Aparelhos como o iPad, da Apple, e o Kindle, da Amazon, estão reinventando o modo como lemos. Os riscos e oportunidades para a indústria da informação
Por Carlos Rydlewski. Colaboraram Rafael Barifouse e Alexandre Teixeira
Aparelhos como o iPad da Apple, que chega às lojas este mês, e o Kindle, o leitor eletrônico da Amazon, estão reinventando o modo como lemos, ao transformar o papel em bits. Isso significa que livros, jornais e revistas vão acabar? Vão mudar? Ou ambos? Ainda não há respostas definitivas para essas questões. Mas a indústria já começa a aproveitar a metamorfose tecnológica gerada pelos e-readers e tudo indica que novas oportunidades de negócios surgirão. Eis, aqui, a história da revolução da mídia na visão de Jeff Bezos, Roberto Irineu Marinho, Paulo Coelho, Roberto Civita, Luiz Schwarcz, Otavio Frias Filho, Ruy Mesquita...
Estamos no ano 2050, na metade do século 21. Com surpresa, um grupo de crianças numa escola escuta o seguinte relato. No passado, descreve o professor,os homens usavam extensas porções de terra para plantar florestas. Após sete anos – mas esse prazo poderia ser três ou quatro vezes maior –, a mata nesses locais eraderrubada e suas toras, transportadas por centenas de caminhões até grandes usinas. Ali, produzia-se um artigo chamado papel. Disposto em bobinas, esse produto atravessava o mundo em porões de navios. A viagem só terminava em amplos parques gráficos, onde, embebido em toneladas de tinta, era usado para a produção de jornais, revistas e livros. Essas publicações também passeavam bastante. Impressas, embarcavam em aviões, caminhões, peruas, bicicletas ou mesmo em sacolas até a porta da casa dos consumidores. E um detalhe: no caso dos jornais, toda essa imensa engrenagem era movida para a divulgação de notícias do dia anterior. Era como continuar a erguer um palácio, mesmo enquanto o rei era deposto. No dia seguinte, tudo recomeçava.
De volta ao presente. Não é preciso esperar quase meio século, ou ser um integrante da geração “Y²” (um nativo digital do futuro), para se espantar com a descrição desse processo produtivo. Mas o mundo exposto no parágrafo anterior está entrando em estado de ebulição – ainda que sua percepção seja incipiente. Vivemos, hoje, no limiar de uma era pós-Gutenberg. Toda a tradicional estrutura do que se convencionou chamar de “mídia impressa” tem sido avidamente subvertida pelos novos meios de produção da era digital. O que era feito em átomos passa a ser executado – e transportado – em bits, a menor unidade de informação que habita um computador. Essa mudança é o tema central desta reportagem, não somente por seu interesse intrínseco, mas, principalmente, pelos desafios e pelas novas oportunidades de negócio que já começa a engendrar. Então, vejamos.
Prosperidade é um bom termo para definir o ritmo da venda de e-readers. Em 2010, pelo menos 5 milhões de aparelhos desse tipo devem ser comercializados
O GRANDE SALTO: Após a linguagem e a escrita, veio a revolução de
Gutenberg: em 1455, a prensa barateou e tornou os livros populares
CAPÍTULO 1
O CATALISADOR
Até aqui, uma inovação tem atuado como o principal catalisador da metamorfose átomos-bits na mídia. Ela responde pelo nome de Kindle (termo que significa aceso ou iluminado, no sentido de inspirador). Trata-se do leitor eletrônico de livros, cuja primeira versão foi lançada em 2007 pela Amazon, a gigante global do comércio online, com faturamento de US$ 24,3 bilhões por ano, quase três vezes mais que o principal concorrente, o eBay, com receita anual de US$ 8,4 bilhões. Esse tipo de produto também é chamado de e-reader e o Kindle não foi o primeiro a chegar às lojas. No fim dos anos 90, na pré-história do setor, surgiram versões conceitualmente similares, como os pioneiros SoftBook, criado por uma empresa com o mesmo nome situada em Menlo Park, e o Rocket eBook, da NuvoMedia, de Palo Alto, ambas companhias californianas. Mas nenhum prosperou. Eram tecnologicamente precários, pesavam mais de 1 quilo e se conectavam de forma rudimentar a bancos de dados chinfrins, com pouquíssimas opções de títulos.
O e-reader da Amazon é o oposto disso. Leve (292 gramas), fácil de usar, com capacidade para armazenar 1,5 mil livros, conecta-se à internet por rede sem fio de terceira geração (3G), também usada por celulares. Conta com um acervo de mais de 420 mil livros nos Estados Unidos. No Brasil, são 360 mil. Com tais predicados, o Kindle tornou agradável, prática e estimulante a leitura de livros, jornais e revistas em qualquer lugar, a qualquer hora. Desbravou, assim, um novo filão de negócios. Diz James McQuivey, principal analista da consultoria americana Forrester Research: “Nossos dados indicam que 3% da população americana lê livros em computadores portáteis, como notebooks. Em contrapartida, por enquanto, somente 1% utiliza e-readers. Mas entre esses dois grupos há uma diferença crucial. Quem usa o laptop, lê pouco e não paga nada pelo conteúdo. Apenas o baixa na internet. Quem tem o leitor eletrônico, lê em média dois livros digitais por mês e sempre paga por isso”. Traduzindo: o segundo grupo realmente constrói um negócio. E ele está sendo erguido velozmente. “Lançamos o Kindle há apenas 27 meses, e têm sido 27 meses muito instigantes”, afirmou Jeff Bezos, presidente da Amazon, a Época NEGÓCIOS.
A Amazon não divulga números sobre as vendas do aparelho, mas ele domina amplamente o mercado de e-readers, com pelo menos 60% de participação. Em segundo lugar vêm os três dispositivos da Sony (chamados Pocket, Daily e Touch Edition), com 30%. Estima-se que o Kindle tenha vendido 3 milhões de unidades, 500 mil delas fora dos Estados Unidos. Em 2010, deve emplacar mais 5 milhões de unidades. Mais um fato: o Kindle foi o aparelho mais vendido no Natal, entre os milhões de artigos oferecidos pela Amazon, com sede (física) em Seattle. Mark Mahaney, analista do Citigroup, calcula que em 2008 a comercialização do Kindle representou 0,6% do faturamento da empresa. Em 2010, tal percentual pode saltar para 4%.
A venda de livros eletrônicos, conhecidos como e-books, também prospera. Tome-se, novamente, o exemplo da Amazon. No fim de 2009, pela primeira vez, a empresa vendeu mais títulos em bits do que em átomos. “Foi um feito notável”, comemorou, então, Jeff Bezos. Segundo Edward McCoyd, diretor de políticas digitais da Associação Americana de Editores (AAP, na sigla em inglês), a venda de livros digitais somava US$ 20 milhões em 2003. Alcançou quase US$ 350 milhões no ano passado. “Acreditamos que a publicidade em torno do lançamento das três versões do Kindle tenha sido o principal fator para esse crescimento”, diz. Hoje, acrescenta McCoyd, os e-books ainda representam uma fatia pequena do mercado americano de livros, que movimenta US$ 24 bilhões por ano. Abrange entre 1% e 2% do total. Mas suas vendas avançam a uma taxa de três dígitos ao ano.
PRATICIDADE: A principal inovação do Kindle, de Jeff Bezos,
foi a permanente conexão com a internet por meio de rede sem fio
CAPÍTULO 2
UM CONCORRENTEDE PESO
É possível, porém, que o empurrão dado até agora pelo Kindle na digitalização da mídia tenha sido somente um suave sopro. Isso porque, no fim de março, a Apple planeja iniciar as vendas do iPad, o finíssimo computador portátil da marca, com 1,3 centímetro de espessura, apresentado em janeiro por Steve Jobs. O equipamento é tecnicamente definido como tablet. Funciona como uma prancheta eletrônica. Nas últimas semanas, foi severamente criticado por especialistas e blogueiros pelo que não tem (câmera, entrada USB...) e tachado como um “iPhone sob o efeito de anabolizantes”. Mas pouca atenção foi dada ao que tem.
Ele tem, por exemplo, o potencial de unificar usos – e conteúdos – num só dispositivo. O Kindle é um especialista. Lê textos. O iPad é um generalista. Faz tudo. O tablet da Apple reproduz o que se chama de conteúdo multimídia, que combina sons, imagens (vídeos ou fotos) e textos. Tal característica o torna especialmente atraente para alimentar a interação do usuário com qualquer tipo de mensagem, o que inclui peças de publicidade. Seu impacto na conversão da mídia para o formato digital, portanto, pode ser maior do que o observado até aqui com o Kindle. Mas a ambição e a força potencial do iPad são maiores.
Atualmente, no mundo da hiperconectividade, as pessoas estão permanentemente ligadas à internet, mas se conectam à rede por meio de diferentes dispositivos. No trânsito, e com pouco tempo disponível, usam smartphones (os celulares mais potentes). Em pausas mais longas, acionam os notebooks. Paralelamente, e isso serve para os mais jovens, valem-se de consoles portáteis como o Nintendo DS e o PlayStation Portable (PSP) para jogar. Para um bom livro ou uma notícia, um e-reader. Isso tudo sem contar com as longas horas à frente do computador em casa ou no trabalho. Ou seja, a rede e seus conteúdos têm uma audiência monumental, dispersa num emaranhado de produtos. O tablet, um item multiplataforma, tem o potencial de concentrar a atenção de usuários desses aparelhos. Está numa intersecção de eletrônicos: navega, roda jogos, filmes, programas de TV, mensagens e, em breve, por que não, fará ligações telefônicas. Ou seja, criar algo que integre tamanho leque de utilidades e seja um produto matador nas prateleiras equivale a encontrar o Santo Graal da eletrônica de consumo. Lembre-se: a Apple tem o hábito de realizar esse tipo de proeza (vide o iPod e o iPhone).
