Trabalho apresentado no XII Seminário Nacional de Bibliotecas Universitárias em 2000
Lígia Maria Silva e Souza scultura@power.ufscar.br
Maria Angélica Dupas srefer@power.ufscar.br
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Maria Angélica Dupas srefer@power.ufscar.br
Departamento de Ação Cultural da BCo
Universidade Federal de São Carlos
Rodovia Washington Luís, km 235
Caixa Postal 676
13565-905 - São Carlos - SP - Brasil
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Resumo: À partir do pressuposto de que o texto literário tem autonomia de significação pois cria regras próprias de comunicação entre autor e leitor, são analisadas as atividades de incentivo à leitura desenvolvidas pela Biblioteca Comunitária da UFSCar (BCo), junto à comunidade externa de 1º e 2º graus, considerando as diversas modalidades recomendadas na literatura da área, com ênfase na mediação de leitura. A BCo desenvolve vários programas importantes como “Arte na Biblioteca”, “Formação de Contadores de História”, “Uso da Imagem na Sala de Aula”, “Semana do Livro e da Biblioteca”, entre outros, que são regularmente oferecidos sob a forma de cursos e atividades culturais, em parceria com entidades e instituições ligadas a educação e cultura na região e no estado. Destacando a importância da leitura em todos seus programas, propõem explorar o livro e a literatura infanto-juvenil em todos os seus aspectos (forma de narrativa, conteúdo, ilustração, papel, formato), respeitando-se a relação entre texto e imagem. Para isso, a BCo tem utilizado as técnicas de contadores de história e de mediadores de leitura. Através da história contada, em suas diversas modalidades, desde a encenação teatral até o uso de pequenos recursos visuais, como indumentária de personagens e objetos referentes ao tema, a literatura tem sido oferecida como atividade lúdica. Já através da mediação de leitura, procura-se introduzir o livro como rotina no incentivo ao hábito de ler, permitindo ao jovem leitor, amplo acesso ao material impresso, como forma de realização da leitura global, fiel ao texto em toda a sua originalidade e aspectos físicos da obra, com o objetivo de “abrir janelas” e permitir que cada criança seja atraída pelo detalhe de narrativa ou ilustração que a encante na sua própria descoberta.
1 Introdução
Procurando ampliar as oportunidades culturais através do acesso à obras de qualidade, a literatura infantil será abordada, em nossa análise, como informação estética, sem intenções pedagógicas. O livro, apreciado na sua totalidade, deve ser visto como um produto, competindo no mercado e tendo necessidade de se ajustar aos interesses de um público cada vez mais exigente.
Cunha, citado por MARTUCCI (1999, p.3), explicita que:
“na medida em que tivermos diante de nós uma obra de arte, realizada através de palavras, ela se caracterizará pela abertura, pela possibilidade de vários níveis de leitura, pelo grau de atenção e consciência a que nos obriga, pelo fato de ser única, imprevisível, original, enfim, seja no conteúdo, seja na forma. Essa obra, marcada pela conotação e pela plurissignificação, não poderá ser pedagógica, no sentido de encaminhar o leitor para um único ponto, uma única interpretação”.
Tanto a literatura infantil estrangeira como a nacional, constituem objeto de estudo no processo de formação e utilização do acervo. Obras como a de Nelly COELHO (1995), contribuem para o conhecimento da divisão histórico-literária da literatura infantil brasileira, em seus vários períodos, tendo em Monteiro Lobato um marco divisor de épocas:
“- precursora: período pré-lobatiano (1808-1919)
- moderna: período lobatiano (anos 20/70)
- pós-moderna: período pós’-lobatiano (anos 70/...)”
Relata ainda, (ibid, p. 57) que “foi em pleno período de confronto entre o tradicional (formas já desgastadas do Romantismo/Realismo) e o moderno(representado pelo Modernismo de 22) que Monteiro Lobato inicia a invenção literária que cria o verdadeiro espaço da literatura infantil no Brasil”.
Segundo ZILBERMAN (1994), a literatura infantil até Lobato não apresentava uma temática nacional, reproduzindo os padrões vindos da Europa. Ele consegue romper esse círculo, aproveitando nossas tradições folclóricas e seu êxito se deve aos seguintes fatores:
- personagens que se repetem em todas as narrativas;
- emprego de crianças como heróis, promovendo imediata identificação com o leitor;
- ausência de autoritarismo e de imagens adultas repressoras;
- a opinião das crianças personagens é respeitada;
- a curiosidade e a criatividade são estimuladas.
