sexta-feira, 2 de julho de 2010

Para gostar de ler... na escola

Encontrar o prazer na leitura depende de estímulos certos na idade certa. Entenda melhor como funciona a escolha dos títulos indicados para as crianças e as estratégias de educadores para estimular esse hábito

Denise Mirás

Em tempos como estes, em que a criança é cercada de informações e apelos dos mais diversos meios de comunicação, a formação do hábito de ler exige cada vez mais dos professores a aplicação de estratégias que despertem o gosto pelos livros, de forma que ele se mantenha por toda a vida – na verdade, pelo estímulo da imaginação, driblando o argumento dos adolescentes de que é “chato”. E, se a família tem papel fundamental nesta tarefa, a batalha dos responsáveis pelo ensino de literatura nas escolas é diária - e é dura. Ainda mais no caso do trato com jovens que se agitam em grupos, conectados à internet, que se preparam para o vestibular reclamando dos clássicos, da linguagem “difícil” e dos longos trechos descritivos que escapam à sua realidade.

Mas, se essa luta exige um arsenal de táticas pedagógicas, que inclui discussão de obras em blogs, por exemplo, existem soluções criativas e baratas que também estão ajudando a formar e manter leitores, daqueles que carregam os livros para cima e para baixo e não largam as “viagens da imaginação” nem em viagens reais, durante as férias.

Silvia Fichmann, pedagoga com especialização em tecnologias da comunicação aplicadas à educação, trabalha na Escola do Futuro, da USP, e vai direto ao ponto: “Muitas vezes, em vez de a escola estimular o aluno à leitura, se dá o contrário. Dependendo do professor, a criança sai de lá odiando isso.” Silvia observa que, na infância, normalmente a criança gosta muito de ir a livrarias e feiras, atraída pelos livros com muitas imagens, coloridos. Mas, com o tempo, pode deixar de gostar. Como driblar essa situação? “É preciso criar estratégias diferentes em vez de impor. Por que todos têm de ler determinada obra? Podemos selecionar dez, de estilos diferentes, e dar chance ao aluno de escolher um. Depois, cada um pode ‘apresentar’ o que leu de forma criativa, seja por slides, imagens, dramatização, trocando experiências e se motivando por outros estilos.” Para Silvia, há ferramentas mais recentes a serem utilizadas. “A internet motiva a ler mais sobre todos os assuntos em diferentes formatos. Podemos pensar em um mix: as crianças leem e depois criam blogs para discutir aspectos das obras.”

Não existe imposição de livros pelo Ministério da Educação, ou por uma Secretaria Estadual como a de São Paulo. Existem, sim, os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), com orientações à formação do leitor, do ensino fundamental ao médio, “menos sistemática e mais como ajuda do ponto de vista das escolhas”, “privilegiando a base da literatura brasileira – não só de tradição literária, mas também as contemporâneas significativas” e mesmo de outras nacionalidades.

Para Silvia, que coordena o Linca (Laboratório de Investigação de Novos Cenários de Aprendizagem), na Escola do Futuro, é possível motivar a leitura trabalhando com criatividade. Os gêneros contam, sim, para a criança ou o adolescente ser motivado. Conta também a adequação à idade e à personalidade da criança. “O segredo é o equilíbrio”, diz Silvia.

CLÁSSICOS: A FUVEST MANDA

Assim, as decisões cabem a cada escola – e, em última instância, a cada professor. Seguindo o interesse da maioria (escola, pais e alunos), no entanto, muito da literatura que se estuda, especialmente no último ano do ensino médio, visa à aprovação no vestibular. Assim, na prática, a escolha de obras passa, quase obrigatoriamente, pela lista da Fuvest/Unicamp.

Fábio Zapata Moreno, professor de português e literatura do Colégio Santa Maria, em São Paulo, é sincero: “Não dá para fugir da Fuvest porque há cobrança nesse sentido – dos pais, da escola e dos próprios alunos. Os livros são intercalados com outros, mas são títulos que merecem ser lidos. Clássicos que carregam o imaginário de toda uma cultura, que dão respaldo para a vida”.

A cada aula, Fábio procura mostrar o que há de interessante no que está sendo lido pela classe, de forma que o aluno fique curioso, que fale de surpresas e dúvidas. “Digo que também achava ‘chato’, quando era adolescente... Para eles, ler O ateneu, de Raul Pompeia, é ‘um absurdo’. Querem ‘morrer’ quando se fala de A cidade e as serras, de Eça de Queirós... Mas não tem negociação.”

