Nenhuma leitura deve ser obrigatória, salvo uma, a de Como um romance,
de Daniel Pennac, que sai agora em edição de bolso pela L&PM, em
associação com a Rocco, que o publicou pela primeira vez quinze anos
atrás. Todas as comissões de vestibular deviam ser obrigadas a
ler esse pequeno grande livro de apenas 150 páginas. Depois de sua
leitura, talvez deixassem de se preocupar com as tão temidas listas de
livros que os vestibulandos devem ler para responder àquelas
perguntinhas muitas vezes sem sentido. Prestariam, assim, um grande
serviço à formação de leitores no Brasil.
Pennac abre seu livro com uma afirmação que não nos abandonará mais:
O verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros: o verbo “amar”… o verbo “sonhar”…
Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: “Me ame!” “Sonhe!” “Leia!” “Leia logo, que diabo, eu estou mandando você ler!”
— Vá para o seu quarto e leia!
Resultado?
Nulo.
Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: “Me ame!” “Sonhe!” “Leia!” “Leia logo, que diabo, eu estou mandando você ler!”
— Vá para o seu quarto e leia!
Resultado?
Nulo.
Assim começam os problemas de um ex-futuro leitor. Leitura
obrigatória não cria leitores. Pelo contrário, afasta-os dos livros.
Quantos alunos continuarão lendo com voracidade poesia e ficção depois
do vestibular?
Para evitar a incidência no erro, nada melhor do que ler esse livro de título tão intrigante: Como um romance.
De que romance fala Pennac? Logo, logo, o entenderemos. Sua linguagem
aliciadora nada tem da monotonia dos livros de intenção pedagógica. Ele
nos pega desde o primeiro instante, pois logo entendemos que ele fala da
relação entre a criança que se inicia na leitura e a de seus
iniciadores, os pais. Desde as primeiras historinhas, cria-se entre eles
uma relação amorosa, que cresce a cada noite, antes do sono. O primeiro
contato do menino com o livro se dá através dessas leituras que o
deixam em permanente estado de excitação:
Sejamos justos. Nós não havíamos pensado, logo no começo, em
impor a ele a leitura como dever. Havíamos pensado, a princípio, apenas
no seu prazer. Os primeiros anos dele nos haviam deixado em estado de
graça. O deslumbramento absoluto diante dessa vida nova nos deu uma
espécie de inspiração. Para ele, nos transformamos em contador de
histórias. (…) Na fronteira entre o dia e a noite, nos transformávamos
em romancista, só dele.
Os pais, a criança e o livro, a trindade perfeita. Não há criança que
não espere com ansiedade a hora em que os pais sentam ou deitam com ela
na cama e começam a desfiar histórias, algumas lidas, outras
inventadas. É um tempo de prazer, sem compromisso outro que o de viajar
nas palavras. E ela quer mais, sempre mais, até que o pai ou a mãe,
exaustos, a convencem a dormir. Até esse momento somos pedadogos, mas
sem nenhuma preocupação com a pedagogia.
Eis que chega o dia em que a trindade se desfaz. O menino vai para a
escola. Ele se entusiasma com aprender as letras, é quase um milagre
juntá-las e dali sair um nome de seu mundo concreto. A primeira palavra
escrita: Mamãe! “Esse grito de alegria celebra o resultado da mais
gigantesca viagem intelectual que se possa conceber, uma espécie de
primeiro passo na lua, a passagem da mais total arbitrariedade gráfica à
significação mais carregada de emoção!”. Mas, eis que de repente…
Luta solitária
Sim, não mais que de repente, parece que tudo se esfuma: a alegria de aprender, a alegria de ler. O que todo pai ou professor observa é que a relação do menino com os livros vai se enfraquecendo. Onde foi parar aquele que gostava tanto de ouvir histórias? A leitura, que fora até então fonte de prazer, sofre uma mutação rápida, começa a se transformar num peso a carregar. Uma vez desfeita a trindade, ele terá agora de lutar solitário com um livro que parece rejeitá-lo.
Jogado o menino na escola, os pais se sentem liberados da obrigação
de ler para ele como sempre faziam. Que alívio! Mal sabem que perderam
seu ouvinte mais atento. Nessa hora é que deviam estar por perto, mas
não estão, pois o menino cresceu, não precisa mais de sua ajuda.
