quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Poesia para Crianças - Combina com leitura

A boa poesia rima – e muito bem – com os pequenos leitores, sempre dispostos a se deixar levar pela ludicidade e musicalidade dos versos

O Convite – e esse é o nome do poema cujo trecho foi reproduzido acima – é do poeta, tradutor, crítico e ensaísta brasileiro José Paulo Paes (1926-1998), um dos nomes que está na ponta da língua quando o assunto é poesia para crianças. Estudiosos, poetas, músicos, todos concordam com Paes: a poesia é brinquedo, sim. “Quem perdeu isso foi o adulto”, diz o músico Tim Rescala, diretor musical e artístico do espetáculo Une Dune P... de Poesia, atração do SescTV em setembro (veja boxe Grande brincadeira). “Acho que falta poesia nos próprios adultos. Acho que nós deixamos um pouco a coisa de lado.”

Isso seria, de fato, uma grande perda. Segundo o professor Hélder Pinheiro, do Departamento de Letras da Universidade Federal da Paraíba, quem lê mais poesia pode desenvolver uma sensibilidade mais aguçada para alguns aspectos da língua e da vida como um todo. Pinheiro, autor de Poesia na Sala de Aula (Bagagem, 2007) e organizador da coletânea Pássaros e Bichos na Voz de Poetas Populares (Bagagem, 2004) – recomendada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) –, afirma ainda que, embora “a sensibilidade poética deva ser um projeto para a vida inteira, o ditado ’quanto antes melhor’ – assim como é com a literatura em geral – se aplica também aqui.

“Se o indivíduo começar bem na infância, teremos mais chances de ter um adulto mais sensível”, diz o especialista. “Nesse sentido, acho que a escola e a família têm um papel fundamental: cultivar a leitura ou audição de poesia, se possível, todos os dias.”

Do que ela fala?

No entanto, conforme observa o próprio professor, a escola e os pais ainda não descobriram – salvo honrosas exceções – que poesia rima ricamente com criança. “A escola e a família trabalham pouco com poemas e, quando trabalham, ainda permanece o ranço de usar como pretexto para ensinar alguma coisa”, diz. “Acho que essa pode ser uma explicação para que a poesia ainda não seja muito apreciada pelas crianças.”

No âmbito da presença da poesia nas escolas, o pedagogo e mediador de leitura para crianças e adolescentes José Roberto da Silva, da ONG A Cor da Letra, acrescenta que até há a intenção por parte dos professores de trabalhar o gênero com as crianças em sala de aula, mas na sua opinião muitas vezes faltam títulos. “A quantidade de livros de poesia nas escolas, sobretudo as públicas, localizadas em comunidades de baixa renda, é muito pequena”, declara.

“O que se agrava com o problema de formação dos professores. Muitos acham a poesia importante, mas não tanto quanto a prosa.” O mediador também cita a tradição ?avaliativa das escolas. “Geralmente só se lê em sala de aula para produzir alguma coisa”, avalia. “E com a poesia isso é mais difícil. Então sempre fica no: ‘De quem é a poesia?’, ‘do que ela fala?’. Nunca há um envolvimento com o gênero como bem cultural.”

O músico Tim Rescala conta que presencia isso na educação das filhas, uma de dois e a outra de 14 anos, mesmo se tratando de uma escola particular. “A mais velha tem muito talento para a arte, mas isso não é muito valorizado na escola dela”, conta o artista. “E olha que, apesar de ser católica, é uma escola progressista. Mas não há esse estímulo. São poucas as que valorizam o conteúdo artístico da mesma forma que os demais. Acho que é um preconceito que ainda persiste.”

Livro aberto

Para o escritor Ricardo Cunha Lima – Prêmio Jabuti de Melhor Livro Infantojuvenil com De Cabeça Para Baixo (Companhia das Letrinhas, 2001) – essa questão é fácil de ser resolvida: basta ler uma poesia para as crianças e elas vão pedir mais. “Eu acho até melhor ler poemas para crianças do que ler prosa, histórias mais longas”, afirma. “Eu mesmo já li para crianças e é bom porque você lê um e ele acaba rapidinho. Às vezes você começa a ler uma história muito comprida e as crianças começam a se inquietar.” E o autor dá a dica para os pais: “Leiam poesias para as crianças à noite”.

