É do escritor João Guimarães Rosa a teoria de que ao ler um texto mais de uma vez deixamos de ser analfabetos para as entrelinhas. Não é difícil entender por que Rosa, autor de obras densas e complexas (e nem por isso menos maravilhosas), acreditava nisso. Mas, na sociedade contemporânea, somos bombardeados por informações de várias formas em quase todos os momentos do dia e vivemos à mercê do fetiche do novo. Há que acompanhar o noticiário e estar atento aos lançamentos. É preciso assistir a novos filmes, ler os novos títulos, comprar os novos CDS, DVDs, produtos eletrônicos... Em meio a tudo isso, o hábito de reler persiste. Da mesma maneira como o teatro continuou existindo depois da invenção do cinema e como o livro impresso não está sequer ameaçado pelos formatos digitais, a releitura é um hábito antigo, que varia de pessoa para pessoa, mas que não deixa de existir.
Reler não é simplesmente ler de novo: é submeter um texto a um novo olhar e nos propor a perceber mudanças em nós mesmos. Para Gabriel Perissé, doutor em filosofia da educação, a releitura é uma vitória sobre a mesmice e a preguiça, porque, ao reler, acreditamos que podemos encontrar novos sentidos num texto já conhecido. “Há um sentido positivo, não rotineiro, para a repetição, se a considerarmos uma insistência convicta em determinado caminho. Repetir um bom prato, por exemplo, é afirmar e confirmar seu sabor e suas qualidades”, ilustra.
Para ele, reler também é uma atividade nostálgica, uma busca por repetir experiências únicas e uma forma de constatar o próprio amadurecimento. “Reler textos que lemos quando crianças é uma experiência reveladora do quanto crescemos, para o bem ou para o mal. Quem leu Monteiro Lobato quando criança e o reencontra quando mais velho produz em si revelações. Recupera no plano da imaginação, da memória e da saudade da infância perdida”, assegura.
A psicopedagoga Maria Luiza Castro concorda com Gabriel Perissé quanto ao mérito da releitura e acrescenta que, com um texto que já nos é familiar, podemos reafirmar pontos interessantes e perceber outros que nos escaparam na primeira vez. “Certamente, podemos ressignificar o texto todo ao mergulhar em uma releitura. Aqui, nada se perde... Tudo é acréscimo!”, avalia a psicopedagoga.
O mal e o bem da obrigatoriedade
Da mesma forma como a leitura de um livro de que gostamos traz prazer, a releitura de uma obra de que não gostamos no passado pode ser uma surpresa agradável. A obrigatoriedade da leitura, por exemplo, pode fazer com que se crie um ressentimento contra determinado escritor, que passa a figurar na memória associado a um sentimento de mágoa e rancor. No entanto, a mentalidade e a capacidade de apreciar novas formas de arte são desenvolvidas com o passar dos anos e com a apreciação de diferentes estéticas. De acordo com Gabriel Perissé, certas leituras obrigatórias afastam o leitor iniciante porque são ligadas a motivações externas e passageiras. “É sempre traumático não encontrar um sentido naquilo que fazemos, com maior ou menor gosto”, acredita. Para ele, as publicações deveriam ser uma presença constante na escola, tema de conversas, mas sem cobrança envolvida.
Já Maria Luiza Castro é a favor das leituras obrigatórias, mesmo sabendo que elas são o terror de muita gente na escola. Ela considera que a leitura é uma maneira de ajudar o ser humano a compreender melhor o mundo e a se apropriar da sua cultura. Portanto, toda iniciativa para incentivar a formação de leitores é válida. “Através da leitura, o ser humano pode viver diversas emoções e até mesmo aprender a lidar com a sua própria vida! É óbvio que ler algo que escolhi é muito mais interessante e me prenderá mais ao conteúdo e ao enredo. Mas isso não significa que as leituras obrigatórias não tenham valor. Têm. Aprendemos muito pela leitura, principalmente a escrever melhor”, conclui a psicopedagoga.
