sexta-feira, 30 de julho de 2010

Galeno Amorim - Uma vida em meio a livros

Galeno Amorim fez dos livros e do incentivo à leitura uma meta de vida. Nesta entrevista, ele comenta seus projetos, o perfil dos leitores no Brasil e o que ainda falta ser feito.
Galeno Amorim é diretor do Observatório do Livro e da Leitura. Especialista em políticas públicas do livro e leitura, liderou a criação, entre 2004 e 2006, do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), dos ministérios da Cultura e da Educação, do qual foi seu primeiro coordenador. Presidiu o Comitê Executivo do Centro Regional de Fomento ao Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc/Unesco) e foi consultor de políticas públicas do livro e leitura da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) para a Educação, Ciências e Cultura, com sede na Espanha. Atuou na Fundação Biblioteca Nacional e Ministério da Cultura e foi membro dos conselhos estaduais de leitura dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Foi secretário de Cultura de Ribeirão Preto (SP).

É autor de 12 livros, entre ensaios e literatura infantojuvenil, cujas tiragens ultrapassam 350 mil exemplares. Entre as obras publicadas, estão Políticas Públicas do Livro e Leitura (OEI/Editora Unesp) e Retratos da Leitura no Brasil (Imprensa Oficial do Estado de SP e Instituto Pró-Livro), com os resultados e análises da pesquisa do mesmo nome, que ele coordenou.

Galeno criou e dirigiu diversas instituições ligadas à área do livro e leitura: Fundação Palavra Mágica, Fundação Instituto do Livro, Fundação Feira do Livro, Observatório do Livro e da Leitura e Instituto de Desenvolvimento e Estudos Avançados do Livro e Leitura (IDEALL), entre outros. Também esteve à frente de inúmeros projetos e programas no Brasil: Ano Ibero-americano da Leitura Vivaleitura (100 mil ações em 2005); Fome de Livro (para zerar o número de cidades brasileiras sem bibliotecas); Câmara Setorial do Livro e Leitura; Desoneração Fiscal do Livro, Prêmio Vivaleitura (10 mil ações catalogadas); Ribeirão das Letras (implantação de 80 bibliotecas em 3 anos em Ribeirão Preto e criação da Feira Nacional do Livro e da primeira Lei do Livro em um município brasileiro). Também foi responsável pela criação da agência de notícias Brasil Que Lê e do Blog do Galeno.

Conhecimento Prático Literatura - Você está engajado em diversos projetos de incentivo à leitura. Como foi sua vida profissional e esse envolvimento com as causas literárias?

Galeno Amorim - Desde muito cedo me vi envolvido com os livros e a literatura. Como não existiam livros em casa, quando criança eu andava alguns quilômetros por dia para ir ler os livros do Monteiro Lobato, até que descobri a biblioteca pública da cidade. Depois, adolescente, organizava saraus e prêmios literários. No fundo, os livros e a literatura entraram muito cedo na minha vida. Minha mãe adotiva era analfabeta, mas enfatizava o tempo todo que o estudo e os livros eram tudo na vida. Mas meus primeiros contatos com a literatura foram por meio da oralidade: meu pai adotivo, que herdou dos ancestrais africanos o gosto pelos causos, me colocava sentado no colo e contava histórias durante horas e horas. Quase todo mundo ali trabalhava na roça.

Mas a mais nova dos oito filhos gostava muito de ler e me apresentou aos livros. Nunca mais me afastei deles: primeiro, fui jornalista: comecei a trabalhar aos 13 anos em jornais de Sertãozinho e Ribeirão Preto, no interior paulista. Atuei 20 anos na grande imprensa e fui dar aulas na universidade. Mas comecei a escrever livros por acaso: de tanto que lia histórias infantis para meus filhos à noite, um dia acabei escrevendo uma. Abri uma pequena editora e como, no início, quase não havia recursos, eu mesmo acabei escrevendo os primeiros livros. Mas a editora acabou ganhando alguns prêmios importantes (inclusive o Jabuti de Melhor Livro de Ficção do Ano) e recebi um convite para ser secretário de Cultura em Ribeirão Preto em 2001.

