com a língua portuguesa, Mirta garante que sua experiência pedagógica na Argentina pode ser bastante útil para os professores que lidam com produção de texto no Brasil. "Valem o raciocínio e as estratégias", diz ela, que concedeu esta entrevista por telefone à NOVA ESCOLA de sua residência, em Buenos Aires.
Como definir o que é uma produção de qualidade?
MIRTA O escritor tem de ter um propósito claro que o leve a escrever, tal como preparar um texto para o seminário ou um convite para uma festa.
O bom texto é aquele que cumpre o propósito de quem o produz. Para isso, o que é preciso ser ensinado aos alunos?
MIRTA Diversos aspectos colaboram para que sejam produzidos textos qualificados entre aceitáveis e bons. A turma toda deve ser incentivada a escrever de maneira habitual e frequente. Tal como um piloto de avião precisa acumular horas de voo para ser hábil, um escritor precisa somar muitas oportunidades de escrita. Na prática, quer dizer que os estudantes devem ser estimulados a elaborar perguntas sobre um tema estudado e resumir a matéria para passar a um colega que faltou. São escritos menos ambiciosos, porém também exigem escrever, ler e corrigir. Embora, em muitas situações escolares de escrita, o texto não tenha outro propósito a não ser o de escrever para aprender a escrita, é fundamental gerar condições didáticas com sentido social. Elas devem garantir a construção de produções contextualizadas, que ultrapassem os muros da escola, como uma solicitação por escrito para o diretor de um museu, de permissão para uma visita. Assim, antes de começar a escrever, aprende-se que é preciso saber quem é o leitor e as informações necessárias.
Por isso é ruim propor que se escreva sobre um tema livre ou aberto, por exemplo, "Minhas Férias"?
MIRTA A escrita nunca deve ser livre. Precisa ser produzida em um contexto, sempre. A psicolinguista argentina Emilia Ferreiro caracteriza muito bem essa questão. Ela diz que "não há nada menos livre do que um texto livre". Muitas coisas incidem sobre qualquer texto: os propósitos que guiam a escrita, os destinatários e a situação comunicativa. As crianças têm de aprender que o material deve se refletir no leitor.
Como os educadores podem ajudar os estudantes a refinar seus textos?
MIRTA Vou responder citando um caso de alunos de 7 anos que estavam reescrevendo a história de Pinóquio. Eles ditavam para a professora: "Pinóquio caiu no mar e a baleia o engoliu. A baleia ficou com Pinóquio em sua barriga durante três dias e depois de três dias jogou Pinóquio na praia". Ela leu em voz alta o parágrafo, comentou que algo soava mal e releu enfatizando o nome Pinóquio. "Fala-se muitas vezes o nome Pinóquio", concluíram. "Como poderíamos evitar isso?", ela perguntou. Os pequenos sugeriram correções: "Pinóquio caiu no mar e a baleia o engoliu. A baleia ficou com
ele em sua barriga durante três dias e depois de três dias o jogou na praia". Depois
disso, a professora sugeriu que o fragmento correspondente do conto fosse relido, o que resultou na troca de barriga por ventre. Para evitar a repetição da expressão "três dias", foram propostas algumas opções: "ao final desse tempo", "logo", "depois" e "então". As crianças escolheram "logo". Assim que se chegou à terceira versão, um menino disse que algo soava mal, repetindo a expressão que a docente já havia usado. Ele continuou: "Quando Pinóquio cai no mar, trata-se de uma baleia, uma baleia qualquer. Depois, quando ela carrega Pinóquio durante três dias na barriga, no ventre, então é a baleia porque não se trata de uma baleia qualquer". Então, foi reescrito: "Pinóquio caiu no mar e uma baleia o engoliu. A baleia ficou com ele em seu ventre durante três dias e logo o jogou na praia".
Como a professora fez para que os alunos incorporassem essa prática?
MIRTA Durante a produção, ela recordou com a turma como e por que havia sido substituído o nome Pinóquio a fim de que fosse elaborada uma regra geral, registrada no caderno: "Quando se fala em um personagem e o leitor sabe que se fala dele, não é necessário escrever seu nome. Podemos colocar 'o', 'a', 'os', 'as'".
Para escrever bem, é fundamental ser um bom leitor?
MIRTA Sim. A formação leitora ajuda na formação do escritor. A familiaridade com outros textos fornece modelos e conhecimento sobre outros gêneros e estruturas. Devemos ler como escritores: voltar ao texto para verificar de que maneira um autor resolveu um problema semelhante ao que temos em mãos, por exemplo. No mais, a leitura desperta o desejo de escrever. Cabe à escola abrir diversas possibilidades: oferecer títulos que fascinam crianças e jovens sem reforçar o que o mercado já oferece de maneira excessiva. Não precisa ofertar livros do Harry Potter, mas obras de Robert Louis Stevenson (1850-1894), como A Ilha do Tesouro, precisam ser recomendadas. Ambos são valiosos, só que, se os do segundo tipo não forem oferecidos, dificilmente os leitores vão decidir lê-los. Mas há que destacar que nem todo bom leitor é um bom escritor. Muitos de nós somos excelentes leitores, porém somente escrevemos de modo aceitável.
O que se espera de um educador como leitor?