Gabriel Perissé questiona também a escolha das obras que são obrigatórias e assinala que vivemos em uma sociedade onde há muitos estímulos à infantilização e à manutenção do comportamento adolescente para além dos 20 anos, o que não é coerente com a exigência da leitura de autores densos como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. “O resultado é que muitos jovens recorrem a resumos pasteurizados e se privam da experiência da leitura que, de resto, requer e ao mesmo tempo produz maturidade”, esclarece.
Segundo Maria Luiza Castro, não há como sair da escola sem ao menos ter lido um romance de José de Alencar, Machado de Assis, Guimarães Rosa ou Erico Verissimo. “Sei que nem sempre são obras fáceis, mas ainda são aquelas que melhor nos colocam na realidade de nossa cultura. São obras primorosas, que merecem ser lidas e relidas”, defende. Para ela, poupar os adolescentes dessas leituras seria subestimá-los. “Guimarães Rosa pode ser árido, mas é excelente.” Nesse ponto, Gabriel Perissé concorda com ela e argumenta que reler é também dar uma nova chance a autores ou obras que, no passado, nos pareceram menos interessantes. “Recentemente, tive um bom reencontro com Arthur Miller e seu A morte do caixeiro-viajante”, relata.
Entrada para raros
Não importa o gênero literário que a pessoa prefira. O livro de cabeceira, aquele que fica ali, ao alcance da mão, para uma eventual consulta, para o deleite com aquele verso ou passagem favorita, para matar a saudade de um personagem querido, é escolhido a dedo entre todos os outros que a pessoa leu. Sendo a releitura ainda mais exigente que um primeiro contato, as obras selecionadas para isso são vencedoras. São, de acordo com o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues (A vida como ela é (esgotado), Vestido de noiva (esgotado), entre outros), “livros totais”. Estes são poucos, marcantes em nossa vida, “que nos salvam ou nos perdem” segundo o grande Nelson.
O representante comercial Maurício Segouras, de 63 anos, relê de tempos em tempos o Zohar, um dos livros da cabala, repassando os 22 volumes que formam a coleção. Ele acredita que reler só é necessário quando uma publicação tem extrema importância e o faz com o Zohar porque a cada vez a coleção lhe deixa uma impressão diferente e lhe proporciona um novo aprendizado.
Já Andressa de Oliveira, estudante de 20 anos que mora em Londrina, no Paraná, costuma reler Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Dom Casmurro, de Machado de Assis, O pequeno príncipe, do francês Antoine de Saint-Exupéry, e A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. “Esses são livros que gosto de ler sempre que posso e não tinha gostado no tempo da escola”, entusiasma-se. Gabriel Perissé também tem um carinho especial por Grande sertão: veredas. “Quando reli, 20 anos depois da primeira vez, fui perceber que era o mesmo, mas que eu, 20 anos mais velho, me tornara mais atento às belezas daquele texto”, assegura.
Maria Luiza Castro cultivou com mais intensidade o hábito de reler durante sua adolescência. “Costumava ler e reler os livros de J. M. Simmel, como Nem só de caviar vive o homem, ou os de Agatha Christie, como O caso dos dez negrinhos, e quase todos do detetive Hercule Poirot. Depois, foram os livros de Richard Bach, Ilusões entre eles.”
A consultora em administração financeira Gláucia Aguiare, de 46 anos, costuma emprestar ou doar os volumes depois de lê-los, mas, entre os que conserva, estão O alquimista, de Paulo Coelho, e Moulin Rouge, de Pierre La Mure, que foi o primeiro que a marcou, aos 17 anos. Para outras pessoas, mais do que uma exceção, reler é um exercício. É o caso do estudante Kassius Prestes, de 19 anos, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Kassius relata quase sempre ler mais de uma vez. “A compreensão da história fica muito melhor. Em alguns livros, há trechos quase totalmente sem sentido em uma primeira leitura, mas são compreendidos na segunda, e isso abre horizontes incríveis”, justifica.©
Fonte: Revista da Cultura
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