Fiz lá a primeira Lei do Livro de uma cidade brasileira, abrimos 80 bibliotecas em três anos e uma Feira Nacional do Livro. Em pouco tempo, o índice de leitura subiu de 2 para 9,7 livros por habitante/ ano. Desde então, me dedico às políticas públicas de incentivo à leitura. No governo federal, criei o Plano Nacional do Livro e da Leitura, que já tem contribuído para os brasileiros lerem mais (era 1,8 livro por ano no início da década e, agora, já é 4,7 livros). Foi quando teve início um novo esforço para zerar o número de cidades brasileiras sem bibliotecas (eram 1.300 em 2003, número que deve chegar a zero em meados de 2010). Passei, então, a atuar em organismos internacionais que atuam principalmente nos países de língua portuguesa e espanhola.

Atualmente dirijo o Observatório do Livro e da Leitura, que mantém uma agência de notícias sobre o tema e um blog, que se tornou uma espécie de referência no mundo do livro. No fundo, acho que foi a causa do livro e da leitura que me achou primeiro, muito antes que eu pudesse descobri-la. E é bom! Afinal, leitura é essencial para o ser humano: além de assegurar o acesso ao conhecimento, é o caminho para a conquista do trabalho, da cidadania e para sua própria realização pessoal.

CP Literatura - Como foi a realização do estudo "Retratos da Leitura no Brasil"?

GA - Esse estudo tornou-se uma referência obrigatória para quem atua na área. Gestores, especialistas, pesquisadores, editores, livreiros e até escritores vão buscar nos resultados e nas análises da pesquisa, a maior já feita no País, entender a quantas anda a leitura no Brasil e o que passa pela cabeça dos leitores e também dos não leitores.

O Brasil foi quem sugeriu e acabou sendo, em seguida, o primeiro país a utilizar da metodologia desenvolvida pelo Cerlalc/Unesco para os países da América Latina. Incluímos nas amostras a população entre 5 e 14 anos, os recém-alfabetizados e mesmo analfabetos e os não leitores assumidos. Foi feita um piloto, em 2004, em Ribeirão Preto (SP), e outro, em 2006, no Rio Grande do Sul. A ideia é que, a partir de agora, a pesquisa também venha a ser realizada nos outros países da América Latina, o que pode dar origem a um banco de dados extraordinário.

A pesquisa confirma, entre outras coisas, que escolaridade e renda estão intimamente associadas aos índices de leitura. Os resultados analisados estão em um livro do mesmo nome, que eu organizei, publicado pelo Instituto Pró-Livro e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Ele também está disponível, gratuitamente, como livro digital (http://www.observatoriodolivro.org.br/ler.php?modo=material&id=27).

CP Literatura - Qual foi o dado do estudo que mais te surpreendeu?

GA - Os brasileiros já estão lendo mais. É menos do que precisamos e podemos; porém, é bem mais do que se imaginava. Outro dado é que as crianças e os adolescentes estão lendo mais do que os adultos. Além disso, o estudo mostrou que as políticas públicas dão resultados em menos tempo do que se pensa: os leitores que estão na escola chegam a ler duas vezes mais do que aqueles que já pararam de estudar. O dado negativo é que ainda estamos falhando na tarefa de formar leitores que gostem de ler e que continuem a fazer isso mesmo distantes da sala de aula: com a idade e o afastamento da escola, a leitura cai muito. Outra boa surpresa foi o fato de Monteiro Lobato, mesmo tendo ficado tantos anos sem ser reeditado, aparecer como o escritor brasileiro mais admirado. Ou, ainda, a poesia figurar entre os cinco gêneros mais lidos pelos brasileiros.

CP Literatura - Você comentou que os índices de leitura no Brasil podem ser diretamente relacionados com o nível de renda da população. Há como tornar o livro mais barato e, portanto, mais acessível a grande parte da população e, ao mesmo tempo, incentivar o mercado editorial do País para estimular o surgimento de novos autores?