MIRTA Ele deve desfrutar da leitura, estar atento aos gostos dos estudantes e considerar sua importância como uma ponte entre eles e os textos. Pequenas, as crianças não podem sozinhas e, já maiores, precisam de ajuda para acessar grandes obras, que não enfrentariam por iniciativa própria. É válido destacar que o docente que seja um bom leitor é capaz de descobrir a ambiguidade, a obscuridade ou a pobreza presentes nos textos e compartilhar isso com o grupo.
A partir de quando os alunos devem produzir textos?
MIRTA Essa atividade pode ser anterior à aquisição da habilidade de escrever. As discussões entre eles e o professor sobre "como fica melhor", "como se poderia dizer", "o que falta colocar" permitem refletir sobre a escrita. Assim, muitos, antes de estarem plenamente alfabetizados, já conhecem as características da linguagem escrita por terem escutado bastante leitura em voz alta. Quer dizer, já podem se dedicar à produção de textos, como ditantes. Lembro-me de um projeto chamado Cuentos de Piratas, desenvolvido com crianças de 5 anos. A professora lia para elas os contos e todos levavam os livros para casa para reler e folhear. Depois, juntamente com a docente, faziam listas de personagens, tomavam nota dos conflitos que apareciam em histórias de piratas, colocavam legendas na imagem de um barco: timão, vela, proa, popa. Finalmente, em grupo, criaram uma história de piratas.
Quais são as etapas essenciais da produção de texto?
MIRTA A escrita propriamente dita leva tempo: se escreve e se relê para saber como
prosseguir, o que falta, se está indo bem, se convém substituir algum parágrafo ou reescrever tudo. O processo de leitura e correção não é posterior à escrita, mas parte dela. Ao considerar terminado, o passo seguinte é reler ou dar para outro leitor fazer isso e opinar. Feitas as correções finais, passa-se o texto a limpo com o formato mais ou menos definitivo. Contudo, as etapas não devem ser enumeradas porque não são fixas e sucessivas. Elas constituem um processo de vai e vem.
Como o educador deve escolher o que enfocar primeiro na revisão?
MIRTA Cada texto é único. Todavia, é imprescindível - sobretudo com turmas que já têm autonomia na produção - fazer uma primeira leitura para checar a coerência. Se os alunos se concentrarem em detalhes, podem não conseguir checar a coerência geral.
Fazer intervenções enquanto os estudantes produzem é correto? Ou é melhor deixá-los terminar e revisar só ao fim do trabalho?
MIRTA As situações didáticas de escrita não são todas iguais. Em alguns casos, é interessante observar os escritos durante o processo para ajudar a turma a relê-los, a retomar o fio do relato e a corrigir uma expressão. Em outros, é melhor deixar que escrevam sem intervir. Há alguns anos, em um projeto com crianças de 7 e 8 anos, lançamos mão de um recurso didático que deu ótimos resultados. Organizávamos as aulas de modo que não houvesse tempo suficiente para terminar os textos, fazendo com que o grupo produzisse apenas uma parte dele. Na aula seguinte, a produção era lida para recordar até onde haviam chegado e decidir como continuar. Essa situação genuína da releitura permite descobrir erros, pensar formas apropriadas de expressão, enfim, ajuda a tomar distância do escrito e retomá-lo como leitor.
É válido que os próprios alunos revisem os textos dos colegas?
MIRTA Minha experiência mostra que nem sempre é produtivo que os estudantes leiam mutuamente as produções dos companheiros. Os menores não entendem a letra e os maiores nem sempre sabem o que procurar, o que faz com que fiquem detidos em detalhes que não interferem na qualidade final. A revisão dos colegas ganha valor quando o professor propõe revisar conjuntamente o texto, orientando a leitura e sugerindo opções. O texto eleito para ser revisado coletivamente deve representar os obstáculos que a maioria encontra. Uma vez descobertos no texto do companheiro os
aspectos que devem ser revistos, o professor pode sugerir que cada um revise sua própria produção.
Como ensinar gramática e as normas da língua no interior das práticas de leitura e escrita?
MIRTA Efetivamente, se recorrem à gramática e às normas da língua quando é necessário penetrar em aspectos da compreensão de um texto, como "qual é o sujeito do parágrafo?", mas principalmente para revisar. De acordo com a idade da garotada, alguns aspectos são retomados em outros momentos, dedicados só à reflexão gramatical.
É comum encontrarmos pessoas que dizem não saber escrever bem e se sentem mais seguras ao falar, o que leva a entender que a passagem do oral para o escrito é o ponto de dificuldade delas. Como isso pode ser enfrentando na escola?
MIRTA Não creio que isso se deva à passagem do oral para o escrito. A fala permite
gestos, alusões que reforçam o peso do que foi dito. Temos uma grande prática cotidiana na comunicação oral e muito menor na escrita. Quem considera mais fácil se comunicar oralmente está, sem dúvida, pensando em trocas familiares e não em apresentações orais formais, como as conferências, que exigem verbalizar e organizar todos os momentos da exposição. Nesses casos, as dificuldades encontradas são parecidas com a de escrever. Ensinar a escrever e a falar de forma aceitável exige empenho do professor, que deve guiar a turma com mãos firmes e seguras.
Fonte: Nova Escola
Estou totalmente de acordo com Mirta.
ResponderExcluirSou professora y as duas coisas que adoro são ler livros e a cidade de Buenos Aires!
Comprei muitos livros em espanhol para aprender a falar.
Levei todos meus livros a meu aluguel Buenos Aires , fiz as malas e voltei para minha casa!