A cada passo, o espanto. Por fora parecia uma Escola normal, o muro alto vedando a visão. Transposto o portão, o inesperado, a absoluta limpeza. Logo, outro assombro, não há uma só grade. Antes de começar a visita, fui ao banheiro. Imaculado. Desentendi. Não é uma Escola pública em um dos bairros mais afastados da capital do Piauí? Um dos mais violentos, abandonados? Não é uma Escola para alunos carentes, aqueles a quem a vida pouco dá, ao contrário, vai tirando, sugando? Nenhuma grade para proteger do mundo exterior, nenhum grafite nas paredes e nem uma janela quebrada. A admiração cresceria a cada passo, relevando-me a diversidade brasileira, nossas incoerências e contradições.
Levado pelas diretoras Osana Morais e Ruthneia Costa, percorri classes, recebido por alunos sorridentes, de alto-astral, que me cantaram canções alegres. Já fui a muita Escola de periferia em São Paulo e pelo Brasil. alunos tristes, baixa autoestima, professores desiludidos, agredidos, humilhados. Instalações precárias, banheiros porcos, falta de carteiras, de material, paredes repletas de inscrições ininteligíveis, grades para evitar roubos e depredações, cozinhas precárias, merendas destinadas a fomentar subnutrição. Síntese do ensino brasileiro. Não nesta Escola chamada Casa Meio Norte! Tudo é diferente, e como!
Por que decidi vir, abandonando outros compromissos? Recém-chegado de Belém, ainda no aeroporto me disseram: “Nessa Escola, cada aluno lê entre 20 a 30 livros por mês.” Loucura, impossível! Vamos lá, quero ver! Não acreditei, até chegar. Na Casa Meio Norte, na Cidade Leste, as crianças têm paixão por livros e pela escrita. Cada sala de aula tem uma sacola com 50 ou mais livros, não há uma biblioteca central. O livro faz parte do cotidiano. As crianças descobriram que, por meio da literatura, podem escapar da áspera realidade em que estão envolvidos e à qual fatalmente seriam conduzidos. Um presente sem futuro. Tornado futuro pela Escola, pela leitura e pela escrita.
Cidade Leste vive sob o domínio da violência, há todo tipo de foras da lei, do traficante ao ladrão, ao ladrãozinho, ao futuro ladrão. Esses meninos da Casa estariam destinados a se tornarem “mulas”, transportando drogas, ou estariam nas ruas pedindo esmolas, roubando. Estariam soltos, abandonados, enviados à morte prematura. Há pais aqui que são do tráfico, da delinquência. Há quem não conheça o pai, há quem não saiba quem é sua mãe. Todavia, quando entramos e vemos aqueles rostos orgulhosos, sabemos, tudo indica, estão salvos. Nessa Casa comem quatro refeições por dia, quando o normal, fora dessas paredes, seria não comerem nada. Para ajudar a manter a Casa, o jornal Meio Norte, do Grupo de Comunicação Meio Norte, um dos principais de Teresina, entra com apoio, patrocina material e uma série de realizações. Acreditam que responsabilidade social pode gerar mudanças.
Assim que entrei, uma menina de 10 anos, Mariana Garcês apanhou o caderno e leu um poema. Depois me deu a folha. Autografada, claro!
Se você do vício
conseguir sair
feche a porta
para eu não cair.
Se você na Escola
conseguir entrar
deixe a porta aberta
para eu passar.
Contei minha história, a do Menino Que Vendia Palavras, meu livro infantil. Revelei que também fui pobre, lia muito, escrevia. A guarda estava aberta, havia um ponto em comum, as privações da infância. A cada passo, um aluno queria me mostrar um texto. Numa das classes, Anderson, dos mais tímidos da Escola, encontrou coragem, me disse também um poema. Não conseguiu terminar, chorou de emoção. Todos queriam falar dos livros que leram, e foram tantos. A turma – são 680 alunos – lê mais do que muito universitário da USP ou da PUC, do que muito menino de classe média e média alta do ensino privado. Eles gostam de ouvir e de contar histórias. Muitos não sabem se verão o pai no dia seguinte, habituados ao cotidiano de violência que permeia lá fora. Muitos desses pais são aqueles que garantem a “segurança” da Casa Meio Norte. Certo dia, uma gangue de outro bairro roubou equipamentos. Quatro horas depois os equipamentos “estavam de volta”, resgatados. Há um conceito diluído no ar: Não mexam com a Escola!
Muitas vezes, na reunião de pais e mestres, professores deparam-se com homens vestidos corretamente, camisas de mangas compridas para esconder tatuagens ou cicatrizes, participando, dando opinião, perguntando. Eles não querem que os filhos sejam como eles. E os filhos não querem ser. Essa Escola de ensino aplicado, que existe há dez anos, está realizando aquilo que todos desejam, e responde à pergunta que ouvimos pelo Brasil inteiro: como fazer a criança ler? Como tirá-las das ruas, dar identidade, ensinar cidadania? Aquela meninada sabe mais de cidadania do que muito ministro e milhares de parlamentares federais, estaduais, municipais, envolvidos em maracutaias sem fim.
Seminários, convenções, simpósios, debates de “alto nível”, comissões de governo. Não tem adiantado ao longo de décadas. Basta vir a Teresina e conversar com os 28 professores da Casa, um grupo de abnegados apaixonados por livros, histórias, fantasia. Ainda que com o pé inteiro na realidade. Os olhos daquela gente são iluminados. Aqui entra o paradoxo, a estanha maneira pela qual tudo funciona no Brasil e que nenhum ministro, secretário, educador, técnico, profissional consegue alcançar entender. Soluções ao contrário, o mundo funcionando ao reverso. A rebours, diria Huysmans. Há o Brasil aparente e o Brasil oculto com pessoas admiráveis sobre as quais não cai um foco de luz e elas não precisam, são alimentadas por sonhos e ideais. Brasil que caminha.
Matéria Publicada em 24/04/2009
Fonte: O Estado de São Paulo
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