Em 2008, seu segundo ano do ensino médio leu Budapeste, de Chico Buarque; Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco; Iracema, de José de Alencar; Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida; Dom Casmurro, de Machado de Assis; O cortiço, de Aluísio Azevedo; e Niketche – Uma história de poligamia, da moçambicana Paulina Chiziane. Agora, em 2009, os alunos do terceiro ano vão ler Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago; O último vôo do flamingo, do moçambicano Mia Couto; Vidas secas, de Graciliano Ramos; Capitães de areia, de Jorge Amado; Nova antologia poética, de Vinicius de Moraes; e Sagarana, de Guimarães Rosa.

A lista da Fuvest 2009 traz: Memórias de um sargento de milícias, Iracema, Vidas secas, Sagarana, Dom Casmurro e ainda Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, A cidade e as serras, A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade e Poemas completos, de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa).

Como o professor Fábio, José Ruy Lozano, professor de literatura e redação do Colégio Santo Américo, em São Paulo, critica os resumos mastigados de cursinhos, por conta da “indústria do vestibular”, também espalhados pela internet. O professor procura mesclar autores de língua portuguesa com obras de escritores como o alemão Goethe, por exemplo (adota O sofrimento do jovem Werther, marco do início do Romantismo, para ser lido antes de Iracema). “O colégio procura variar, para criar o gosto pela leitura. Adotamos clássicos luso-brasileiros e de outras culturas. Mas também é preciso mediação, ler com o aluno – e não ‘para’ ele” – na sala de aula, para que sejam identificados pensamentos subentendidos, a riqueza do texto, para que o livro passe de ‘chato’ a ‘interessante’. Tratamos também de temas mais atuais – como Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, que discorre sobre violência e mandonismo político”, diz Lozano.

QUANDO GINA ERA UM ESCÂNDALO

Maria José Dupré, ou Sra. Leandro Dupré como assinava seus livros, dividiu a vida de Gina em três fases no romance homônimo. Com fama de “devassa”, a personagem era proibida para moças “de família”, mas nada segurava garotas apaixonadas por literatura... e curiosas.

Quem conta é Stael Martinez de Camargo, modista que, aos 75 anos, segue firme nas leituras desde que aprendeu a ler na cartilha, aos seis anos de idade, em um grupo escolar no bairro paulistano do Ipiranga, nos anos 1940, nos passos da mãe, Cândida Árias Martinez. O pai, Ángel Martinez Marques, tinha um bar e, para sorte da filha Stael, deixava o Chico Jornaleiro guardar ali seus jornais, revistas e gibis. Em troca, tinha permissão para ler tudo: revistas, gibis, Capitão América, Mandrake, almanaques de fim de ano.... “Não havia banca. O jornaleiro vendia na rua, no máximo em cima de caixote. Subia nos estribos dos bondes abertos e ali, pendurado, ia vendendo. Às vezes minha mãe cismava que gibi ‘dava mau exemplo’, mas eu lia. Atrás da porta da cozinha, escondido.” Ao lado do bar, a madrinha Giacomina tinha um bazar, onde vendia de xícaras a livros. “Eu pedia de joelhos para ler as revistas de romance água com açúcar. Para mim, ler as aventuras era como estar vivendo uma vida diferente da minha.”

Stael foi estudar Educação Doméstica e continuou atrás de livros na biblioteca do colégio – leu a vida de todos os santos, um por um. E o proibidíssimo Gina. Por conta de algumas obras, até levou surra... Na escola das 8h às 17h30, estudava todas as matérias, além de polidez, costura, bordado, cozinha. Na aula de bordado, as meninas se revezavam a cada dia, para ler capítulos em voz alta, enquanto as outras trabalhavam. Jamais títulos de Monteiro Lobato, “comunista”... Em Histórias do mundo para crianças (esgotado), o autor explicava a origem da Terra, da vida, dos dinossauros. Nada de Adão e Eva no Paraíso. “Não se podia nem falar dos livros dele, todos proibidos, sob pena de ir para o castigo.” Stael leu todos!

