Ana Elisa Ribeiro
Leitor desde pequeno
Ler faz bem. Ler é saber. Leia, leia, leia mais. Esses são slogans que promoveram campanhas pró-leitura durante algum tempo. Em meu antigo escritório, ainda na casa dos pais, eu ostentava um cartaz imenso de uma dessas campanhas do Ministério da Educação ou da Cultura, ou de ambos, não sei. O escritório era um quartinho de dois por dois, no andar de baixo da casa, em que pus uma persiana vertical azul. Lá ficavam meus livros, minhas estantes, minhas gavetas, minha hemeroteca, mesas, impressoras e computador. Nem sei como cabia tanta coisa. E lá ficava eu durante muitas e muitas madrugadas. Vi o fade da luz do Sol pela janela várias vezes. Mais vezes ainda vi o Sol nascer. Ao subir para o quarto, cruzei minha mãe pelas escadarias. Dei bom dia e ela sorriu. Eu tinha fama de dorminhoca, mas não era. Apenas invertia o horário de trabalho. E lia, lia muito durante as noites, talvez a ponto de atrapalhar a vizinha.
Não me imagino sem os livros. O bibliófilo José Mindlin é mais contundente: não gostaria de viver em um mundo sem livros. Há quem não se imagine sem cigarros, sem bebida, sem ginástica, sem uma bolsinha de marca, sem um carrão. Eu não me imagino sem o gesto de folhear um livro. E essa mania interessante me provoca curiosidade sobre as pessoas. Na última virada de ano, resolvi saber um pouco sobre a intimidade das leituras de alguns colegas e amigos. O que estão lendo em 31 de dezembro? Estão lendo? O que procuram saber?
Comentarista contumaz do Digestivo também era o Guga Schultze, até que, de tanto vir aqui, tornou-se colunista do DC. Isso é que dá. Bom para nós. O ilustrador e pintor, que conheci nas páginas da premiada revista Graffitti, está lendo A possibilidade de uma ilha, de Michel Houellebecq, um calhamaço de mais de 400 páginas “que ostenta na capa: mais de 300 mil exemplares vendidos na França. Não quer dizer muita coisa para valorizar um livro. Mas é um livro com uma prosa rápida e uma história também ágil, mas meio inverossímil. Eu ganhei; não é um livro que eu compraria”. Fico pensando: caraca! 400 páginas de um livro que ele não compraria! É muita empolgação. Talvez Guga sofra daquela mesma obsessão que me acomete de vez em quando: se eu começar, só paro quando terminar. Sem saltos, sem truques, sem trapaça. Para comprovar a compulsão, Schultze continua: “Ninguém me falou sobre ele, não li nada a respeito e a sinopse da história não me agradou. Mas comecei e estou lendo, e, o mais importante, acho que vou terminar. Porque hoje em dia já não tenho o menor receio de abandonar um livro pelo meio. Nem pelos décimos”. Ah, Guga, então você não é obsessivo como eu. Se precisar, feche o livro e faça a fila andar.
Na lista dos livros lidos, ainda sem quantidade exata, Schultze assinala uns e eu edito outros: O almoço nu, de William Burroughs, um livro sobre os violinos Stradivarius (ele não se lembra de autor e título, viu, Áurea), Gênio, de Harold Bloom, e várias releituras de Jorge Luis Borges. Guga se declara um leitor “intermitente”, que leu mais do que isso e não se recorda de tudo. E considera algo de curioso: só se lembra das releituras, das obras que leu até pela sexta vez (Conrad, Lewis Carroll, contos de Kipling, Mary McCarthy e quadrinhos japoneses). Baixa livros da Internet (Eric Hobsbawm, Jean Baudrillard, Carl Sagan e Mencken) e pratica leitura de forma vagarosa, “trechos de um e de outro”. De maneira especial, releu “numa tarde de chuva, depois de muitos anos e talvez pela sexta vez", O pequeno príncipe, de Saint-Exupèry, e não deixou passar em branco. Escreveu essa experiência no blog. Ler para escrever.
E para que não digam que aqui só tem “gente de letras”, são oportunas as declarações do professor de matemática Onaldo Chaves, da bióloga Ana Carolina Neves e do estagiário de marketing Helemar Augusto. Cada um deles declarou sua leitura de final de ano e deu mostras de que conhecem bem as trilhas do texto.
Onaldo (assim mesmo, com O) leu, na virada do ano, o conhecido Operação Cavalo de Tróia, volume 6, do escritor espanhol J.J. Benitez, uma obra de ficção científica com 7 volumes editados (até agora). O matemático não disse, mas provavelmente leu os 5 volumes anteriores e lerá todos os que houver. O texto é sobre “uma viagem no tempo ao ano 30 da era cristã, na Palestina, acompanhando diversos aspectos da vida pública de Jesus Cristo”. Numa média parecida com a de muitos aqui, Onaldo leu aproximadamente 8 livros durante 2006.
Ana Carolina Neves esteve mais atenta à profissão. Leu muitos compêndios de biologia e, ainda assim, separou um tempo para a leitura de obras literárias. O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago e Memórias inventadas, de Manoel de Barros, foram os livros da virada do ano. Os planos para 2007 são de ler mais. As explicações sobre estas leituras são muitas, inclusive relacionando Jesus Cristo e a Galiléia com os rituais do final do ano. A leitura de Saramago deve-se à “deseducação religiosa que tive, por sorte. Agora, tento aprender sobre essas coisas da melhor forma que me convier, e com liberdade. E as Memórias inventadas, leio para matar saudades do Pantanal, onde passei o último ano”. A bióloga leu 20 livros (“fora os compêndios biológicos”) neste ano e avalia que esta foi a melhor marca dos últimos tempos, “porque, como leio muito no trabalho, para descansar prefiro mexer no jardim”. De qualquer forma, é belíssima a associação entre as leituras e o jardim de Ana Carolina. O historiador da cultura Michel de Certeau disse algo assim, sobre a leitura ser um jogo de caça aos sentidos, caçar em campo proibido.
Helemar Augusto também estava estudioso em 2006. Na virada, leu Administração de vendas, de Marcos Cobra. Bibliografia básica de disciplinas da faculdade, a obra lhe serve para se aprofundar, “pois trabalho com isso, é vital para mim”. Leituras vitais. Mesmo com uma lista de leituras, Helemar considera que poderia ter lido mais. Entre os livros de que recorda estavam autores como George Orwell, James C. Hunter, Mario Puzo, Stephen King e César Souza, com Você é do tamanho dos seus sonhos. “Acho muito pouco, pois, com disciplina, certamente leria mais livros. Pretendo ‘bater’ este recorde no primeiro trimenstre do ano!”.
Como se vê, Helemar sabe que ler não é atividade para escolhidos, caída do céu, emanação divina. Ler é ter disciplina, alinhavar obras, fazer esforço, começar, parar, recomeçar, ler e reler, às vezes interromper, para nunca mais. De outras vezes, mais felizes, o livro volta, releitura marcante, livro de cabeceira, marco na vida profissional, escolar ou afetiva. Livro ganhado, livro comprado, emprestado, querido. Idas e vindas de um leitor real, que não é este da linearidade obrigatória (como dizem uns e outros). Nem mesmo é o das listas de mais vendidos ou aqueles do cânone ocidental. Livros podem ser herança. O leitor sempre quis estar livre, nem sempre pôde. Quando teve chance, foi exibir seu libelo (in-oitavo ou in-doze) na rua, na praça, ao ar livre. Quando lhe foi permitido, desacorrentou os livros das bibliotecas, onde até seus olhos eram vigiados, e foi confabular nos clubes e nos cafés. Mas este é um leitor privilegiado. Fale-se, também, de um leitor virtual, que não era alfabetizado, mas pedia que lhe lessem diariamente os escritos, assim como os lector das fábricas de charutos em Cuba. Estão lá, até hoje, as cadeiras dos leitores profissionais, que faziam isso em voz alta para aqueles que não sabiam ler ou que se ocupavam em enrolar tabaco. O mais importante de tudo é existirem leitores com vontade de o serem. Aos leitores de araque, que apenas aparentam ler ou que foram alfabetizados em vão, é necessário sussurrar que não é preciso ler tudo, nem ler apenas o que mandam os figurinos, é preciso ler. Faz tempo que a atividade pode ser executada em silêncio e sem a presença dos fiscais. Não há fogueira nem cadafalso. Há liberdade.
O economista Eduardo Menicucci, também professor universitário, anda saltitando por entre os títulos de livros. Nem sempre se lembra dos nomes dos autores ou das obras, mas guarda lá suas essencialidades. O mundo é plano foi o primeiro título que ele me confessou. O autor é Thomas Friedman. Antes disso, um João Ubaldo Ribeiro. Sobre este, tece o seguinte comentário: “a gente se acostuma a tudo”. Numa carreira inteira, ele ainda cita um livro do Luís Fernando Verissimo, a Bruna Surfistinha e o “o caçador – ou empinador ou apanhador, ou algo assim – de pipas", que ganhou da sogra. Para salpicar tudo isso de aventura, um livro da família Schurman.
A trajetória de leituras de José Luiz Ribeiro é tão interessante quanto a formação dele. Engenheiro eletricista, ex-analista de sistemas da CEMIG (a companhia de energia de Minas Gerais), depois de aposentado, formou-se em Psicologia e tornou-se educador ambiental. É fundador, junto com a esposa, da ONG Centro de Ecologia Integral (CEI) e da revista Ecologia Integral. Alguém que fez todo esse percurso não pode mesmo parar de ler. José Luiz se interessa mesmo, atualmente, por textos sobre sonhos, meditação e psicologia transpessoal. Entre os livros que ele cita estão: O poder do agora, de Eckhart Tolle; O homem e seus símbolos, de Carl G. Jung e A montanha no oceano, de Jean-Yves Leloup. O resultado da conta anual gira em torno dos 15 livros/ano, mas José Luiz enfatiza: “bom é o livro que te dá ‘tesão’”.
A Ceila Santos, jornalista e editora do site Desabafo de Mãe, acha pouco ler 12 livros por ano. Essa é a marca dela para 2006. Na virada, Ceila estava lendo O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, parte 1. Leitura bastante diversa da de Maria do Carmo, que prefere história. A passagem de 2006 para 2007 foi na companhia de Os tropeiros: diário da marcha, de José Hamilton Ribeiro. Segundo ela, a obra “Conta a façanha de refazer um dos caminhos dos tropeiros do Rio Grande do Sul a São Paulo (Sorocaba), resgata o trajeto e muito da história dos tropeiros no Brasil”.
Maria do Carmo é psicóloga e trabalha na equipe de Gestão de Pessoas do Centro Universitário UNA, em Belo Horizonte. Além de ler, ela escreve e fotografa borboletas. Sem contar os livros técnicos, ela conta ao menos um livro de literatura por mês. Marca um pouco menor do que a de Marilena Vizentin, editora assistente da Edusp, que leu em torno de 20 obras (imagino que fora as que precisa ler no trabalho, claro). “Comecei a ler logo depois do Natal a recém-publicada dissertação de mestrado de Renato Ambrósio, De Rationibus Exordiendi: Os princípios da história em Roma”. A escolha se explica pela trajetória de formação de Marilena: mestre em História Antiga pela FFLCH-USP e autora de Imagens do poder em Sêneca.
Já pensou o que é trabalhar lendo? Lendo sem parar? E parece que esses profissionais não se cansam de fazer isso. Não é porque lêem o dia inteiro que sentem preguiça ou raiva de pegar um livro em horário de almoço, em intervalos ou nas férias. É só observar os hábitos de Tânia Diniz, editora do mural poético Mulheres Emergentes, em Minas Gerais. Ela diz: “leio sempre, leio muito, leio quase tudo, não sei o quanto li em 2006, mas não foi pouco. Costumo ler de 3 a 5 livros de uma vez”. Naquele momento, Tânia lia uma cesta básica com alguns títulos: A sopa de romãs, Zorro (da Isabel Allende) e A escada de cristal.
Mais leitor ainda é José Afonso Furtado, diretor da biblioteca de arte da Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal. Quanta gente não teria inveja dele, que tem uma biblioteca inteira onde circular, passear, sentar ao pé das estantes e ler livros como se fossem maçãs. José Afonso lia Les Bienveillantes, de Jonathan Littell (Prix Goncourt e Prix du roman de l'Académie française 2006), editado pela Gallimard. “A batalha de Estalinegrado ou os últimos dias de Hitler no seu Bunker passam pelas cerca de mil páginas desta obra tanto mais alucinante quanto respira uma prosaica objectividade. Certamente um dos maiores romances de 2006 (e não só) que leva a extremos impensáveis a reflexão sobre a banalidade do mal.”
Quantos livros lê um diretor de biblioteca? “No que se refere à poesia e ficção, certamente mais de meia centena.” E ainda diz ele que a “marca” que atingiu em 2006 está ao mesmo nível dos anos anteriores. Difícil de contar, difícil de calcular. Ah, mas para quê saber? Melhor passear por entre as páginas sem se preocupar em numerá-las. Todas as atividades de Furtado são livrescas: formado em Filosofia, diretor da biblioteca citada, professor da pós-graduação em Edição da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. No Brasil, é possível encontrar seu livro mais recente, O papel e o pixel: Do impresso ao digital, continuidades e transformações, e, com muita sorte, uma edição portuguesa de História do livro, para quem quer saber mais sobre a trajetória fantástica desse objeto inteligente e eficaz. Depois da invenção da prensa e do formato de bolso, você já pensou que o livro foi a primeira mídia de massas? E que é também uma das primeiras e mais eficientes mídias móveis?
Ah, e será que o que eu mesma estou lendo interessa a alguém? Para não dizerem que matei a cobra e não mostrei o pau, acuso minhas leituras de dezembro: História da leitura no mundo Ocidental, em dois volumes organizados por Guglielmo Cavallo e Roger Chartier, publicados no Brasil pela editora Ática. Um passeio pelas práticas da leitura desde a Grécia antiga até hoje, com Internet e jornais digitais e tudo. Depois, numa ida da viagem, um livro sobre projeto gráfico que foi uma bomba. Mal-escrito, superficial e esquisito. Na volta da viagem, Síntese de história da cultura brasileira, de Nelson Werneck Sodré. Quando cheguei em casa, já no conforto do meu sofá bonina, A arte de fazer um jornal diário, do jornalista Ricardo Noblat, um paradidático bem-escrito, embora eu esperasse algo um tantinho diferente. Tudo sempre tem relação com meus estudos, minha profissão, meus escritos. Eu sempre leio para escrever. É muito comum que o livro me inquiete tanto que não posso ficar sem me manifestar. E um livro sempre puxa o outro, forçam-se associações, mesmo sem querer, daí que nenhuma leitura possa ser linear, como gosta de dizer a professora Carla Coscarelli em seus artigos e aulas.
Sou uma leitora obsessiva, como já disse. Leio desde criança, muito, livrões e livrinhos, li Paulo Coelho e então posso dizer o que acho dele, sem aquela postura de quem não vê e não gosta. Não gosto, com conhecimento de causa. Escolhi, vejam bem, escolhi a minha profissão. O curso que eu fiz (porque eu quis) foi Letras. E, pasmem, depois que entrei na faculdade, li tanta coisa de formação que não pude mais ler literatura como gostaria. E depois que me especializei em lingüística, ficou pior. Mas já confesso meu gosto por ler alguns contemporâneos. O último livro literário que li talvez tenha sido da Cíntia Moscovich, e gostei muito. E mesmo que não tivesse gostado, sou uma leitora de muitas associações, mas quando pego um livro, só largo quando ele se acaba. Eis aí minha linearidade. Diferente de Guga Schultze e de vários leitores “intermitentes” citados aqui. Certo ou errado? Nada disso. Não existe. São as práticas mais confortáveis para cada um, os gestos mais satisfatórios, o modo de operar, até de pensar e sentir.
Leio muito em casa. Fico ansiosa para ler. Às vezes saio e, no bar, começo a pensar em chegar em casa para continuar aquele livro, daquela página. Coleciono marcadores de livro (se alguém quiser me mandar uns...), coleciono lápis para comentar nas margens. Sem pudor. Não consigo parar e voltar e rever e acelerar de novo. O livro eu sorvo de uma talagada. Nem muito menos consigo ler dois ou mais ao mesmo tempo. Cruz-credo. Tanto é que um sobre as mulheres mais perversas do mundo, da editora Planeta, está embaixo do rádio-relógio, esperando que minha carreira de livros de estudo se acabe ou dê um tempo.
Livros de estudo? O final do doutorado me deixa com remorsos e culpas quando leio algo fora do esquemão. Não me dói, mas me angustia um tanto. Prefiro cumprir a tarefa com determinação. Deixo as perversas para depois. Depois da defesa, talvez. Duas prateleiras e meia estão na espera. E depois que tudo isso passar, vou mexer no meu jardim.
Fotocrônica 3: O bom leitor
Lê o que aparece na frente
Publicado em 30/3/2007
Fonte: Digestivo Cultural
Olá,
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