A tela é o ponto mais sensível dos leitores digitais. No Kindle, ela é adequada para a leitura, mas só reproduz tons de cinza. No iPad, é colorida, mas tem muito brilho
CAPÍTULO 3
UM NOVO PARADIGMA
Mas, antes de discorrer sobre as maravilhas (reais e potenciais) de brinquedinhos como o Kindle e o iPad – voltaremos a eles mais adiante –, é preciso entender a extensão da ruptura que os bits já provocaram na indústria editorial. Vamos tomar como base o mundo dos livros. Para muitos analistas, a principal mudança ocorre na distribuição do conteúdo. A internet, nesse caso, seria um canal adicional para a entrega do produto. De fato, os meios digitais são prodigiosos nesse campo. Qualquer dado (textos, cifras, fotos, vídeos, livros, notícias) viaja a velocidades alucinantes na rede. No mercado de capitais, a troca de informações entre computadores é tão rápida que atinge a casa dos milissegundos – a milésima parte de um segundo! Na web, também não há barreiras geográficas ou distâncias físicas. Nada, portanto, minimamente comparável à cara e demorada distribuição de livros impressos, que representa 15% do preço de capa de um título. Mas essa é somente uma pequena dimensão da mudança. No todo, ela tende a ser muito maior. Para entendê-la, vale a pena esmiuçar o caso da Amazon, que definitivamente estabeleceu um novo paradigma para a operação industrial e comercial nesse setor.
10 milhões de livros físicos foram digitalizados pelo Google. Para ganhar agilidade no processo, a empresa criou um método para escanear mil páginas por hora
FAZ TUDO: O iPad, de Steve Jobs, reproduz conteúdo multimídia e
pode acelerar a migração da mídia para o formato digital
CAPÍTULO 4
ONIPRESENÇA DIGITAL
Não há exagero em afirmar que os livros atravessaram os últimos 500 anos sem que os traços essenciais de sua estrutura fossem alterados. Eles reúnem um conjunto de palavras, organizadas de forma coerente, impressas sobre papel e empacotadas entre duas capas. Resumidamente, a cadeia produtiva desse segmento é formada por autor, editora, distribuidor, livraria e público. Ou melhor, era. A companhia de Jeff Bezos está reinventando todas as peças desse sistema. Mesmo autor e público, elementos indispensáveis em qualquer formato – digital, analógico ou o que mais inventarem –, estão sendo profundamente alterados. Vamos à mágica.
Engana-se quem vê a Amazon como uma empresa de comércio eletrônico. Esse não é o traço mais marcante da gigante online. É mais coerente defini-la como uma companhia de tecnologia, cujas inovações são aplicadas ao e-commerce. Assim como a Apple não pode ser dissociada de Steve Jobs, a companhia de Seattle está impregnada com a digital de seu criador, Jeffrey Preston Bezos, 46 anos, nascido em Albuquerque, no Novo México. Ele sempre caçou boas ideias. No colégio, fundou um centro para fomentar entre os estudantes o “pensamento criativo”. O espaço, que reunia protótipos de visionários, foi batizado de Dream Institute. Em 1986, Bezos graduou-se com distinção em engenharia elétrica e ciência da computação pela Universidade de Princeton. Em 1995, fundou a Amazon. A inspiração para o nome veio do rio brasileiro, por sua grandiosidade. Já o negócio em si surgiu de uma estatística. Bezos espantou-se ao saber que, apesar de ainda viver sua pré-história, a internet acumulava taxas de crescimento de cerca de 2 mil % ao ano. “Nada avança assim tão rápido”, raciocinou o executivo ao decidir desembarcar na rede. Para definir o foco do negócio, Bezos analisou quais eram os produtos mais encomendados nos Estados Unidos pelo correio. Os livros estavam nos primeiros lugares do ranking. Foi aí que decidiu captar pedidos pela internet. Desde o primeiro momento, usou a tecnologia como ferramenta estratégica. Montou um catálogo com mais de 1 milhão de títulos, o que só era possível no meio digital. Hoje, a Amazon passa por um intenso processo de diversificação. Conta, por exemplo, com linhas de produtos com marca própria, que vão de cabos para áudio e vídeo a produtos de cozinha. Mesmo sendo essencialmente digital, sua infraestrutura impressiona. A empresa tem pelo menos 25 centros de distribuição de produtos ao redor do mundo. Nesses locais, os artigos, as estantes, as empilhadeiras, os crachás dos funcionários, tudo é equipado com etiquetas eletrônicas. Elas são utilizadas para transmitir informações para uma rede e orquestrar o movimento de todas as peças que fazem parte desses depósitos.
Com esse mesmo gigantismo, a Amazon posicionou-se no mercado editorial. Criou, nos últimos cinco anos, novas frentes de negócios por todas as brechas da indústria do livro. Oferece, por exemplo, serviços como o BookSurge e o CreateSpace. O primeiro permite a impressão de títulos sob demanda. Assim, não é preciso mais mandar para o prelo um número exagerado de livros (toda edição implica riscos nesse campo) e vê-los encalharem em depósitos. O segundo auxilia autores, cineastas e músicos a produzir, divulgar e distribuirem suas obras na rede. É uma espécie de ferramenta de estímulo ao “faça você mesmo” (do it yourself, ou DIY, na variante em inglês). Em 2008, a companhia de Bezos comprou a Audible.com, uma empresa de audiolivros. Não é por acaso que o Kindle explora esse tipo de funcionalidade, na qual o e-reader lê (literalmente) o livro para o usuário do aparelho. O recurso, embora simples e comum, faz sucesso. Algumas pesquisas indicam que pode ajudar na educação de crianças com problemas de aprendizado.
Em 2008, a companhia de Bezos comprou a AbeBooks, uma espécie de sebo online, e a Shelfari, uma rede social formada por leitores assíduos. Em abril do ano passado, adquiriu a LexCycle, que criou o Stanza, um aplicativo para a visualização de livros no iPhone. Bezos tem ainda um programa que só pode ser classificado como espetacular, chamado Amazon Encore. Com base nas vendas do site, o sistema identifica livros com bom potencial de mercado e os imprime numa nova edição. Para que essas obras entrem no radar do Encore, basta que tenham feito sucesso entre a audiência. O mecanismo é um caça-talentos eletrônico. O software coleta, diretamente entre os usuários, as informações sobre o que querem e o que consideram relevante.
Mas a lista de agregados não terminou. No início deste ano, a Amazon comprou a Touchco, uma startup baseada em Nova York, especializada em telas sensíveis ao toque (touch screen). Com esse último investimento, alguém duvida que vem por aí uma nova geração do Kindle, com monitores ainda mais caprichados? Aliás, o aporte no desenvolvimento desse tipo de peça pode ser decisivo: a tela representa 42% do preço final do produto.
A DISTÂNCIA: Steve Ballmer, da Microsoft, aposta no tablet da HP.
A empresa de Bill Gates está atrás na corrida pela mídia digital
CAPÍTULO 5
EM BUSCA DO DOMÍNIO
Para quem acha difícil concorrer com a Amazon, um alerta: o Google, com faturamento anual de US$ 23,6 bilhões, também está nesse páreo. A maior companhia da internet, que saiu do zero e atingiu o domínio da rede em menos de dez anos, tem uma meta nada modesta nesse ramo: quer digitalizar todos os livros do planeta. Dados do Online Computer Library Center (OCLC) apontam que, dos 55 milhões de títulos existentes no mundo, 10% representam o catálogo ativo das editoras, 15% caíram em domínio público e 75% – ou 40 milhões – são livros não mais comercializados, mas que ainda não estão em domínio público. O foco inicial do Google são esses dois últimos grupos. No fim de 2009, o total de títulos convertidos em bits pela empresa já havia alcançado a cifra de 10 milhões. Os engenheiros da companhia criaram um método específico de digitalização, em que mil páginas são escaneadas por hora.
Mas isso não é tudo. Além de softwares e serviços – e um exército de Ph.Ds. para criar mais softwares e mais serviços –, tanto a Amazon quanto o Google contam com uma infraestrutura espetacular para dar sustentação aos seus modelos de negócio na web. Ela é formada por dezenas de data centers, verdadeiras fábricas de bits, que armazenam e processam os dados usados nos sites das empresas. Eles são parte fundamental da engrenagem física que move a internet. O escritor americano Nicholas Carr, ex-editor da revista Harvard Business Review e autor de títulos como A Grande Mudança – Reconectando o Mundo, de Thomas Edison ao Google, considera que essas centrais, formadas por milhares de servidores empilhados em prateleiras, estão para o início do século 21 assim como as redes elétricas, que substituíram os geradores nas indústrias e as lamparinas nas residências, estiveram para os primórdios do século 20.