Na análise de Lima, a ludicidade e a musicalidade da poesia são grandes trunfos na hora de conquistar o público infantil. “Tem a ver com os sons das palavras, com o jogo que dá para fazer com elas”, diz. “Acho inclusive que é por isso que a rima, que tem ficado fora da poesia contemporânea, persiste na poesia infantil. A criança gosta quando rima.” O músico Tim Rescala concorda com o apelo da música. Para ele, essa é uma ótima forma de apresentar a poesia aos pequenos.

“Uma forma de você trabalhar a poesia é por meio da canção, por mais simples que ela seja”, avalia. Essa simplicidade, no entanto, não pode ser confundida com baixa qualidade. Para Rescala, vale o mesmo quando se fala de criança e música. “A criança é um livro aberto para novas experiências”, diz. “E ela tem uma disponibilidade muito maior do que os adultos para aprender coisas novas, para o lúdico, para brincar. E com a poesia acho que se pode utilizar o mesmo caminho, o mesmo canal, principalmente se considerarmos a poesia como um jogo de palavras.”

Música para os ouvidos...

Para o professor Hélder Pinheiro, a questão da musicalidade é “central”. “E ela se dá dos mais diversos modos: assonâncias, aliterações, rimas e repetições de palavras são alguns dos procedimentos.” Segundo o autor, uma poesia mais conceitual, “com imagens mais abstratas”, tende a não atrair a criança. “No entanto, muitas vezes ela adora o som, embora não entenda nada do sentido. Portanto, tema e forma (ou estrutura) devem sempre vir bem casados, para que a significação seja sempre mais rica.”

Outro ponto ressaltado pelo especialista é o mesmo constatado na prática pelo escritor e poeta Ricardo Cunha Lima nas suas incursões como leitor de poemas para grupos de pequenos: o tamanho. “Poesia para crianças não deve ser muito longa. E há que se ter cuidado também com o vocabulário: palavras muito rebuscadas muitas vezes tornam qualquer poema pernóstico.” Isso explica o fascínio infantil até hoje exercido pelos poemas de Cecília Meireles.

“Uma criança que ouça: ‘A bela bola rola/a bela bola de Raul’, de Cecília, muitas vezes devaneia a partir deste primeiro verso do poema”, exemplifica Pinheiro. “Imagina a bola rolando, o colorido das bolas, a brincadeira. Certamente, o encanto da poesia para criança está, sobretudo, no som.”

Colocar-se no lugar da criança, tentar entender seu ponto de vista sobre o mundo – sem, claro, cair na infantilidade ridícula – também conta pontos na hora de “fisgar” ouvidos pouco experientes. “Acho que é isso o que atrai as crianças na minha poesia”, diz Cunha Lima. “Essa ludicidade, naturalidade, a criança não tem problemas com cavalos azuis, por exemplo.”

Poesia sempre

Assim como acontece com a literatura em geral, a poesia depende muito do hábito para conquistar seu lugar no cotidiano. “Por que gostamos de música?”, pergunta o professor Hélder Pinheiro. “Porque a ouvimos cotidianamente.” O músico Tim Rescala complementa: “Antes até de haver o hábito da leitura, tem que ter a brincadeira”, diz.

“E isso depende muito dos brinquedos, do tipo de brincadeira que você propõe. Então, pode ser uma brincadeira com palavras, um jogo com elas, de inventar palavras novas.”. O pedagogo José Roberto da Silva, de A Cor da Letra, afirma que a poesia exercita mais a abstração do que um texto em prosa. “E isso, de certa forma, ajuda a desenvolver a sensibilidade”, finaliza.

O palhaço atirou-se num poço de marmelada.
De graça
pois a pantera
espera que ele trouxesse suspiros
naquela noite.

Roberto Bicelli


Robalo

peixe marcado
por sua saúde
e beleza.
Não há anzol
que não te queira
no fundo ou
na beira.
Não há sol
que não se prisme
nas tuas escamas
e nadadeiras.
Não há frigideira
que não se excite
com teu caldo
de primeira.
Não há justiça
que se faça
quando te pescam
de graça.

Roberto Bicelli

As Abelhas

A AAAAAAAbelha mestra
E aaaaaaas abelhinhas
Estão tooooooodas prontinhas
Pra iiiiiiir para a festa.
(...)
Vinícius de Moraes

Problemas da jiboia

a palavra jiboia tinha uma bóia
e assim podia boiar no rio da linguagem;
agora os mestres decidiram, porém,
que o seu acento não lhe assenta bem,
e a jibóia se transformou em jiboia
(...)

Geraldo Carneiro

Publicado em Setembro/2010
Fonte: Revista E

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