Quando então aprendi a ler, o mundo se abriu de uma vez. E era pequeno demais para mim. Por Dinha [*]
Quem de nós sabe o valor da leitura? Posso dizer que sei. Ainda pequena, vivi as histórias de lobo e fantasma, de riso e de solidão, através das incansáveis narrativas de meu irmão, apenas dois anos mais velho que eu. Foi no espanto dessas histórias que eu, pela primeira vez, conheci o gosto de aventura em lugares distantes, com pessoas longínquas, em situações inusitadas, vampiro sonhando manhãs de sol.
Eu lia sem ler, ouvindo apenas - e vendo em meu irmão o brilho de entusiasmo e a satisfação em contar histórias, que só os grandes contadores de história têm. Quando, aos sete anos, entrei na escola, e as letrinhas juntaram-se em palavras e em sílabas - para mim, algumas delas nunca foram sílabas, foram sempre cachorros latindo, amigos se cumprimentando, reis ascendendo aos tronos, sapos, macacos e sherazades, explosões de significados, amor descoberto aos poucos.
Quando então aprendi a ler, o mundo se abriu de uma vez. E era pequeno demais para mim: o córrego [riacho] sujo, o barraco apertado e suspenso, para driblar as enchentes, a comida contada. Iniciada a leitura, apenas o amor da mãe prosseguiu (tão imenso quanto as esperanças que ela depositou em mim). Todo o resto perdeu a cor, dissipou-se, precisou ser reescrito.
Empodeirada de leitura, ganhei o mundo, estudei na melhor universidade do país, tornei-me poeta e professora. E se o mundo não me ganhou, foi porque desenvolvi meu senso crítico, fortaleci meu senso de proteção e encontrei alguém que me ajuda a ressignificar o mundo, cotidianamente.
Espalha-Leitura
Eu sei o valor da leitura e sei que no Brasil ele ainda é pequeno.
Embora os governos invistam minimamente em programas como o “Minha Biblioteca”, que distribui títulos, gratuitamente, a alunos da rede municipal, ou o “Uma biblioteca em cada município”, do governo federal, o acesso aos livros em nosso país, especialmente nas periferias das grandes cidades, permanece escasso. No Parque Bristol, zona Sul de São Paulo, por exemplo, a biblioteca pública mais próxima fica a R$2,70 de distância, 30 minutos de ônibus, ou uma hora e meia a pé. E pode custar o dobro, se o leitor desejar voltar para casa após o passeio. Na Cidade Tiradentes, uma imensa área residencial, com alto índice de vulnerabilidade social, na Zona Leste de São Paulo, há apenas uma biblioteca e ela é comunitária - só existe enquanto o Núcleo Força Ativa, um grupo organizado da região, puder mantê-la. Como no Parque Bristol, que também tem sua biblioteca comunitária, o acesso a esse bem cultural depende não da ação obrigatória do governo, mas da boa vontade e da insistência política de cidadãs e cidadãos comuns.
Gente comum, esforços incomuns
Um amplo coletivo começou a ser formado em 2006, durante um encontro sobre bibliotecas comunitárias, no Itaú Cultural. Lá estavam eu, duas professoras universitárias - uma das quais era, na época, doutoranda pela Universidade de São Paulo e cuja tese abordava o tema das bibliotecas comunitárias, enquanto prática social no Brasil -, o Núcleo Cultural Força Ativa e outras organizações sociais envolvidas com o tema. A minha função, na ocasião, era apresentar a Livro-pra-que-te-quero (nossa biblioteca, gerida pelo Poder e Revolução, o “arquipélago urbano”) e as nossas estratégias de “espalha-leitura”.
Tempos depois, uma das professoras nos procurou para conhecer melhor a nossa experiência e certificar-se de que ela se encaixava em seu estudo acerca das bibliotecas comunitárias.
Aparentemente, ela gostou tanto do que viu, ali e em outros tantos espaços pelo país afora, que entendeu ser importante a realização de um encontro nacional de bibliotecas comunitárias, enquanto estratégia de fortalecimento destas iniciativas, de modo a aumentar sua visibilidade e promover trocas capazes de aumentar o acesso aos livros no país e contribuir para a formação de leitores. A seu convite, foi formado, então, um coletivo com vistas ao planejamento e execução deste encontro.
Primeiro Encontro Nacional de Bibliotecas Comunitárias
De 2009 até agora, muitos esforços foram demandados, por parte de todos, para que um encontro entre as bibliotecas comunitárias do país fosse realizado: foram feitas muitas reuniões de planejamento, viagens com gastos do próprio bolso, articulações comunitárias, um projeto foi escrito, um plano de trabalho desenhado, uma rede virtual foi criada e segue funcionando no endereço eletrônico http://www.rbbconexoes.ning.com/. Além disso, foram feitos vários contatos com possíveis parceiros e patrocinadores da idéia. Muitos domingos de sol foram adiados, em nome desta possibilidade.
Entretanto, apesar da organização popular em torno da construção deste encontro, apesar de este ter sido um sonho sonhado junto, a realidade esbarrou no preço, na pouca importância que a leitura, estrategicamente, parece ter neste país, e o evento ainda não aconteceu.
Para que ele ocorra, esta luta precisa prosseguir. Por isso, convidamos a tod@s a que engrossem as fileiras em torno da batalha, ora travada, para que os livros, enquanto direito, como bens culturais que são, estejam acessíveis a todos e a todas e para que este encontro, enquanto estratégia de reforço nesta batalha, possa efetivamente acontecer.
Você, sabe o valor da leitura?
[*] Dinha é membro do Núcleo Poder e Revolução, professora da rede pública municipal da cidade de São Paulo, mestranda em Estudo Comparados de Literatura de Língua Portuguesa (FFLCH/USP) e autora do livro De passagem mas não a passeio (Global Editora, 2008).
Publicado em 12 de Maio de 2010
Fonte: Passa Palavra
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