Finalmente, ele é capaz de se virar sozinho. Até que notam que alguma
coisa não vai bem, algo está acontecendo com aquele que foi um dia
leitor tão exigente. Vêm os diagnósticos: um desatento, um preguiçoso
que não consegue ler um livro em quinze dias. Nunca levam em conta que o
que o torna preguiçoso, desatento, é a obrigação de ler, e ler para
responder a fichas de leitura, que são a morte do livro. De seu lado, os
professores cobram, e caro, uma leitura que não é do interesse daquele
leitor e que só faz perdê-lo. Pennac mostra o caminho:
Ele é, desde o começo, o bom leitor que continuará a ser se os
adultos que o circundam alimentarem seu entusiasmo em lugar de pôr à
prova sua competência, estimularem seu desejo de aprender, antes de lhe
impor o dever de recitar, acompanharem seus esforços, sem se contentar
de esperar na virada, consentirem em perder noites, em lugar de procurar
ganhar tempo, fizerem vibrar o presente, sem brandir a ameaça do
futuro, se recusarem a transformar em obrigação aquilo que era prazer,
entretendo esse prazer até que ele se faça um dever, fundindo esse dever
na gratuidade de toda aprendizagem cultural, e fazendo com que
encontrem eles mesmos o prazer nessa gratuidade.
O que antes era prazer vira obrigação. O menino não vê mais o livro,
vê o número de páginas que tem de enfrentar, sempre num prazo curto
demais para ele e, o pior de tudo, para fazer uma prova. Um temor o
assalta: “Como se sair bem se não o entender?” Ele está só, sente-se
mais só que nunca, não há ninguém para salvá-lo. O livro passa a ser
visto com inquietação, um antagonista do qual ele tem de se livrar o
mais rápido possível.
Um livro não pode ser escolhido por outrem, a escolha devia ser
sempre nossa. Mas há o cânone. Parece que, sem ele, as portas do futuro
não se abrirão. O menino terá de ler o que professor acha que ele deve
ler. O mais comum, então, é vê-lo adormecer com o livro aberto sobre o
peito e, perto da prova, pedir a alguém um resumo ou, mais fácil ainda,
percorrer a internet. Algo está errado. Não, não pode ser assim. Ler por
obrigação nunca dará certo. Ou se chega ao livro espontaneamente ou ele
será logo abandonado.
A leitura para ser boa tem de ser gratuita. Deve servir de “trégua ao
combate entre os homens”, mas a escola a transforma numa guerra em que o
perdedor é sempre o leitor forçado e, por conseguinte, a própria
literatura. Ler devia ser sempre um presente, “um momento fora dos
momentos”, um hiato de distensão dentro de um cotidiano tedioso. Quem
sabe o valor da leitura não força ninguém a ler. O melhor caminho é o
incentivo, ter lido e motivar o outro a procurar o livro que tanto nos
entusiasmou e encheu nossas horas por dias e meses.
Daniel Pennac parte do pressuposto de que é o prazer de ler
que preside todo ato de leitura e que, se ele existe, “não teme imagem,
mesmo televisual e mesmo sob a forma de avalanches cotidianas”. Não
adianta culpar a vida moderna, a televisão, a internet. Nada disso é
empecilho para quem se habituou naturalmente à leitura. O que devemos
sempre nos perguntar é : “O que fizemos daquele leitor ideal que ele (o
menino) era?”. Não foi gratuitamente que o livro mágico da infância
cedeu lugar ao livro hostil.
Qual a saída?
Pais, não se desesperem! Daniel Pennac traz um pouco de alento àqueles que já perderam a esperança de ver de novo o filho com um livro nas mãos, não os didáticos, mas o de um Thomas Mann, de um Dostoiévski, de um Flaubert. Se seu filho gostava de ler e não lê mais, o prazer de ler não desapareceu assim, de uma hora para outra, não se perdeu, apenas desgarrou-se e um dia será reencontrado.
Uma criança não fica muito interessada em aperfeiçoar o
instrumento com o qual é atormentada; mas façais com que esse
instrumento sirva a seus prazeres e ela irá logo se aplicar, apesar de
vós.
A leitura deve ser algo que se oferece como ato liberador da vida
insípida. Uma viagem em que não se exige nada. “A gratuidade, a única
moeda da arte.”
Estimular o desejo de aprender, o entusiasmo pelo saber, seria esse o
papel da escola. Ler sem cobranças, nos contentarmos em ler apenas.