NOS PASSOS DA MÃE

Décadas depois, outra garota, Ingrid Biesemeyer-Bellinghausen, vivia querendo ir até a única livraria do centro de São Bernardo do Campo (SP). Como a pequena Stael, também acompanhava o gosto da mãe. “O objeto ‘livro’ me atraía. Eu ficava pensando: que será que tem lá dentro?” Ingrid lia um atrás do outro. Também desenhava e se formou em artes plásticas. Quando ficou grávida de Michelle, passou a desenhar pensando em um mundo melhor para criar os filhos... Por insistência de amigos, levou colagens e uma historinha para a editora DCL em 1998. Foi com O mundinho que iniciou sua carreira de autora de obras infantis – escritora e ilustradora com mais de 30 títulos publicados, entre eles Um mundinho para todos, com caracteres também em braile.

“É um conjunto de coisas que envolve a criança que irá despertar os pequeninhos que começam a ser alfabetizados. Nesta idade, é muito importante imagens convidativas – e as histórias precisam encantar. O Nicholas [seu segundo filho, que está com 4 anos], quando vai dormir, quer que eu leia para ele. E não pode ser ‘só’ um capítulo; ele já quer ler tudo. A Michelle, com 10 anos, parece que já pegou gosto. Anda lendo livros mais grossos, até juvenis.”

MUITO ALÉM DO “CAIR NA PROVA”

Maria Helena Costa, professora de língua portuguesa do ensino fundamental na Escola Nossa Senhora das Graças (o “Gracinha”), em São Paulo, trabalha com formação de professores e também fala do ambiente familiar como fundamental na formação do leitor. “Muitos alunos leem apenas porque a escola exige. Há concorrência com computador, internet, jogos eletrônicos e até celular. Mas, para a formação do leitor, é fundamental ter livros e leitores em casa, que possibilitem à criança criar uma cultura de leitura.”

Lena Costa, autora de obras didáticas de língua portuguesa (com Ana Paula Torres, orientadora pedagógica no Gracinha, recebeu o Prêmio Jabuti em 1998 pela coleção “Tantas palavras”), explica que parte da estratégia para tornar os livros mais “palatáveis” para determinadas idades passa pelas diversas edições de uma obra: texto integral, adaptado, edição renovada, obra original.

Para Lena, é importante que a criança já entre em contato com obras clássicas em textos adaptados, como As aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, com tradução de Marina Colasanti, que costuma colocar na lista de férias do sétimo ano. “É o texto integral, sim, mas adaptado.” E por que, então, não dar apenas títulos que já são escritos originalmente para tal idade? “Além desses, ao trabalharmos com clássicos, por exemplo, com linguagem adaptada, temos um ganho pedagógico. É enriquecedor para a criança ter contato com as mais variadas versões, mesmo com um original em dois volumes com 500 páginas cada um! O professor pode mostrar para a criança, para ela pegar, ver. E ela pode comparar com o que está lendo, ver o filme, se for o caso, ser levada a comparar as duas linguagens. Isso é muito positivo. Quando se tornar adulta, não terá problemas para ler aquela obra, por exemplo, no original. Pelo contrário: vai querer fazer isso.”

Das estratégias, Lena também cita a leitura compartilhada na sala de aula, de forma que o aluno saiba a quê dar mais atenção, o que anotar. Assim, é possível, também, assinalar trechos que a criança poderá “pular”, como sequências descritivas de As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, ou partes muito filosóficas do Frankenstein, de Mary Shelley, sempre explicando os porquês.”

É preciso criar situações em torno da obra, faze-la significativa para os alunos, e não apenas algo que “vai cair na prova”. “Certamente é trabalhoso para o professor procurar diferentes versões e linguagens... Exige tempo, repertório, infraestrutura na escola.” E que o professor esteja motivado e informado. Se não existe mais sentido em proibir livros por serem “mais picantes”, como se dizia, por exemplo, de A carne, de Júlio Ribeiro, Lena lembra da reação negativa recente a O estranho caso do cachorro morto, de Mark Haddon, por causa de “palavrões”, com pais fazendo queixa formal contra a professora, e a direção da escola e alguns professores considerando a obra inadequada, sem que ninguém argumentasse quanto a sua qualidade literária.