A Microsoft também ronda a indústria de livros digitais. No início do ano, o principal executivo da companhia, Steve Ballmer, cutucou a Apple e a Amazon fazendo propaganda de um tablet criado pela Hewlett-Packard, a HP, chamado Slate. A empresa criada por Bill Gates conta com um programa para a leitura de e-books, o Microsoft Reader, que permite destacar trechos das obras, fazer anotações, buscas e a leitura eletrônica de textos. No fim de 2006, assim como o Google, a Microsoft inaugurou um projeto de buscas em conteúdo de títulos digitais, batizado de Live Search Books. Foi abandonado em 2008, com 750 mil livros e 80 milhões de artigos de jornais. Todo esse material foi armazenado no Internet Archive, uma organização sem fins lucrativos, que reúne 1,6 milhão de títulos de domínio público, sendo 900 mil deles provenientes do próprio Google.
10 milhões de livros físicos foram digitalizados pelo Google. Para ganhar agilidade no processo, a empresa criou um método para escanear mil páginas por hora
SEMPRE UNIDOS: A navegação na internet permite que tablets
e e-readers unam o mundo da mídia à comunidade das redes sociais
CAPÍTULO 6
OS NOVOS ELOS DA CORRENTE
Neste ponto, é importante retroceder um pouco na narrativa, para, diante de tamanha parafernália de recursos à disposição de gigantes como Amazon e Google (e, de forma marginal, pela Microsoft), examinar o que acontece com cada elo da tradicional cadeia produtiva da indústria do livro impresso. Potencialmente, as variações são de tirar o fôlego.
1. O AUTOR
É uma peça imprescindível do sistema. Sobreviverá em qualquer modelo de negócios, mas tende a ser fortemente tocado pela metamorfose dos bits. Em primeiro lugar, os meios digitais derrubam o que se costuma chamar de barreiras de entrada. Hoje, para produzir um livro, bastam ideias. Em tese, o mesmo ocorre com a notícia. Não é mais preciso movimentar prensas ou grandes aparatos de logística para a sua distribuição. Um título pode ser postado em sites específicos (as livrarias começam a oferecer esse tipo de serviço) ou mesmo divulgado entre integrantes de grupos na internet. Criada há dois anos, por exemplo, a comunidade Nossos Romances Adolescentes reúne mais de 3 mil participantes no Orkut. Já foi definida como uma incubadora de novos autores. No site, os livros (ainda que somente capítulos) são debatidos entre os integrantes. “Não sabemos ainda que tipo de conteúdo está surgindo desse sistema, mas a sua lógica é genial”, diz Lucia Riff, a maior agente literária do país, que representa 60 escritores brasileiros e mais de uma centena de estrangeiros no Brasil.
Nos meios digitais, a narrativa construída por autores não mais precisa se ater a textos e a ilustrações. Com o iPad, e similares multimídia, é possível incluir vídeos, animações e mapas nas histórias. Esse tipo de produto já foi chamado de “livro 2.0”, numa referência ao termo web 2.0, que designa uma segunda geração de comunidades e serviços da rede, ou “vooks”, numa fusão entre as palavras vídeo e books. O escritor brasileiro Paulo Coelho, que já vendeu 135 milhões de livros, traduzidos em 69 línguas, trabalha com esse tipo de ferramenta. Produz uma versão interativa de O Diário de um Mago, no qual relata sua caminhada até Santiago de Compostela, com recursos do Google Maps e do Google Earth. “Quando menciono uma espada, ela aparece. Em outros momentos, surgem informações sobre o trajeto. E por aí vai. É possível fazer um livro assim, mas com textos breves, como os de meu trabalho Maktub, que traz mensagens, pensamentos, reflexões e histórias curtas. Já estou conversando com uma companhia brasileira e outra indiana para viabilizar uma nova versão digital”, afirma Coelho.
A Saraiva também investe nessa nova vertente da narrativa multimídia, mas seu foco inicial incide sobre obras didáticas. “Acreditamos que esse tipo de recurso vai enriquecer consistentemente o aprendizado dos alunos”, diz José Luiz Próspero, CEO da editora. Nesse mesma linha, associando vídeos, fotos, textos e navegação na web, proliferam em todo o mundo protótipos de revistas para tablets. Um dos exemplos mais notáveis veio de uma edição digital da americana Sports Illustrated. Vale a pena conferir o resultado final no vídeo disponível em nosso site.
2. A EDITORA
Apesar de a Amazon, com todo o peso de seu arsenal tecnológico, ter se tornado na prática uma editora, isso não quer dizer que as empresas estabelecidas nesse ramo serão engolidas pela gigante online. Essas companhias filtram, organizam e aprimoram o conteúdo a ser publicado. Benfeito, tal papel é imprescindível. “Autores mais consagrados muitas vezes exigem mais trabalho editorial do que se imagina”, diz Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. “Não tenho dúvida de que, sem os editores, a qualidade do livro vai cair.” Elas também criam um público para o autor, com investimentos em marketing e divulgação, gasto que representa 15% do preço do livro. Mas têm sérios desafios pela frente. O primeiro deles é definir o preço da versão digital de uma obra.
A companhia de Jeff Bezos vende best-sellers a US$ 9,99 (US$ 11,99, no Brasil), o equivalente a 40% do valor de capa desses títulos, quando impressos. A empresa estabelece tal cifra (e, observe-se, de maneira unilateral) com o argumento de que se trata de uma reprodução e não a primeira versão do produto, na qual são eliminados os custos de impressão e distribuição, equivalentes a 15% do preço de capa. A Amazon tem outro motivo para não jogar seus preços para o alto: isso desestimularia a aquisição do Kindle, que custa US$ 259, nos Estados Unidos, e o equivalente em reais a US$ 580, no Brasil.
É evidente que o preço do produto digital não pode acompanhar seu clone em átomos. Mesmo porque ele é reproduzido quase sem custo: basta copiar o arquivo. Observe-se que o impacto revolucionário da invenção da prensa de tipos móveis por Johannes Gutenberg, em 1455, foi justamente baratear o custo de produção. Mas os analistas Claudio Aspesi e Jeffrey Lindsay, da consultoria americana Sanford C. Bernstein, veem problemas a médio prazo na estratégia de Bezos em sustentar valores muito baixos. A dupla estima que a Amazon lucra US$ 0,61 com cada e-book vendido a US$ 9,99. Um título impresso, comercializado a US$ 24,95, rende US$ 4,25 para a empresa. Trata-se de uma diferença muito grande, numa proporção de 7 para 1. Aspesi e Lindsay, contudo, calculam que se o livro digital custasse US$ 12,50, o ganho por unidade avançaria até 20%. Com esse aumento, e maior escala na venda, o negócio ficaria bem mais atraente.
O problema é que, independentemente das razões de Bezos, na visão dos editores um best-seller a US$ 9,99 canibaliza ferozmente o mercado do livro impresso. Quem explica o porquê é Sônia Jardim, diretora da Record e presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL): “Com um valor tão baixo do produto eletrônico, a venda dos exemplares de papel tende a diminuir. Essa é uma questão séria, pois, em grande parte, o negócio das editoras se sustenta nos best-sellers. São eles que cobrem o custo de lançamentos que têm menor aceitação por parte do público. As empresas do setor vivem do equilíbrio da receita gerada por todo o catálogo. O livro que vende bem paga a conta daquele que não vende. Com uma canibalização acentuada, esse sistema de compensação vai ruir”.
Os meios digitais são pródigos em ruir barreiras. Agora, qualquer pessoa pode escrever um livro, divulgar notícias e discutir suas ideias em redes sociais
O entrave do preço dos e-books só foi contornado (e, ainda assim, parcialmente) no início deste ano com um remédio simples: a concorrência. Para atrair conteúdo para o iPad, a Apple permitiu que os editores definissem o preço do livro, uma novidade nesse tipo de acordo, e ficassem com 70% do valor da venda. A partir de tal brecha, John Sargent, presidente da Macmillan, uma das maiores editoras dos Estados Unidos, deu um ultimato a Bezos. Ele queria que títulos fossem comercializados por US$ 14,99 (e não US$ 9,99). Caso contrário, protelaria por pelo menos seis meses a venda de seus lançamentos na Amazon, enquanto ofereceria os mesmos títulos em outras lojas online. Inicialmente, Bezos não cedeu e começou a retirar os produtos da Macmillan do site. Mas, mesmo sob protesto, voltou atrás. Sargent venceu. Há quem diga que, na prática, se os US$ 14,99 se mostrarem viáveis, Bezos vai parar de reclamar rapidamente. Isso porque ganhará quase US$ 5 por título, muito mais do que fatura atualmente.
No Brasil, outro nó que ameaça a vida das editoras na era digital é a relação com os autores. Elas estão correndo para refazer todos os contratos antigos com os escritores, pois eles não previam a existência de livros eletrônicos. Isso quer dizer que, mesmo depois de ter investido num título, os editores podem ver seu trabalho reproduzido na web sem ganhar nada com isso. Nos Estados Unidos, a situação é diferente. A maior parte dos contratos prevê a remuneração das editoras para os títulos em qualquer formato desde 2000.
Esse vazio contratual permitiu que o escritor Paulo Coelho fechasse um acordo diretamente com a Amazon no início deste ano. Ele passou a oferecer 17 de suas obras em português, entre elas a mais famosa, O Alquimista, com exclusividade por seis meses na Kindle Store. E fez um bom negócio. Normalmente, nas vendas físicas, os autores ficam com 10% do valor de capa de cada exemplar vendido. Coelho, pela profusão de best-sellers, recebe mais: cerca de 15%. Nas versões eletrônicas, como são mais baratas, esse percentual é maior. A cota do escritor é de 25% para e-books em inglês, cujos direitos de venda pertencem à HarperCollins. Pois, com o negócio sem intermediários com a Amazon, o autor brasileiro terá direito a 37,5% de cada venda eletrônica.