2 Nossa História
Desde agosto de 1995, quando a Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar foi inaugurada, alguns programas e projetos de atividades culturais, visando atender principalmente o público de 1º e 2º graus, começaram a ser implementados com o objetivo primordial de promover o uso do livro e da Biblioteca, de forma agradável, atraente e eficiente. Até então, nossa Biblioteca era uma típica biblioteca universitária, atendendo as necessidades de ensino e pesquisa como tantas outras.
3 Os Novos Programas
Algumas iniciativas, como o Arte na Biblioteca, acabaram se transformando em Laboratório para as atividades de incentivo à leitura, onde começamos a trabalhar com as técnicas de contar histórias. A aceitação e resultados foram surpreendentes pois não só o público infantil começou a ser beneficiado, como professoras da rede municipal e estadual, alunos dos cursos de graduação em Letras, Psicologia, Terapia Ocupacional, Pedagogia e Biblioteconomia, da própria Universidade, que interessados nesse envolvimento prático, foram nos alertando para essa demanda reprimida e necessidade de outros programas de extensão, e nos impelindo a extrapolar nossos limites geográficos. Acabamos saindo da sala de leitura infantil da BCo e nos aventuramos em outros universos: as praças, as escolas, os postos de saúde, atendendo à comunidade externa da cidade e região, atingindo um contingente heterogêneo, um novo público, usuários em potencial dos demais serviços tradicionalmente oferecidos.
Nessas atividades de leitura nos coube o melhor pedaço: a leitura pelo prazer. Sem cobrança pelo conteúdo pedagógico ou informativo do texto. Sem impor barreiras ao manuseio do livro como objeto lúdico. Tentamos retomar a “história em meiguice” descrita por Malba TAHAN (1957), atraindo a criança para o contato com o livro e a leitura, sentando junto, acompanhando as reações, estabelecendo laços de intimidade, que muitas vezes duram pouco, mas são intensos.
Acompanhamos a polêmica na literatura da área sobre as vantagens e desvantagens entre as histórias lidas e as contadas e não tivemos dúvida: ficamos com as duas!
4 O Contar Histórias
4.1 A importância ontem, hoje e sempre
O texto literário, como obra de arte, exerce grande influência no desenvolvimento da humanidade, pois tratando da universalidade dos conflitos e sentimentos inerentes ao crescimento pessoal e compreensão do mundo, desempenha um papel libertador e transformador. Ouvindo histórias, crianças e adultos podem apresentar reações que manifestam seus interesses revelados ou inconscientes e conseguem vislumbrar nas narrativas, soluções que amenizam tensões e ansiedades.
Segundo depoimento de Otília Chaves, colhido por Malba TAHAN (1957, p.124) o uso das parábolas pelo Mestre Jesus, “e o fato de encontrarmos o registro de seus ensinos tão comumente em forma de histórias, se não prova que este foi o método que ele mais usou, parece-nos provar ao menos, que foi este o método que mais impressionou os que o seguiam”.
Assim, além de acreditar no poder da história e na magia e atração que exerce o contador sobre seus ouvintes, muitos estudos relatam sua importância no desenvolvimento infantil, por ser recreativa, educativa, instrutiva, afetiva (alargando horizontes, estimulando a criatividade, criando hábitos, despertando emoções, valorizando sentimentos) e física (ajudando na recuperação de crianças enfermas e hospitalizadas). Estimula também a socialização, desenvolve a atenção e a disciplina.
4.2 O público alvo
“Ler histórias para crianças, sempre, sempre...”(ABRAMOVICH, 1994, p.17)
As impressões e lembranças da infância sempre nos acompanham: a história antes de dormir, as férias na casa da avó que contava “causos”, a leitura gostosa e descontraída à sombra de um árvore.
Histórias sem texto escrito, para bebes; narrativas curtas para crianças pequenas, com bichinhos, objetos do cotidiano para adequar aos interesses, como diz Betty COELHO (1989). Histórias de repetição e movimento para crianças da fase mágica (3 a 6 anos); de encantamento, de fadas, de aventuras para crianças na idade escolar; de ação e amor para meninos e meninas na pré-adolescência e as engajadas com o universo, com os problemas sociais, para adolescentes que sonham em mudar o mundo.
Adultos também se interessam por histórias. Se adulto não gostasse de histórias as novelas não teriam tanto sucesso... . Antes do início de uma reunião de pais, porque não contar uma história que aborde um problema a ser solucionado?
Quantas oportunidades de leitura não são aproveitadas, pelo simples fato do hábito de ler para os outros, em voz alta, não fazer parte de nossos hábitos.
4.3 Como contar histórias?
As técnicas de contar histórias se mesclam com as qualidades necessárias ao contador ou narrador. Podemos citar, apenas enumerando, as que mais se destacam:
- verificar o local, horário e as acomodações;
- conhecer o público a que se destina e ter o dom de encantar e dominar o auditório;
- conhecer o enredo com absoluta segurança;
- narrar com naturalidade, sem afetação, com voz clara e expressão viva;
- enfatizar os pontos emocionantes da história através das variações de tonalidades de voz e pausas oportunas;
- sentir/viver a história, emocionando-se com a própria narrativa;
- não romper o fluxo da narrativa com conselhos e explicações;
- não perder o fio da meada quando estiver fazendo uso do livro ou outro elemento ilustrativo;
- tirar partido de pequenos incidentes, sem interromper a história;
- evitar tiques e cacoetes;
- tratar o ouvinte com simpatia e camaradagem, sem adotar um ouvinte predileto;
- não demonstrar irritação com a presença de ouvintes desinteressados ou irrequietos;
- chegar aos desfecho sem apontar a moral ou aplicar lições;
- estar aberto para comentários após a narrativa.
Contar histórias é saber criar um ambiente de encantamento, suspense, surpresa e emoção, onde enredo e personagens ganham vida, transformando tanto narrador como ouvinte. Deve impregnar todos os sentidos, tocando o coração e enriquecendo a leitura do mundo na trajetória de cada um.
E, como conclui CHIAVINI (1994, p. 473):
“Como é fácil lidar com os pequenos... Eles aceitam incondicionalmente as ofertas sinceras, deixam-se cativar sem medo por tudo aquilo de que possam auferir prazer, e nos contagiam com o gosto com o qual se envolvem nas tarefas propostas. E são reconhecidos”
4.4 Onde a história deve ser contada?
Como a literatura infantil é muito associada à missão pedagógica do livro e da leitura, o primeiro lugar que nos ocorre para que a narração se realize é a escola. E, indiscutivelmente, é o lugar onde ela mais encontra aplicabilidade.
No entanto, temos acompanhado com alegria, a freqüência e diversidade de locais em que a história contada ou lida tem estado presente. Nos hospitais, como lenitivo para as crianças enfermas, nos postos de saúde (como o Projeto: se Maomé não vai à montanha... que a BCo tem desenvolvido), nas Bibliotecas, nas praças, em casa, em eventos especiais e muitos outros.
Independentemente do local, os ouvintes devem estar bem acomodados, em círculo ou colunas, sentados no chão, em tapetes ou almofadas, livres de outros barulhos, em ambiente com conforto térmico, em horário adequado e outros cuidados desse tipo. Contar histórias para crianças cansadas, com fome, com vontade de ir ao banheiro não é nada gratificante!
4.5 Quanto tempo deve durar?
A duração da narrativa também deve ser adequada: 5 a 10 minutos para as crianças menores, 15 a 20 minutos para as maiores. A repetição da mesma história, se solicitada, deve ser sempre atendida. Outra história não deve ser iniciada sem intervalo. Uma conversa preparatória, motivando para a nova vivência é muito desejável.
5 A Mediação de Leitura
É comum o contador de histórias se sentir inibido ou despreparado, por não possuir todas as aptidões ideais para narrar satisfatoriamente uma fábula, história ou poesia.
A mediação de leitura, outra modalidade de incentivo ao hábito de ler utilizada na BCo, transforma a atividade de leitura em rotina, sem exigir do mediador grandes habilidades artísticas. Qualquer pessoa que saiba ler adequadamente e que goste de trabalhar com literatura e pessoas (crianças e adultos), pode e deve participar dessa experiência.
5.1 O Projeto Biblioteca Viva
Em 1999, a Fundação ABRINQ pelos Direitos da Criança aprovou projeto encaminhado pela BCo e além do acervo da Biblioteca Viva, recebemos treinamento para mediação de leitura, com o compromisso de nos tornarmos agentes multiplicadores e de levarmos o livro a lugares onde ele não chega, utilizando as técnicas de mediação, retratadas no texto a seguir:
“Podemos fazer outras coisas com as histórias, mas temos que saber que estas outras atividades não são ‘momento de leitura’. (destaque nosso) Quando dramatizamos uma história com marionetes ou dobraduras, estamos mobilizando nas crianças outro prazer que não é o de leitura. Estamos estimulando outras áreas do seu desenvolvimento e realizando atividades de teatro, artes plásticas ou semelhantes. Se desejamos, verdadeiramente, atuar para a introdução dos livros e das narrativas e despertar o desejo pela apropriação da leitura nas crianças, temos que enfatizar os momentos cotidianos de troca em torno dos livros e da mediação destes, sem utilizar acessórios e atividades. Quando possibilitamos um momento de livre exploração dos livros - olhar, folhear, ler, reler, passear ou ficar na ‘sua’- nos colocamos a disposição das crianças para acompanhá-las ou contar as histórias, podemos observar uma série de aspectos como, por exemplo, que as crianças são capazes de compreender, pensar e criar muito além do que imaginamos”. (p.2)
Através da mediação de leitura a grandiosidade do texto é preservada. A tendência de simplificação das palavras difíceis a fim de facilitar a compreensão, que ocorre no texto narrado, não acontece quando ele é lido na íntegra.
Outro aspecto importante nessa atividade de leitura é a coleta de dados de cada experiência de mediação. Em formulário próprio são anotadas as obras solicitadas pelas crianças, as principais reações observadas e os progressos individuais no comportamento social, no desenvolvimento do vocabulário e no envolvimento com os livros. Graças a esta documentação, temos reunido uma série de relatos de adultos e crianças que contribuem para as discussões da equipe de mediadores, na troca de experiências e planejamento de atividades futuras.
“A rede afetiva que se estabelece entre todos, através dos livros, abre um espaço no qual cada criança pode expressar-se, ouvir e contar histórias ou ainda ficar em silêncio, sem a necessidade de produzir conhecimentos específicos. Nessa situação as crianças, cada uma de sua maneira, está produzindo conhecimentos, mas não os necessariamente pré-determinados pelo adulto. Ou seja, ela está aumentando seu repertório cultural, seu imaginário, sua linguagem; está tendo possibilidade de escolha de livros e de parceiros para a sua leitura e, além disso, pode conhecer outras visões de mundo e estabelecer relações com sua realidade” (ABRINQ, 1999, p.6).
6 Finalizando
Destacamos os Programas “Arte na Biblioteca”, “Projeto Biblioteca Viva e mediação de leitura”, do qual faz parte o projeto de treinamento desenvolvido no Posto de Saúde da Vila São José, em São Carlos, denominado “Se Maomé não vai à montanha”, por terem freqüência regular e atenderem um público diversificado e numeroso. Os demais, não menos importantes, como “Formação de Contadores de História”, “Uso da Imagem na Sala de Aula”, “Semana do Livro e da Biblioteca”, acontecem em intervalos de tempo maior.
Todas as atividades culturais desenvolvidas nesses quase cinco anos, que distinguem a Biblioteca Comunitária e entusiasmam colaboradores e parceiros, estão imbuídas da crença de que é impossível gostar das coisas que desconhecemos. E não queremos que o livro continue sendo um ilustre desconhecido, principalmente da comunidade carente.
7 Referências Bibliográficas
ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 4.ed. São Paulo : Scipione, 1994.
ABRINQ. Projeto Biblioteca Viva: a mediação de leitura e as crianças. São Paulo, 1999.
CHIAVINI, V.L.M. Contar histórias é fazer arte. São Carlos : UFSCar, 1994. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas. Universidade Federal de São Carlos.
COELHO, B. Contar histórias; uma arte sem idade. 2.ed. São Paulo : