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Segundo a educadora argentina Delia Lerner, o conhecimento acumulado desde os anos 1970 permite ao professor reformular conceitos e práticas para formar leitores de verdade.
Uma série de pesquisas científicas feita nos últimos 35 anos provocou alterações radicais no conhecimento da aquisição da leitura e da escrita pelas crianças. Em consequência, mudaram as concepções do ensino de língua e de alfabetização e também o modo de abordar esses conteúdos. Entre os especialistas no assunto, a educadora argentina Delia Lerner se destaca pela atuação abrangente e intensa em termos científicos e práticos. Ela assessora órgãos governamentais e instituições particulares na Espanha e em vários países da América Latina. Professora de graduação e de mestrado nas universidades de Buenos Aires e La Plata, Delia trabalha ainda numa escola de nível fundamental — que considera seu “melhor laboratório” — e é consultora de diversos projetos. No Brasil, participa do programa Escola que Vale, do Centro de Educação e Documentação para Ação Comunitária (Cedac), em São Paulo, e aconselha o Ministério da Educação nas áreas de alfabetização, currículos e livros didáticos. Seu campo de atuação estende-se também à didática da Matemática. “Quando dá tempo, eu escrevo”, completa Delia, que tem vários livros publicados no Brasil. A seguir, ela fala sobre o ensino de leitura e escrita, os equívocos mais comuns na área e a formação de professores.
Por que tem sido tão difícil formar leitores na América Latina?
Delia Lerner – A dificuldade não se limita a esta ou àquela região. Na América Latina, sobretudo nos setores mais pobres, a tarefa fica muito a cargo da escola, o que a torna mais complexa. Isso porque há muitas tensões vinculadas ao tempo disponível para ensinar e também ao entendimento sobre o que é formar leitores. Tradicionalmente, as escolas consideram que o objetivo de ensino não é leitura e escrita, mas a língua. Entre esses dois objetivos, existem diferenças. Quando se concebe que o tema é a língua, os conteúdos prioritários são os descritivos, principalmente a gramática e a ortografia. Mas, se o objeto fundamental são as práticas de leitura e escrita, a língua passa a ser incluída num assunto maior, em que não é tão fácil determinar a ordem dos conteúdos, como ocorre com a gramática.
O processo de formação de leitores deve começar com a alfabetização?
DL – As duas coisas não se distinguem. A participação na cultura escrita deveria começar muito antes da conduta à aprendizagem da própria escrita. As crianças cujos pais leem histórias para elas ou que presenciam comentários sobre notícias de jornal estão aprendendo muito sobre a linguagem escrita. Para isso, não faz falta saber ler e escrever no sentido convencional. Ao adotar uma perspectiva global, o conhecimento se aprofunda.
Só que essa convivência inicial com a leitura não existe nos setores mais pobres...
DL – Normalmente, é isso o que ocorre, mas não é a regra. Eu trabalho em bairros de periferia na Venezuela e conheci famílias que leem assiduamente. Lembro-me de uma menina que chegou ao 2º ano muito avançada na construção do sistema de escrita. O que acontecia: sua mãe é cabeleireira, levava para casa revistas para aprender novos penteados e as compartilhava com a garota. Portanto, o contato pode ser maior ou menor com certos materiais, mas existe. Só que a escola é uma instituição cujas expectativas estão modeladas à imagem e semelhança da classe média para cima. Estou de acordo com isso, porque creio que uma de suas funções é democratizar a cultura dominante. Se, assim que entram na creche, as crianças ouvem a leitura de diferentes materiais, conseguem ingressar na escrita dominante desde pequenas.
Até que ponto o aprendizado é melhor se a escolarização começa mais cedo?
DL – Antes se pensava que, para conhecer as histórias infantis, era preciso saber ler. A escola deve começar a ler para os alunos o mais cedo possível. Para os de família de baixa renda, está a cargo do professor provocar situações desse tipo, de que os outros dispõem desde que nascem. Isso não significa antecipar a exigência de que saibam ler e escrever. O sistema escolar tem um limite tênue entre dar oportunidades de aprender certos conteúdos e cobrar seu conhecimento.
De que forma os conhecimentos científicos das últimas décadas mudaram o conceito de leitura?
DL – Em minha história, tudo começou com os estudos de Emília Ferreiro sobre a psicogênese da língua escrita, que mostraram o processo de aquisição de conhecimento como um conjunto de problemas cognitivos, e não somente uma técnica. Em relação às práticas sociais, foram fundamentais os estudos em História, Sociologia e Antropologia e autores como Roger Chartier e Jean Hébrard. Investigações psicolinguísticas, desde os anos 1970, mostram que não se lê letra por letra, que a leitura implica uma construção de significados e que eles não estão no texto, mas são construídos pelo leitor. Tudo isso começou a abrir a possibilidade de conceituar de outra maneira o objetivo de ensino e a participação dos sujeitos na apropriação dessas práticas.
Que tipo de atividade favorece a apropriação de significado?
DL – Temos construído situações didáticas, como os projetos de produção e interpretação dirigidos a um fim. Por exemplo: uma antologia de contos fantásticos da literatura inglesa do século 19. Os alunos leem para escolher, algo que normalmente não se faz na escola. Ou então o professor propõe a composição de um texto sobre um conteúdo, o que implica um trabalho de aprendizado e de seleção, tendo em vista que o produto final será afixado no mural ou publicado num site da Internet. Isso restitui os propósitos comunicativos da leitura e da escrita, sem abrir mão da finalidade didática.
O que são práticas sociais de leitura?
DL – Em nossa sociedade, ainda que não fisicamente, existem comunidades de leitores. Cada um de nós pertence a várias delas, de um jornal diário, de um determinado autor, etc. Nessas comunidades, há questões que são práticas sociais, e não só de cada um. É o que chamamos de comportamento de leitores: comentar livros, discutir o sentido de um trecho, interpretá-lo, indicar textos que são importantes para nós, consumir resenhas e informações sobre literatura.
Em que sentido a escola cumpre esse papel?
DL – Em muitos casos, o enfoque se distancia das práticas sociais de leitura. Fora da escola, lê-se para aprender a fazer certas coisas ou saber algo sobre um assunto de interesse ou para interar-se sobre os acontecimentos. No caso da literatura, pode-se dizer que se lê para entrar num outro mundo possível. Na escola, costuma-se ler para aprender, e só. Pode ser que as crianças, sobretudo as que provêm de meios sociais onde não se produzem leitores, aprendam como se faz, mas não para quê. Nesse caso, terão dificuldade em ver sentido na leitura.
É possível formar uma comunidade de leitores dentro da própria escola?
DL – É desejável que a escola se abra ao exterior. Eu participei de uma experiência em que se instalou um quiosque no pátio, com material para os pais, numa região em que havia muitas pessoas supostamente analfabetas. Houve um movimento muito forte de procura por material instrutivo sobre diferentes profissões: mecânicos, costureiras, etc. em Buenos Aires, e um diretor atraiu a comunidade com um programa semanal de leitura para visitantes.
A organização teórica das situações didáticas não conflita com a imprevisibilidade dos acontecimentos na sala de aula?
DL – Faço uma pergunta parecida. O conhecimento dos médicos sobre doenças flexibiliza-os para fazer diagnósticos e definir que medicamentos indicar a um paciente? É a mesma coisa. O conhecimento didático nunca vai abranger tudo o que pode acontecer durante o ensino e a aprendizagem. Trata-se de entender as variáveis que estão implicadas numa situação didática, não de prescrever regras. Os resultados de pesquisa são complexos, e não receituários do tipo “Vá e faça”. Os professores precisam produzir respostas próprias, mas não inventar o que já se sabe.
Que competências um professor de língua precisa ter hoje em dia?
DL – O professor não precisa saber a história da leitura ou Sociologia e Antropologia. Mas é indispensável que os processos de formação permitam a ele elaborar situações efetivas de aprendizagem. Insisto nisso porque, em geral, encara-se o docente como profissional da prática. É preciso saber que o trabalho de ensinar é muito difícil. É crucial reconhecer que há um conjunto de saberes específicos a serem dominados e que eles são fundamentalmente didáticos.
Qual é o problema do tempo didático?
DL – Práticas requerem períodos longos para serem exercidas porque não dependem apenas do conhecimento de regras. Aprende-se a ler por meio de muitas leituras, do conhecimento de diversos autores, de vários setores da cultura escrita, etc. Tudo isso depende de jornadas longas. É um processo em espiral, no qual se volta a certos conteúdos sob uma nova perspectiva. Há aspectos que ocorrem simultaneamente e necessitam de diferentes situações para que sejam apropriados.
A organização de horários nas escolas costuma ser um obstáculo para esse aprendizado?
DL – Sim, mas isso pode ser modificado. Na Argentina, trabalha-se por blocos de 80 minutos, três vezes por semana. O mais difícil de controlar é o longo prazo. Para dar sentido à leitura, são necessários projetos que não cabem em um dia. Por exemplo: adota-se, por dois meses, a atividade de conhecer um autor para se descobrir o que caracteriza seu estilo, os fios condutores de sua obra, etc. Infelizmente, as escolas costumam ensinar fragmentos de saber distribuídos em pequenas parcelas de tempo.
A ênfase na formação de leitores e produtores de escrita prejudica o ensino da gramática?
DL – Sim e não. Reserva-se menos tempo à gramática, mas esse conteúdo ganha mais sentido porque, na prática, ele passa a ser reflexão sobre a própria língua. Essa possibilidade permite ao autor distanciar-se de seu texto, pondo-se no lugar do leitor. As noções gramaticais construídas por meio de leitura e escrita são assumidas pelos estudantes como próprias. Do contrário, os conhecimentos se perdem. Todo ano, os professores têm de voltar a ensinar sujeito e predicado porque, usualmente, ensina-se a gramática como se a língua materna fosse algo alheio ao sujeito, e não uma tomada de consciência do que já se sabe, embora sem conceituar.
E quanto à ortografia?
DL – Quando se escreve para comunicar, e não somente para ser avaliado, o interesse pela ortografia cresce muito. É preciso saber que a escrita tem regras e é conveniente conhecê-las. Todos buscam regularidades. Por isso, é importante apresentar a ortografia como um produto social resultante de uma história, o que leva algumas palavras a serem escritas de um jeito, e não de outro.
Que problemas a senhora vê nas atividades habituais de interpretação de texto?
DL – O texto é um conjunto de marcas sobre um papel; alguém o deixou ali pensando num sentido, e quem lê atribuirá outro, que coincide parcialmente com o primeiro. Quem interpreta o faz em relação ao que sabe. Além disso, entende-se o texto de modos diferentes, segundo o propósito. No caso de um manual de instruções, aproximo-me ao máximo do que quis dizer quem o escreveu. Mas, se estou diante de um artigo de jornal no qual procuro algo específico que me interessa, posso ler saltando trechos. As diferentes interpretações não dependem exclusivamente do texto em si. Por isso, não faz sentido fazer perguntas simplesmente sobre o que está escrito ali se elas podem ser respondidas sem uma compreensão verdadeira do texto.
Como a escrita pode ser um instrumento de reflexão sobre o próprio pensamento?
DL – Quando está produzindo, por exemplo, o resumo de um texto, o aluno é obrigado a compreendê-lo mais do que quando apenas o lê. Precisa explicar aquilo a que se refere e usa a escrita para organizar o que entendeu. Do lado literário, quando alguém produz uma resenha, precisa voltar à obra, com perguntas feitas do ponto de vista do escritor. Há muitas maneiras de aproximar-se de diferentes gêneros e propósitos ao utilizar a escrita como meio de reconstruir o conhecimento.
Fonte: Revista Nova Escola. Ano XXI, n. 195, set. 2006. p. 13–16.
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