Abandonemos o dogma do “é preciso ler”. Ler sem alegria é não ler. As
palavras pesam, o livro em breve estará fechado e, só fato de vê-lo
sobre a mesa, assusta. Quando se sugere um livro é para partilhá-lo, é
uma prova de amor, você quer que o outro leia aquilo que foi importante
para você em certo momento da vida. A gente dá a ler aquilo que nos é
mais caro. Antes de tudo, reconciliar o jovem com a leitura. Jamais
fazê-lo sentir-se um pária dela.
A escola parece proscrever o prazer de seu espaço. Como se todo
conhecimento fosse feito de sofrimento. Há uma dissociação entre vida e
escola. “A vida está em outro lugar”, relembrando Rimbaud. Para
contrariar isso, Daniel Pennac conta a história de um professor que
nunca mandou um aluno ler um livro. O que ele fazia? Todo dia chegava e
lia um trecho de alguma obra importante. A turma inteira ficava em
suspenso, envolvida por sua leitura. Foi assim que ele despertou aqueles
adolescentes para os livros. Nunca a mais leve sugestão de que fossem
correndo à biblioteca, mas eles iam, voluntariamente, em busca do autor
que mais os tinha tocado.
Uma aluna desse professor assim o descreve:
Ele chegava desgrenhado pelo vento e pelo frio, em sua moto azul e
enferrujada. Encurvado, numa japona azul-marinho, cachimbo na boca ou
na mão. Esvaziava uma sacola de livros sobre a mesa. E era a vida. (…)
Ele caminhava, lendo, uma das mãos no bolso e, a outra, a que segurava o
livro, estendida como se, lendo-o, ele o oferecesse a nós. Todas as
suas leituras eram como dádivas. Não nos pedia nada em troca.
Ao final do ano, os alunos somavam: Shakespeare, Kafka, Beckett,
Cervantes, Cioran, Valéry, Tchecov, Bataille, Strindberg. A lista era
imensa. E ela continua no seu depoimento emocionado:
Quando ele se calava, esvaziávamos as livrarias de Renner e de
Quimper. E quanto mais líamos, mais, em verdade, nos sentíamos
ignorantes, sós sobre as praias de nossa ignorância, e face ao mar. Com ele, no entanto, não tínhamos medo de nos molhar. Mergulhávamos nos livros, sem perder tempo em braçadas friorentas.
O gosto pela leitura — é o que se depreende de Como um romance
— depende do professor. Antes de tudo, ele tem de ser um apaixonado por
livros. Falar que os jovens não gostam de ler é simplificar demais.
Então se parte para o oposto: obrigam-nos a ler o que não querem. O
resultado não podia ser outro: distância dos livros.
Então alguém se pergunta: o que fazer para colocar o livro na mão dos
jovens? Se for para continuar fazendo o que estamos habituados a fazer,
a melhor resposta é: NADA. Pelo grau de rejeição que eles desenvolvem
em relação à leitura, vemos que as estratégias postas em prática até
agora não deram resultado. Insistir nisso é burrice. O que se pode fazer
é preparar melhor os professores para que transmitam sua paixão pelos
livros de forma natural. Professor que não tem nos livros sua forma de
viver não deveria ensinar. Professor que não tem paixão pela escrita não
deveria ensinar a escrever. É preciso que sua fala transmita uma
verdade que vem de dentro, nunca de fora. Sobre aquele professor do qual
falei mais acima, Pennac diz:
(Ele) não inculcava o saber, ele oferecia o que sabia. Era menos
um professor do que um mestre trovador (…) Ele abria os olhos. Acendia
lanternas. Engajava sua gente numa estrada de livros, peregrinações sem
fim nem certeza, caminhada do homem na direção do homem.
O papel do professor é o de alcoviteira. É ele que vai fazer o elo
entre o aluno e o livro, casá-los para sempre. Facilitar o ato de ler,
contabilizar páginas, convencê-lo de que lendo cinco páginas por dia, ao
final da semana são 30 (dispensemos o domingo); no final do mês, são
120. Que lucro para quem não conseguia ler nada! O professor se
transforma, assim, num estrategista da leitura.
Daniel Pennac termina seu livro listando os “direitos
imprescritíveis” do leitor. Um deles é o de não ler. Não obstante, os
professores de literatura e as comissões dos vestibulares ficam
proibidos de exercê-lo em relação a Como um romance. Só assim será possível evitar a morte de mais leitores.
ANTONIO CARLOS VIANA
É escritor. Autor de, entre outros, Cine privé. Vive em Aracaju (SE)
Fonte: Rascunho - Gazeta do Povo
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