Por mais que existam desavenças entre as editoras físicas e a Amazon, todos os livreiros sabem que é suicídio ficar à margem da digitalização. Em uníssono, os analistas de tecnologia avaliam que 2010 será o ano dos e-readers e e-books. Eles podem não estar certos nas projeções, mas servem de termômetro para o setor. Paulo Coelho também concorda com a oportunidade que o impulso elétrico aplicado à literatura pode representar. Diz Coelho: “Em todo o mundo, as editoras não sabem o que fazer. Em alguns lugares, como na França, tentam boicotar a Amazon de maneira organizada. Acho tudo isso uma perda de tempo. Com 3 milhões de artigos à venda no site, a Amazon não está dando a mínima para esse pessoal. Mas o autor pode sair muitíssimo prejudicado dessa história, porque corre o risco de perder o suporte eletrônico. Vamos a um dado concreto. Em 2007, vendi 317 e-books de cada um dos meus títulos. Como tinha 15, foram 4.755 exemplares. Em 2009, esse número passou para 32.600. Evidente que minha venda em papel foi maior. Mas esse foi um avanço notável. O autor que não se atualizar vai ser pego na contramão de uma revolução”.
O desafio das editoras é competir com o preço do livro digital e refazer os contratos antigos firmados com escritores. Eles não previam a existência de e-books
3. IMPRESSÃO E DISTRIBUIÇÃO
Este é o menor parágrafo desta reportagem. No mundo digital, não há lugar expressivo para esses segmentos. Ainda assim, algumas gráficas investem na oferta de impressão sob demanda para os portais que vendem livros na internet. Essa é uma metamorfose possível.
4. AS LIVRARIAS
Há dúvidas se o destino das livrarias num mundo de bits não estaria associado ao das lojas de CDs. Na última década, a maior parte desses estabelecimentos sumiu do mapa após a avalanche do download de canções. Sergio Herz, diretor financeiro e de inovação tecnológica da livraria Cultura, acredita em mudanças no setor, mas nada tão dramático. “Algumas coisas vão mudar. Não creio, por exemplo, que a estratégia de abrir uma loja em cada esquina vá prosperar. Ela não faz sentido num futuro com forte presença da internet no comércio de livros. Mas acho que as livrarias sobreviverão por muito tempo ao oferecer uma excepcional experiência para seus clientes. Esse é o mesmo conceito que está dando certo em lojas criadas nos últimos anos por marcas como Apple, LG, Samsung e Nokia, entre muitas outras.” De acordo com Herz, um dos donos da Cultura, ao lado do irmão Fábio e do pai, Pedro, pelo menos sete em cada dez clientes da livraria não sabem o que vão comprar ao entrar numa das nove lojas da rede. “Eles decidem no ato. Portanto, se tiverem uma boa experiência, continuarão a ser atraídos para as lojas.”
As livrarias investem ainda em portais próprios, nos quais podem vender títulos em qualquer formato: para iPad, iPhone, BlackBerry, Palm e o que mais surgir. Paralelamente, são mantidas as vendas por outros canais, como catálogos e telefone. A rede americana Barnes & Noble foi mais longe: digitalizou seu acervo e lançou um e-reader próprio, o Nook. Mas não tem uma estrutura tão ágil e eficaz quanto a Amazon. Ainda assim, há muito espaço para inovação e empreendedorismo nessa área. O carioca Carlos Eduardo Ernanny, por exemplo, inaugurou em dezembro do ano passado a livraria online Gato Sabido, um canal de vendas de e-books pela web. A marca também comercializa um leitor eletrônico, o Cool-er, desenvolvido na Inglaterra e fabricado em Taiwan. Básico, o produto custa R$ 750 (é vendido até por boleto bancário) e os títulos podem sair por R$ 1,99, como crônicas de Nelson Motta, ou R$ 40, caso de alguns lançamentos. O sonho de Ernanny é ser um Bezos dos trópicos. “Por que não?”, questiona. “Até já encontrei o meu diferencial: estou me especializando em livros em português.”
5. O PÚBLICO
Há uma característica marcante que distingue as pessoas que usam dispositivos eletrônicos para ler e-books. Elas raramente estão sozinhas. Vivem (e gastam cada vez mais tempo) num ambiente onde proliferam as redes sociais. Aparelhos como o iPad, com recursos multimídia e boa navegação na web, tendem a fomentar ainda mais esse estado quase permanente de conexão entre as pessoas (no caso, os leitores). E não são poucas interagindo nesses sites. Dados publicados pela revista britânica The Economist em fevereiro dão conta que a maior rede social do planeta, o Facebook, contabiliza mais de 350 milhões de usuários, número somente inferior à população da China e da Índia. Essas pessoas postam 55 milhões de atualizações por dia e compartilham 3,5 bilhões de arquivos por semana. Ao adquirir a rede de leitores Shelfari, em 2008, a Amazon estava justamente se posicionando nesse campo. A lógica dessa estratégia é explicada pelo italiano Federico Casalegno, diretor do Laboratório de Experiência Móvel do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, um especialista na intersecção entre os mundos de átomos e digital. “Hoje, o ato de ler não pode mais ser traduzido como uma maneira de ter acesso a informações. As pessoas querem participar e produzir conteúdo, postar comentários em blogs e se envolver em grupos de discussão.”
MULTIMÍDIA: O mercado de livros escolares é um dos alvos dos tablets,
como o iPad. A reprodução de vídeos pode ajudar no aprendizado
como o iPad. A reprodução de vídeos pode ajudar no aprendizado
CAPÍTULO 7
O FIM DA ESCASSEZ
A história usada no início desta reportagem, sobre a sala de aula do futuro, foi contada pelo presidente das Organizações Globo, Roberto Irineu Marinho, ao editor convidado desta edição de Época NEGÓCIOS, Pedro Moreira Salles (veja entrevista na pág. 87). Isso só torna evidente que os empresários da mídia reconhecem a eficácia do modo de produção digital, em comparação ao modelo tradicional. Mas o problema, comum a todas as empresas desse ramo, é tornar o negócio na web rentável. “Sai caro produzir jornalismo independente e com qualidade”, afirma Otavio Frias Filho, diretor editorial da Folha de S.Paulo. Na imprensa livre, um dos pilares de qualquer sistema democrático, esse custo é arcado pela receita proveniente da publicidade. Os anúncios bancam grande parte do processo produtivo. Ocorre que, progressivamente, eles estão caminhando para a web, mas, ao menos por enquanto, não na direção dos sites das empresas de mídia. Saber atraí-los é uma habilidade que vale bilhões de dólares atualmente.
Hoje, o grande desafio das companhias de mídia é encontrar novas formas para ganhar dinheiro com a venda de notícias. E essa é uma tarefa espinhosa no meio digital. Invariavelmente, um conteúdo perde valor ao migrar do formato de átomos para o de bits. Em grande parte, isso ocorre porque o preço de um produto está ligado à sua escassez. Ele vale por sua utilidade, mas também por sua quantidade limitada. A internet, porém, em sua essência, é o oposto disso. É o reino da abundância. “Na rede global, qualquer um dos 1,7 bilhão de usuários pode copiar, distribuir e piratear qualquer tipo de dado. A reprodução é rápida e simples. É por isso que, no formato digital, o conteúdo perde valor. Foi isso o que vimos acontecer com a indústria da música”, diz Ricardo Gandour, diretor de conteúdo do Grupo Estado.
Então, o desafio é maior: convencer o consumidor a pagar por aquilo que ele já consegue de graça, ao alcance do mouse. Algumas pesquisas trazem dados assustadores sobre esse tema. Um levantamento da KPMG, no Reino Unido, constatou que somente 11% dos usuários da internet gastam dinheiro com mídia (21% com TV online, 19% com vídeo sob demanda, 17% com música e 7% com jornais e revistas). Outros 28% cortaram despesas com publicações por ter acesso às informações gratuitamente. Pior: a Lightspeed Research constatou que, entre os britânicos, 91% não estavam dispostos a pagar por notícias online. Assim, cobrar por esse tipo de conteúdo, hoje uma commodity na web, parece uma missão impossível. Mas foi justamente essa a conquista do iTunes, a loja virtual da Apple.
As livrarias devem se transformar numa espécie de playground da leitura. Suas instalações terão de oferecer uma ótima experiência para que os clientes as frequentem
CAPÍTULO 8
CONVENIÊNCIA É A CHAVE
Quando o iTunes foi lançado, em 2006, o cenário em torno da indústria fonográfica era de terra arrasada. Mas, desde então, a Apple, de Steve Jobs, vendeu mais de 10 bilhões de músicas (a média é de 100 faixas por segundo) e se transformou no maior canal de distribuição de canções do planeta. Como? No iTunes, a clientela não paga somente por um arquivo digital. Gasta pela conveniência de fazer uma transação segura, com uma base de dados gigantesca, dentro de uma interface amigável, onde o conteúdo adquirido é organizado de maneira simples, eficaz e personalizada. A expectativa é que, crescentemente, aparelhos como o Kindle, e seus pares no mundo dos e-readers, e o iPad e tablets similares, ofereçam a mesma conveniência para os consumidores de jornais e revistas. Com isso, podem consolidar um sistema de compras semelhante ao do iTunes, baseado em micropagamentos.