GA - Tornar os livros mais baratos é algo que interessa a muita gente, inclusive ao próprio mercado, mas não é tão simples porque envolve vários aspectos. Temos que pensar, por exemplo, que pouco mais da metade da população se declaram leitores de livros, algo como 95 milhões. Desses, apenas 36 milhões consomem livros. Seja porque faltam livrarias, por causa do preço acima da sua capacidade de compra ou porque simplesmente não são levados a comprar um livro. A primeira grande tarefa, agora que o País caminha para zerar seu déficit de cidades sem bibliotecas, é criar um amplo programa de revitalização da rede de 6 mil bibliotecas existentes, boa parte das quais em situação bem precária. Isso permitiria, por exemplo, ampliar as tiragens - além, naturalmente, de estimular os leitores a voltarem às bibliotecas e a lerem mais.

A desoneração fiscal que fizemos em 2004 teve algum reflexo no preço, mas só a ampliação da massa de leitores e, entre eles, de consumidores de livros é que vai permitir tiragens maiores e preços mais baixos. E as políticas públicas devem ajudar a acelerar esse processo. Um exemplo disso foi o fim da cobrança do Pis-Cofins: muitas editoras se animaram, naquele momento, a retomar investimentos engavetados e lançaram coleções de livros de bolso, com preços de capa bem menores. O mercado, de seu lado, também deu passos importantes, como, por exemplo, investir mais em produtos para todo tipo de consumidor, e não apenas só os de classe média e média alta como algumas editoras vislumbravam no passado.

CP Literatura - Como você analisa a entrada dos livros no mundo digital? Você acha que a tecnologia pode ajudar na democratização da leitura?

GA- No Brasil, o livro digital ainda é um conceito novo. Por ora, há certa resistência porque os leitores brasileiros associam muito o livro digital àquela leitura feita na tela do computador (quando isso acontece, já que a maioria dos 4,6 milhões de leitores de livros digitais do País prefere imprimir e depois ler no papel). Um estudo recente que acabo de coordenar mostrou, no entanto, que os leitores brasileiros vão se encantar com as novas possibilidades, as atuais, e, sobretudo, as futuras, trazidas pelo e-reader. Essa democratização do acesso à leitura pode efetivamente acontecer, mas, antes, dependeremos muito da eficiência das atuais políticas de inclusão digital.

Como a grande maioria da população ainda não tem acesso a computadores e menos ainda à internet, há uma lição de casa enorme para ser cumprida. Essa é, sem dúvida, uma condição. Se isso vier a ocorrer - e é muito possível que no futuro isso aconteça, de fato! - então poderemos ter não só livros mais baratos como até novos modelos de negócio que permitam o acesso gratuito a alguns livros, como é o caso daqueles que estão esgotados e, portanto, fora do mercado atual. As políticas do livro escolar, por exemplo, vão, inevitavelmente, caminhar nessa direção. Mas o mercado terá, sempre, um papel fundamental nisso tudo.

CP Literatura - O crítico norte-americano Harold Bloom criou polêmica ao condenar o fenômeno Harry Potter e classificá-lo como prejudicial ao leitor pela falta de qualidade e densidade. Ele defende que as crianças precisam ser apresentadas a obras de qualidade para cultivarem a cultura literária e se tornarem leitores efetivos. Você considera que "qualidade" e "quantidade" são conceitos válidos no que se refere ao hábito da leitura?

GA - O grande desafio no Brasil e em países como o nosso, e mais ainda nos subdesenvolvidos, é outro. Precisamos, antes, de mais gente lendo. Primeiro, dominando as técnicas e habilidades leitoras mínimas; depois, lendo. No princípio, tínhamos raríssimos, ainda que muito bons, leitores.. Aos poucos, esse universo foi se ampliando e provavelmente a média desses leitores já não foi a mesma. Diria que nossa maior tarefa é fazer as pessoas lerem. E os especialistas, enquanto isso, têm sua tarefa: mediar e apoiar de forma que esses leitores sejam formados e tenham fome, cada vez mais, de crescer e se aperfeiçoar como tal. Mas isso é como aprender a andar: damos alguns passos, depois outros e, então, vem uma vontade irresistível de andar mais depressa ou mesmo correr. É preciso respeitar o momento, as dificuldades e as preferências de cada um. Isso vale pra tudo na vida.

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