CRIATIVIDADE E MOTIVAÇÃO

Um exemplo de trabalho bem simples e criativo, que está levando crianças pequenas à leitura, é citado por Maria Aparecida Cheruti Frare, que, em Catanduva (SP), dirige uma das Regionais de Ensino da Secretaria Estadual de Educação. Começou na Escola Antônio Maximiano Rodrigues, em que cada aluno recebia uma cartolina, com seu nome e a carinha de uma centopéia. A cada livrinho lido e fichado, a criança ganhava uma parte do corpo da centopéia para colar na cartolina. A história se espalhou por 15 municípios.

“Inicialmente, se pensou que cada aluno leria 10, 15 livros, mas teve criança que leu mais de 200. Elas foram para as bibliotecas e, lá, colocamos cartazes sugerindo mais títulos, descrevendo seus temas. À medida que lê e gosta, vai entrando em vários mundos e tem prazer, a criança quer mais”, diz a dirigente. “A ideia é que se mostre o ideal, mas que eles mesmos também selecionem suas leituras, de forma a não abandonar os livros.”

O ensino público ainda está engatinhando com relação a formas de motivação, mas há algum andamento. A Escola Estadual Fernão Dias Paes, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, distribuirá para cada aluno, por iniciativa da Secretaria de Educação, kits contendo três clássicos, “que alguns alunos gostam e outros detestam”, como observa Maria Regina Cortez, coordenadora do colégio. Se não existe obrigatoriedade de os professores adotarem estas obras, existe o costume, pela lista do vestibular. De qualquer maneira, o professor trabalhará de forma a desenvolver o interesse dos alunos, “o que não significa que todos irão adorar”, como diz Regina. “Mas explicamos que para não gostar é preciso, antes, conhecer... O adolescente pode até ‘escapar’, por um período, da leitura, mas, se tiver sido levado a gostar de ler desde pequeno, certamente voltará para os livros.”


LER É BOM

“Eu gosto de ler porque é bom. Deixa eu pensar um pouco... Quando começo, entro em uma história; começo a imaginar e viver nela. É como um filme, só que usando o livro e a imaginação. Gosto mais de aventura e terror, obras que têm ação. Minha série preferida é a de terror Goosebumps. São crianças de 12, 13, 14 anos, que têm uma vida normal, mas aí viajam e vivem experiências inesperadas, encontram coisas bem diferentes, monstros... Já li vários, que foram comprados ou que pedi emprestados. Também gosto muito do Harry Potter. Não vai ter mais, mas tem outro personagem (Os contos de Beedle, o bardo), e eu ainda tenho dois para ler. Acabei o número 5. Também gosto do Tintin. O último livro que lemos na escola no ano passado foi A invenção de Hugo Cabret. Começa com um menino pobre que tem um pai que é bom de consertar coisas. Tinha uma máquina, que projetava imagens, só que o menino não sabia. E o pai morre antes de ele saber, no meio da história. Mas ele descobre que é uma máquina de projetar filmes. Foi um dos que mais gostei. Na escola, depois que a gente lê, a gente conversa, faz comentários sobre o que mais gostou. Depois, tem meio que uma prova, oral ou por escrito.”
Éric Yves Wuilleumier, 12 anos, 7º ano do ensino fundamental

LIVROS PARA APRENDER

“Não gosto nem desgosto de ler. Se eu entender o livro, aí gosto. Os últimos que a escola pediu para ler foram Ilíada e A odisséia. Achei os dois meio chatos, com muitas palavras difíceis. Se a história for legal e tiver palavra difícil, tudo bem, é até bom para aprender novas palavras. Mas, se a história não for muito legal e tiver palavra difícil, você se desprende dela, perde o interesse. Tenho muitos amigos que pegaram birra de leitura. Não peguei porque, quando era menor, me divertia com títulos cheios de desenhos. Pode ser legal se for o livro certo. O professor de português é que manda ler para a gente aprender mais sobre o assunto que está estudando. A escola não dá obra legal, dá livro para a gente aprender. O mais legal que já li foi O guia do mochileiro das galáxias. Meu irmão tinha lido e resolvi ler. Adorei, a história era muito maluca, do jeito que eu gosto. O mais chato foi O menino do dedo verde. Entre A Ilíada e A Odisséia, preferi a Ilíada, pois falava de guerra. Mas eu sei que estes livros são importantes para aprender. Se pensar no que aprendo com a literatura que a escola recomenda e no que aprendo com os que pego, como O guia e Harry Potter, os da escola dão de um milhão a zero.”
Lourenço Costa Biselli, 11 anos, 7º ano do ensino fundamental

Matéria publicada em Março/2009

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