Isso será bom, mas não suficiente. Earl Wilkinson, CEO da International Newsmedia Marketing Association (Inma), uma entidade sem fins lucrativos centrada na discussão do futuro da mídia, acredita que o micropagamento é somente uma forma de se cobrar pelas notícias. As assinaturas, ações específicas com patrocinadores, além da publicidade convencional, complementam a receita. Mas Wilkinson defende que a única ação realmente eficaz é criar a impressão de escassez em meio à abundância. Em um amplo estudo sobre esse tema, ele elencou uma série de medidas imprescindíveis para se alcançar tal meta. Algumas delas são óbvias: criar conteúdos exclusivos, investigativos, com boa análise e interativos, além de acentuar a percepção de relevância da informação por parte dos consumidores, auxiliando no dia a dia das pessoas, em campos como o trabalho, os investimentos e o consumo pessoal. Outras são menos evidentes. Ele destaca que não se pode usar na internet a mesma lógica do impresso. “O conteúdo não pode ser somente dividido em blocos verticais, com temas como esportes, negócios e estilo de vida. Isso é amplo e vago demais para quem navega na internet”, diz Wilkinson.
O CEO da Inma acredita, porém, que a resistência em gastar com notícias diminui quando o conteúdo está associado a outros serviços, como telefonia móvel e TVs a cabo. Outra alternativa é adaptar boas práticas de setores diferentes. Ele considera que a indústria fonográfica errou ao acreditar que estava no negócio dos CDs, enquanto os consumidores sabiam que estavam no negócio das canções. Mas, desde então, tem desenvolvido projetos interessantes. Ela aprendeu, por exemplo, a ampliar o leque de vendas em torno de um só conteúdo. No álbum Futuresex, do cantor pop Justin Timberlake, somente 20% da receita veio dos CDs. “As empresas terão de testar ao máximo, e muitas iniciativas não serão bem-sucedidas. Por isso, é importante que desenvolvam alguma forma de colaboração. Não é lógico imaginar que centenas de jornais brasileiros vão realizar experimentos isoladamente. Isso seria muito caro e ineficiente”, acrescenta.
PREÇO É PROBLEMA: Para se tornar um produto de massa, presente no
cotidiano, os e-readers devem custar US$ 100. O Kindle sai por US$ 259
CAPÍTULO 9
MURDOCH, O ASTUTO
Para quem acompanha a distância as discussões sobre o futuro da mídia, o magnata australiano Rupert Murdoch, dono da News Corp., que reúne títulos como The Wall Street Journal (WSJ) e o britânico The Times, surge como uma figura anacrônica, avessa ao mundo digital, que não para de avacalhar o Google e, em tom levemente mais ameno, a Amazon. Bobagem. Murdoch promove uma revolução na sua empresa, o quinto maior conglomerado de mídia do planeta, ao conduzi-la para a esfera digital. Em 2007, ele anunciou que pretendia liberar o acesso ao WSJ pela internet. Disse que preferia 15 milhões de leitores online em todo o mundo ao 1 milhão de assinantes da publicação online, que geram uma receita anual de US$ 65 milhões. Mas desistiu da ideia. Em maio de 2009, informou que todos os sites de sua empresa cobrariam pelas visitas. “A revolução digital abriu canais de distribuição novos e baratos. Mas a indústria que simplesmente dá seu conteúdo de graça está matando sua habilidade de produzir boas reportagens”, disse Murdoch. E acrescenta, sempre que pode: “O conteúdo não é rei, é imperador”. Hoje, cobrar pelas informações em sites voltou a ser uma forte tendência entre empresas jornalísticas.
Mas o especialista em mídia Mark Day, do jornal The Australian, destaca num relatório produzido pela Inma no fim de 2009 que a News Corp. está desenvolvendo uma abordagem inédita sobre mídia online. “Os sites serão um misto de redes sociais, notícias, serviços, comércio, informação e entretenimento voltado para pessoas com os mesmos interesses ou das mesmas comunidades”, afirma Day. Grupos da corporação estabelecidos em Londres, Nova York, Los Angeles e Sydney trabalham conjuntamente no desenvolvimento desses novos portais midiáticos como parte de um projeto cujo codinome é “2011”. Ele também resultaria na criação de sites voltados para jovens, famílias, idosos ou pessoas antenadas em novidades tecnológicas. Para atrair o público e tornar o conteúdo relevante, pode-se ainda recorrer a dados com parâmetros geográficos, com base na localização dos usuários do sistema.
A News Corp. também inova na maneira como cobra pelo conteúdo. Ela combina veículos diferentes e aplica planos variados de acordo com a plataforma e o tipo de acesso. Algumas publicações têm programas de fidelização. O The Times e o Sunday Times criaram o The Times+, em que o usuário paga 50 libras por ano para ter direito a ofertas especiais – como entradas para teatro e cinema, além de descontos em livros e viagens aéreas – e conteúdos exclusivos em áreas de interesse específico, como cultura e esportes. Segundo executivos do conglomerado, essa é uma tentativa de estabelecer uma relação direta com os leitores, baseada em “interesses específicos e paixões”. O pacote do Times+ inclui ainda a TV a cabo Sky em alta definição. Há planos de criar um projeto semelhante para o Wall Street Journal na segunda metade de 2010. No fim de 2009, a News Corp. anunciou que também lançaria um site premium, chamado Wall Street Journal Professional, por US$ 49 por mês. Ele teria notícias exclusivas e análises de negócios. A iniciativa seria voltada para aqueles que querem mais do que a versão impressa oferece, mas não precisam de informações de ponta – e caras – providas por canais como Dow Jones e Bloomberg. O preço das aplicações do jornal para celulares segue um crescendo. É gratuito para assinantes da versão online e pode custar até US$ 104 por ano, para quem só quer receber informações pelo telefone. “O fundamental é conseguir cobrar pelo jornalismo de qualidade”, diz Roberto Civita, presidente do conselho de administração do Grupo Abril.
O preço ainda é um problema para a massificação dos e-readers e tablets. Mas em um ano, somente as telas desses aparelhos ficaram 20% mais baratas
CAPÍTULO 10
É O FIM. SERÁ?
De volta ao futuro. Estamos em 2050 e eis a grande dúvida: será que, com todas essas novidades, o negócio em torno dos livros, jornais e revistas em papel acabou? Só sobraram os impulsos elétricos? Aos fatos: para produzir uma revolução que abale substancialmente a estrutura da mídia impressa (tanto para o bem, vendendo mais, como para o mal, quebrando elos da cadeia produtiva) é preciso que ocorra uma grande massificação de e-readers e tablets. Na opinião da consultora Vinita Jakhanwal, da iSuppli, isso só ocorrerá quando os produtos forem vendidos por no máximo US$ 100. O Kindle, que custa US$ 259 nos Estados Unidos, está longe desse patamar. O iPad, então, com versões de US$ 499 e US$ 829, fica a anos-luz desse nível. Mas Vinita faz uma ressalva: “Esse setor preparou-se para um aumento da demanda. Há uma grande capacidade para fabricar mais aparelhos. Os seus componentes, principalmente chips e telas, os itens mais caros, estão ficando mais baratos. Só no display, tivemos um barateamento de US$ 20 entre 2008 e 2009. Tudo isso vai reduzir os preços dos e-readers e torná-los mais acessíveis para uma parcela maior da população”.
Mas ainda assim, a mídia impressa vai acabar? Earl Wilkinson, da Inma, responde de maneira singular: “Quando me deparo com esse tipo de questão, penso num homem, no início do século 20, olhando para um automóvel e querendo saber se, no futuro, ainda haveria espaço para o cavalo. Espaço existe, mas... O fato é que ainda vamos encontrar vida em outro planeta antes que a mídia impressa acabe. Só não sei se ela será um veículo de massa por muito tempo”. Assim, talvez a localização de vida fora da Terra ainda seja impressa num jornal ou descrita num livro. Para quem estiver por lá, boa leitura.
“OFERECER CONVENIÊNCIA SE TRADUZ EM MAIS LEITURA”
JEFF BEZOS | AMAZON
Com o Kindle, A Amazon vende seis livros eletrônicos para cada dez físicos da mesma edição
Os novos leitores eletrônicos são uma tecnologia divisora de águas ou, simplesmente, uma evolução a caminho da digitalização?
De várias formas, é uma completa revolução. Por exemplo, normalmente quando mandamos livros em inglês dos Estados Unidos para o Brasil, os clientes têm de pagar pelo envio expresso e leva dias para o livro chegar. Com o Kindle, os livros chegam ao Brasil por via eletrônica em 60 segundos. Oferecer conveniência ao leitor se traduz em mais leitura. Quando temos as duas edições, vendemos seis livros eletrônicos do Kindle para cada dez livros físicos. Esse é um dado do último ano e inclui apenas livros pagos – livros gratuitos iriam fazer o número dos eletrônicos ficar ainda maior. Lançamos o Kindle há apenas 27 meses, e têm sido 27 meses muito instigantes.
Qual será o impacto do livro eletrônico no modelo de negócios da mídia, das editoras de livros, nas livrarias e na área de distribuição?
Todas essas indústrias terão de se adaptar e se desenvolver para continuar a servir seus consumidores.
“OS LEITORES ESTÃO COMPRANDO MAIS LIVROS ELETRÔNICOS DO QUE IMAGINAMOS NESTA FASE INICIAL. O KINDLE TEM APENAS 27 MESES” - JEFF BEZOS
No caso dos livros, qual a sua estimativa para a velocidade de adoção da versão eletrônica como a forma preferida de leitura por parte dos consumidores?
Estou surpreso com a velocidade com que as pessoas estão fazendo a transição do livro físico para o eletrônico. Leitores estão comprando mais livros para o Kindle do que jamais imaginamos possível nessa fase inicial. Como falei anteriormente, quando temos as duas edições, vendemos seis versões eletrônicas para cada dez livros físicos. Estamos surpresos que esse número seja tão alto tão cedo, levando em consideração que temos vendido livros físicos por 15 anos. Em maio passado, introduzimos o Kindle DX com uma tela grande, de 9,7 polegadas, ótimo para conteúdos com grande formatação, como ocorre nos livros didáticos e nos documentos de negócios. Várias universidades estão testando o Kindle DX e nos ajudando a tornar a experiência ainda melhor para os estudantes. Recentemente anunciamos o Kit para Desenvolvimento do Kindle – KDK –, que dá aos desenvolvedores de software e aos editores ferramentas para criar livros para o Kindle. Um dos muitos títulos que são possíveis de desenvolver são os didáticos.
Colunistas de opinião e autores conhecidos têm agora a possibilidade de desenvolver uma relação direta com seus leitores e gerar renda com isso. Será que essa é uma tendência irreversível e como ela impacta nas editoras, nas revistas e nos jornais?
Não tenho certeza, teremos de esperar e ver. Muitos autores e editores já usam o nosso autosserviço da Plataforma Kindle de Texto Digital para colocar seus livros na internet e vendê-los diretamente na loja Kindle.
Economias em desenvolvimento têm investido, por anos, numa grande infraestrurura física de livrarias públicas. Não seria melhor para governos nesses países alocarem seus recursos finitos na construção de uma rede de banda larga maior e mais robusta?
Sem dúvida, os leitores estão fazendo a transição do livro físico para o eletrônico muito rapidamente, então acho que esta opção está certa.
“O CONTEÚDO TERÁ DE SE ADAPTAR AOS DISPOSITIVOS”
ROBERTO IRINEU MARINHO | ORGANIZAÇÕES GLOBO
O futuro das gráficas pode estar ameaçado pela digitalização, mas o dos livros, jornais e revistas, não
O senhor acredita que, com os e-readers, estamos diante de uma invenção que altera completamente o modelo de negócios de indústrias estabelecidas? Quais serão as mais afetadas?
A adaptação de determinados modelos de negócios é inegável, assim como o potencial de surgimento de modelos inéditos. Já há um forte impacto na produção do conteúdo, que terá de se adaptar aos novos dispositivos de visualização. Diferentemente do que aconteceu na indústria fonográfica, em que a digitalização só modificou a distribuição e o consumo da música, no mercado editorial podemos esperar uma transformação nos processos criativo e de produção. Lembre-se que, com a segunda geração de e-book readers, não estamos falando apenas de um aparelho para ler livros, mas de uma plataforma de consumo de conteúdo multimídia distribuído em tempo real. A relevância de um dispositivo como o iPad não está na substituição do papel enquanto suporte para o conteúdo de um jornal, mas na necessidade de manter esse conteúdo continuamente atualizado, onde quer que você esteja, com imagens, textos e sons. Os novos devices aceleram um processo que já estamos vivendo há alguns anos. A grande questão é como tal serviço será remunerado. Provavelmente, será por uma combinação de publicidade, assinatura e micropagamentos, pois não existe almoço grátis, nem mesmo na internet.
A migração do mundo impresso para o digital é um tema que vem sendo discutido há algum tempo. O senhor acredita que ela poderá ser muito rápida a partir de agora?
Onde ela podia ser mais rápida, a migração já vem acontecendo. No caso da mídia, o que já era eletrônico se torna digital mais rápido do que o impresso, mas mesmo os jornais já circulam digitalizados em suas edições online há mais de uma década. Em outras indústrias, essa mudança está apenas começando. Como é o processo mais conhecido de distribuição de informação jornalística ainda hoje? Empresas derrubam grandes quantidades de árvores, produzem papéis em grandes usinas, que são transportados por navios para enormes parques gráficos em diversos continentes. As informações são impressas nesses papéis com grande quantidade de tinta, durante as madrugadas, e distribuídas por aviões, caminhões e indivíduos a pé, para cada domicílio. Isso, todos os dias. Ao ouvir falar disso, uma criança do futuro certamente ficará horrorizada com a ineficiência desse processo. Quando a informação se torna disponível por meio digital, o interesse por ela não diminui. Ao contrário, aumenta. Nosso desafio é encontrar formas de remunerá-la de modo a permitir a produção de informação de boa qualidade.
“HÁ TANTA INFORMAÇÃO DISPONÍVEL QUE O TRABALHO DE SELEÇÃO E EDIÇÃO TORNA-SE INDISPENSÁVEL A TODO TIPO DE CONTEÚDO ”- ROBERTO IRINEU MARINHO
Qual, na sua opinião, será o futuro do modelo de negócios das empresas de comunicação, particularmente da mídia impressa, no mundo digital?
A digitalização leva necessariamente à concentração adicional do setor? Em primeiro lugar, nenhuma empresa de comunicação atenta aos rumos do mercado se define mais como mídia impressa. São produtoras e organizadoras de conteúdo, remuneradas diretamente pelo consumidor ou por anunciantes interessados em obter sua atenção, modelos que continuam válidos. O futuro das gráficas pode estar ameaçado pela digitalização, mas o dos livros, jornais e revistas, não. Estes terão seu conteúdo produzido, organizado e distribuído de novas formas e remunerado segundo os modelos atuais e outros que virão a surgir. Quanto à concentração, ela pode ocorrer justamente na plataforma de distribuição, beneficiada pela economia de escala. A Amazon hoje detém a maior parte das vendas de e-books. Já na criação de conteúdo, nunca se falou tanto em diversificação quanto nos dias de hoje. No entanto, diversificar não significa necessariamente que as marcas mais importantes e de maior credibilidade e influência perderão atratividade. Basta olhar para a indústria de televisão por assinatura. Existem centenas de canais de televisão pagos nos Estados Unidos. No entanto, a maior parte da audiência se concentra num grupo muito pequeno.
As editoras de livros e os conglomerados de mídia são organizadores de conteúdo e representam um selo de qualidade para o consumidor. Entretanto, autores conhecidos e jornalistas/colunistas de prestígio podem prescindir desse selo e buscar um relacionamento direto, remunerado, com seus leitores por meio dos e-readers. O senhor acredita que pode haver um sério risco de desintermediação, com as empresas de comunicação e as editoras perdendo seus nomes mais conhecidos?
Raramente existe desintermediação. O que acontece é uma reintermediação: um cantor pode abrir mão da gravadora, mas passa a ter de lidar com a Apple, se quiser distribuir sua obra no iTunes. Alguns talentos podem buscar uma relação mais direta com o público, mas não são todos que desejam se envolver em cada uma das etapas da cadeia de valor. As editoras agregam muito mais a um livro do que a simples impressão e distribuição. Além do que, os autores de renome de hoje foram originalmente descobertos e promovidos por alguém. Esse papel jamais deixará de existir. Você mencionou a atuação das editoras na organização do conteúdo. Essa é uma de nossas maiores missões no mundo digital, em que há tanta informação disponível que o trabalho de seleção/edição torna-se indispensável, para todos os tipos de conteúdo.
“QUANDO VI O KINDLE, PENSEI: NÃO POSSO FICAR FORA DISSO”
PAULO COELHO | ESCRITOR
O autor recebe 37,5% de um e-book para o Kindle.Nas vendas físicas, o percentual é de 14%, mas o valor é maior
O que motivou sua aproximação com a Amazon?
A motivação surgiu da compra de um Kindle. Eu já olhava essas plataformas, já tinha alguns livros publicados na internet. Quando chegou meu Kindle, o primeiro livro que baixei foi meu O Alquimista. Quando vi que a leitura era extremamente agradável, pensei: “Não podemos ficar fora dessa”.
O acordo para o lançamento de seus livros em português no Kindle não tem a intermediação de uma editora?
Detenho os direitos sobre as obras em quase todas as línguas, exceto a inglesa. Mas precisava obter das editoras um negócio chamado ISBN [International Standard Book Number, registro internacional padronizado que identifica numericamente os livros segundo o título, o autor e a editora]. Foi aí que comecei a ver duas coisas. A primeira é a total desorientação. As pessoas não entendiam, achavam que eu estava querendo alguma coisa que elas não deviam dar. Elas não têm esse direito, porque não vendi as versões eletrônicas. Exceto pela HarperCollins, nenhuma editora do mundo tem esse direito. Mas elas têm as traduções. O primeiro problema foi com a francesa. Pouco a pouco, fui colocando pressão, pressão, pressão. No fim, consegui todas as principais traduções. Isso é uma troca de favores.
Faz sentido oferecer seus livros em português no mundo todo?
Criei um termo no Twitter: digiáspora. É a diáspora digital. No fundo, esse lançamento em português visa o brasileiro que está no exterior.
E os livros em inglês?
Sobre esses, tenho os direitos autorais, mas não os direitos de venda. A HarperCollins é que coloca [na Kindle Store], numa negociação normal.
“NÃO ACREDITO NO IPAD, POIS TRATA-SE DE UM GRANDE IPHONE. ELE TEM UMA COISA CHAMADA LUZ DE TRÁS, QUE DIFICULTA A LEITURA”- PAULO COELHO
É mais vantajoso para o autor negociar diretamente com a Amazon?
Não é essa a minha motivação, mas ganho 37,5% [do preço do e-book em português para o Kindle]. No caso da HarperCollins, são 25%. Ganhava 14% nas vendas físicas. Já o Maktub [livro lançado em 1994, cuja tradução para o inglês está chegando agora ao Kindle] nós mesmos estamos colocando, porque é um novo contrato, fechado depois dessa explosão do Kindle. Os contratos americanos eram muito mais sábios que os outros. Mas agora, no primeiro contrato que assinamos depois do Kindle, eles pediram [para incluir o e-book no acordo], mas dissemos “não vamos dar”.
O acordo com a Amazon, firmado em janeiro, prevê exclusividade de seis meses. Até lá, o iPad vai estar à venda e outros leitores eletrônicos podem ganhar mercado...
Eu, particularmente, não acredito no iPad. Porque trata-se de um grande iPhone e, principalmente, porque tem uma coisa chamada luz de trás. Não acredito que a gente consiga ler numa tela que emite luz.
Que tipo de evolução do mercado o senhor acompanha para uma possível renegociação do contrato com a Amazon no segundo semestre?
Acho que o mercado não vai para outro tipo de leitor. Acho que vai para o telefone, uma plataforma diferente. Recebi um Nokia da série E cujo brinde era A Bruxa de Portobello [seu livro de 2007] em polonês.
O senhor já sabe como foram as vendas iniciais no Kindle?
Sei dos primeiros dois dias. Foram ótimas. Vendemos 222 livros de cada um dos meus 17 títulos.
O senhor precisa de uma editora para vender seus livros no mundo virtual?
Preciso botar uma pessoa atendendo o telefone, pagando imposto, conferindo as vendas. Você acha que vou querer cuidar disso, para ganhar 5% mais? Muitos americanos estão optando por essa fórmula, mas acho que é uma perda de tempo. Acho que editora é uma coisa que sempre existirá. E espero e torço para que exista um negócio chamado livraria, embora elas estejam muito na linha de tiro.
Com o livro digital, não haverá pouco espaço para as livrarias?
É o meu temor, mas espero que essa transição se faça a longuíssimo prazo. Sempre que há uma revolução tecnológica, as pessoas acham que a plataforma anterior morreu. Mas não é o caso. Anunciou-se a morte do cinema, e o cinema sobreviveu à TV. O livro ainda não tinha passado por uma revolução assim. É o mesmo suporte há muitos séculos, desde que Gutenberg inventou a prensa com tipos móveis e barateou seu custo. Não haverá uma morte, mas uma adaptação.
As editoras estão abertas para discutir com os autores?
As conversas, não só no Brasil, são as mais surrealistas. Os caras não sabem o que fazer. Tentam criar um boicote contra a Amazon e qualquer outra plataforma eletrônica. Na França, os editores já se organizaram. Acho uma perda de tempo. Com 3 milhões de produtos para vender, a Amazon não está nem aí. O autor sairá prejudicado. Em 2007, vendi, no suporte eletrônico, 317 livros de cada um dos meus títulos. Como eram 15 títulos, foram 4.755 exemplares. Em 2009, passei para 32.600. Foi uma progressão desproporcional. Evidente que minha venda em papel é muito maior, mas em 2010 as vendas digitais vão dar outro salto, porque o Kindle foi a plataforma mais vendida. O autor tem de estar atualizado com o que está acontecendo. Mas as editoras não sabem o que estão fazendo, e precisam descobrir.
“A DIGITALIZAÇÃO ABRE ESPAÇO A NOVOS CONTEÚDOS”
ROBERTO CIVITA | EDITORA ABRIL
Mas é preciso ver até que ponto a fragmentação impactará as audiências já existentes
Na sua opinião, os leitores eletrônicos de texto (e-readers), como o Kindle, e aparelhos semelhantes, como os tablets, ajudam ou comprometem o futuro do negócio de jornais, revistas e livros?
A curto prazo, eles nos obrigam a repensar – e rápido – o negócio como um todo e investir tempo, dinheiro e talentos na busca de soluções digitais. Mas acredito que, a longo prazo, contribuirão para ampliar o nosso universo leitor, pela facilidade, velocidade e redução de custos de distribuição.
Estamos diante de uma invenção que altera completamente o modelo de negócios de indústrias estabelecidas? Quais serão as mais afetadas?
Acredito que esta nova tecnologia – especialmente à medida que as plataformas evoluírem – altera o modelo de negócios de todas as empresas de comunicação. Mas, no caso das revistas, isso não será repentino, e o papel impresso continuará existindo por muitos anos. Se formos competentes, teremos tempo mais do que suficiente para nos adaptar.
A migração do mundo impresso para o digital é um tema que vem sendo discutido já há algum tempo. O senhor acredita que essa transformação será muito rápida a partir de agora?
Será, sem dúvida, mais rápido para o conteúdo noticioso e de referência, e mais lento para os meios – como revistas – em que a experiência táctil e visual é mais importante. E tem, ainda, o problema do preço. Por enquanto, esses devices são muito caros, especialmente para o brasileiro. E isso não deve mudar muito nos próximos três anos. Portanto, a adoção em massa não será tão rápida.
“PARA MIM O FUNDAMENTAL NISSO TUDO É CONSEGUIRMOS COBRAR – POR ASSINATURA OU MICROPAGAMENTOS – PELO JORNALISMO DE QUALIDADE. NÃO ACREDITO NA POSSIBILIDADE DE CUSTEAR A PRODUÇÃO DE CONTEÚDO EXCLUSIVO E VALIOSO APENAS COM PUBLICIDADE”- ROBERTO CIVITA
Qual será o futuro do modelo de negócios das empresas de comunicação? A digitalização leva necessariamente à concentração adicional do setor?
Pelo contrário. Acho que a digitalização – como a própria internet – abre caminho para uma variedade ainda maior de conteúdos e players. O que precisamos ver é até que ponto esta fragmentação impactará as audiências existentes.
Alguns analistas acreditam que as empresas de comunicação podem se transformar em polos de distribuição de conteúdo online, como acontece com o iTunes (a loja virtual da Apple), mas focados em informação e notícias. O senhor acredita nessa possibilidade? É possível produzir conteúdo de qualidade a partir de um modelo de negócios baseado em micropagamentos, semelhante ao usado por esses sites?
Acredito que os veículos atuais que tiverem marcas e reputações fortes continuarão existindo online isoladamente. Mas é perfeitamente possível que alguns dos grandes geradores de conteúdo se transformem em agregadores e que também surjam novos, cada vez mais segmentados e especializados. Para mim, o fundamental nisso tudo é conseguir passar a cobrar – via assinatura ou micropagamentos – pelo jornalismo de qualidade. Pois não acredito na possibilidade de custear a produção de conteúdo exclusivo, caro e valioso apenas com receita de publicidade.
As editoras de livros e os conglomerados de mídia são organizadores de conteúdo e representam um selo de qualidade para o consumidor. Entretanto, autores conhecidos e jornalistas de prestígio podem prescindir desse selo e buscar um relacionamento direto com seus leitores por meio dos e-readers. O senhor acredita que pode haver um sério risco de desintermediação, com as empresas de comunicação e as editoras perdendo seus nomes mais conhecidos?
Para mim, os bons veículos de imprensa são bons justamente pelo seu conjunto de matérias – textos, fotos, ilustrações, quadros e infografias – criado por redações onde múltiplos talentos se somam e se complementam de forma harmoniosa. O que tem funcionado ao longo dos últimos séculos é esse conjunto de elementos e a garantia de qualidade e credibilidade que assegura ao longo do tempo. É claro que algumas “estrelas” têm seu próprio público, mas insisto que o que atrai a maioria de pessoas para Veja ou para o New York Times ou The Economist é o inteligente, criativo e saboroso smorgasbord [cardápio] que oferecem aos seus leitores a cada edição.
É hora de os jornais e revistas fazerem pesados investimentos no mundo digital? Um movimento muito rápido nesse sentido não poderia canibalizar o negócio da informação impressa?
A melhor defesa é o ataque. É preciso não apenas investir na digitalização como também na criação de conteúdo multimídia, na adaptação deste para diferentes plataformas, na pesquisa constante entre leitores e internautas e na busca de caminhos que permitam cobrar pelo conteúdo em questão.
“NEM SEMPRE AS INOVAÇÕES SÃO EXCLUDENTES”
LUIZ SCHWARCZ | COMPANHIA DAS LETRAS
Com o Kindle e o ipad, a migração deve se acelerar, mas ainda falta tempo para que as coisas fiquem claras
Os leitores eletrônicos de texto (e-readers), como o Kindle, e aparelhos semelhantes, como os tablets, ajudam ou comprometem o futuro do negócio das editoras?
Acredito que ajudam. Tornam o livro mais barato, e todas as inovações devem ser saudadas como algo que acrescenta e não entendidas com predisposição saudosista ou purista. Nem sempre, na vida e no mercado, as alternativas são excludentes. Ainda bem.
Estamos diante de uma invenção que altera completamente o modelo de negócios de indústrias estabelecidas? Quais serão as mais afetadas?
Deverão alterar, mas não completamente. As gráficas serão mais afetadas e a indústria do papel naturalmente, e as livrarias terão seu modelo de negócio alterado, ou sofrerão concorrência de grandes grupos globais de comércio eletrônico.
“ACHO TRISTE UM MUNDO SEM CINEMA, SEM LIVRARIAS. SE ISSO OCORRER, ME ADAPTAREI COM NOSTALGIA. MAS É CEDO PARA CERTEZAS”- LUIZ SCHWARCZ
A migração do mundo impresso para o digital é um tema que vem sendo discutido há algum tempo. O senhor acredita que ela poderá ser mais rápida a partir de agora?
Não tenho dúvidas de que com o Kindle, e agora com o iPad, o processo todo deve se acelerar, mas ainda falta tempo para que as coisas fiquem claras. Em que áreas a leitura digital terá mais impacto inicial, nos textos escolares, acadêmicos, na leitura de lazer, em todos eles? O componente técnico dos aparelhos de leitura ainda vai mudar muito. Por informações que tive de uma pessoa que manuseou o iPad, a mudança já será bastante sensível em relação ao que vimos até agora.
As editoras representam um selo de qualidade para o consumidor. Entretanto, autores conhecidos podem prescindir desse selo e buscar um relacionamento direto com seus leitores por meio dos e-readers. O senhor acredita que pode haver um sério risco de desintermediação, com as editoras perdendo seus nomes mais conhecidos?
Alguns poucos autores já deram passos nesse sentido, mas com seus títulos de backlist. Os que o fizeram ou não entendem o verdadeiro papel de um editor no resultado final do texto, ou são presunçosos a ponto de achar que prescindem de parceiros nessa etapa do trabalho. O resultado disso será uma piora na qualidade do produto final, com consequências na venda do livro. Além disso, mesmo com autores conhecidos, acredito que sua presença em lojas eletrônicas das editoras, ou participando de novas modalidades de marketing que se criarão, deverá ser interessante. Autores mais consagrados muitas vezes exigem mais trabalho editorial do que se imagina, e o leitor terá necessidade maior de apoio na compra no mundo digital do que no “real”.
Faz sentido os governos continuarem investindo em bibliotecas públicas, ou esses investimentos deveriam estar voltados, daqui para a frente, para o desenvolvimento de mais e melhores redes de acesso de banda larga?
Acho que bibliotecas e livrarias, no Brasil especialmente, têm se apresentado como importantes aglutinadores ou centros culturais, mais do que meros pontos de venda de livros. Se passarmos do analfabetismo para o mundo digital total, o país perderá uma etapa importante na formação educacional histórica, e criará para um público emergente uma relação com os bens culturais de natureza mais efêmera. Acho triste um mundo sem livrarias, sem cinemas, onde a cultura é adquirida em total isolamento. Se isso ocorrer, me adaptarei, mas acredito que com certa nostalgia. Acho que o governo deve investir nas duas áreas. Além de tudo, ainda é cedo para certezas. Vejamos.
“É O COMECINHO DE UMA NOVA ERA”
RUY MESQUITA | O ESTADO DE S. PAULO
O conteúdo já mudou. O jornalismo eletrônico oferece oportunidades fascinantes
Ao longo de sua vida jornalística, o sr. assistiu a uma sequência de transformações editoriais e industriais. Serão os e-readers (Kindle, iPad...) novidades revolucionárias, a ponto de mudar os rumos da imprensa?
Os computadores são novidades revolucionárias que estão mudando e ainda vão mudar mais o modo de se fazer jornalismo. Não sei se a expressão exata é “mudar os rumos” porque isso implica, de algum modo, mudar a função. Acredito que a essência dessa função vai permanecer. A imprensa, que não é o tipo de suporte que ela usa para chegar ao público, mas, sim, o que ela leva ao público, tem uma função institucional nas democracias. O chamado Quarto Poder continuará sendo necessário, porque é o mais distante do universo do poder político onde estão instalados os outros três e o mais próximo da cidadania. Esse papel essencial a imprensa continuará tendo, seja o universo a fiscalizar o da democracia representativa, seja o das grandes corporações (...). A outra função da imprensa, a do serviço, também continua sendo necessária. Num mundo de especialistas em minúcias, onde cada segmento de atividade é um universo quase infinito que demanda tempo integral de seus operadores, continuarão sendo necessários especialistas pagos para capturar, organizar e relacionar informações dentro do grande oceano da rede mundial para grupos de pessoas com interesses comuns. Como hoje, elas não terão tempo de fazê-lo sozinhas. A possibilidade de crescente interatividade e cruzamento de ferramentas criará novos modos e meios de melhorar todas essas funções da imprensa.
A adoção dessas novas modalidades eletrônicas de leitura deverá provocar mudanças também no conteúdo dos jornais? Por quê?
O conteúdo já mudou. O jornalismo eletrônico oferece oportunidades fascinantes: alcance e espaço ilimitados e uma infinidade de novas ferramentas que possibilitarão olhar para cada tema e tratá-lo de maneira inteiramente nova. Estamos vendo o comecinho de uma nova era. As mudanças acontecerão na velocidade do pensamento e com a participação de todos, já que nessa nova realidade o público também cria informação nova e novos modos de tratá-la. Servir bem esse publico é oferecer-lhe essas ferramentas e induzi-lo a usá-las para um fim útil ou inovador.
“O FATO DE TODO MUNDO, HOJE, PODER PUBLICAR, NÃO SIGNIFICA QUE TUDO QUE É PUBLICADO MEREÇA SER LIDO OU CONSUMIDO DE ALGUMA FORMA”
Qual, na sua opinião, será o futuro do modelo de negócios das empresas de comunicação, particularmente da mídia impressa, no mundo digital?
Não haverá mídia impressa e mídia não impressa. Todos os meios já se fundiram. O que existe hoje já é mídia que você pode imprimir ou não. Permanece a função que define o conteúdo segundo a vocação e o foco de cada um. O fato de todo mundo, hoje, poder publicar, não significa que tudo que é publicado mereça ser lido ou consumido de alguma forma. A rede é o mundo e nem tudo que há no mundo é tão interessante assim. Haverá uma depuração natural. A questão da concentração, sim, poderá ser crucial. O próximo alvo não é o Estado, algo de natureza muito diferente da imprensa. São as grandes corporações. Se a imprensa se parecer demais com elas, perderá a autoridade para fiscalizá-las. Mas há um caminho. É possível crescer o suficiente para sobreviver num mundo de gigantes e se manter distante de interesses muito concentrados. Quanto a modelo de negócios, é preciso abrir os olhos. Tem muita gente explorando com sucesso filões típicos do nosso negócio. Hoje podemos entregar o que antes podíamos apenas sugerir...
“PRODUZIR JORNALISMO DE QUALIDADE CUSTA CARO”
OTAVIO FRIAS FILHO | FOLHA DE S.PAULO
A estratégia para o ambiente virtual passa pela cobrança de conteúdo e o crescimento da publicidade
O senhor acredita que com os e-readers estamos diante de uma invenção que altera completamente o modelo de negócios de indústrias estabelecidas? Quais serão as mais afetadas?
Parece cedo para responder com algum grau de certeza. Não há dúvida de que os equipamentos de leitura digital oferecem uma nova modalidade de transmitir informação, que pode ser valiosa para muitos leitores. Mas o formato tradicional do livro, da revista e do jornal impresso em determinadas situações é mais cômodo e prático, para não mencionar a parcela de leitores que é sensível ao carisma dos produtos de papel. Creio que durante muito tempo diferentes suportes de leitura vão conviver simultaneamente.
A migração do mundo impresso para o digital é um tema que vem sendo discutido há algum tempo. O senhor acredita que ela poderá ser muito rápida a partir de agora?
Penso que mais e mais leitores recorrerão aos dois tipos de suporte, o eletrônico e o físico. Mas não acredito numa substituição completa, nem súbita, da segunda modalidade pela primeira.
“MAIS E MAIS LEITORES RECORRERÃO AOS DOIS TIPOS DE SUPORTE, O ELETRÔNICO E O FÍSICO. NÃO ACREDITO APENAS NUMA SUBSTITUIÇÃO”
Qual, na sua opinião, será o futuro do modelo de negócios das empresas de comunicação, particularmente da mídia impressa, no mundo digital? A digitalização leva necessariamente à concentração adicional do setor?
Produzir jornalismo independente e de qualidade é uma operação cara, em qualquer suporte. Creio que a sustentação desse tipo de jornalismo no ambiente virtual vai depender de uma estratégia – ainda a ser mais bem definida – de cobrança de conteúdo exclusivo ou especial. E, sobretudo, do crescimento da publicidade voltada ao consumidor de jornalismo online.
As editoras de livros e os conglomerados de mídia são organizadores de conteúdo e representam um selo de qualidade para o consumidor. Entretanto, autores conhecidos e jornalistas/colunistas de prestígio podem prescindir desse selo e buscar um relacionamento direto, remunerado, com seus leitores por meio dos e-readers. O senhor acredita que pode haver um sério risco de desintermediação, com as empresas de comunicação e as editoras perdendo seus nomes mais conhecidos?
Acredito que a ligação direta entre o produtor individual de conteúdo e seus leitores possa ocorrer – e já tem ocorrido – no que se refere a especialidades e nichos localizados de interesse. Mas uma pessoa não tem condições de reunir toda a massa de informação e opinião capaz de configurar um retrato do que aconteceu de relevante no mundo num dado período de tempo – uma hora, um dia, uma semana. Para compor esse retrato, é necessário uma equipe ampla e dispersa, atuando coletivamente. Além disso, quando confia no selo representado por um dado veículo, o consumidor não está se beneficiando apenas do retrato geral do mundo que ele oferece periodicamente, mas também da aura, do estilo, da “ideologia” e da tradição amalgamadas naquele selo.
Fonte: Época Negócios
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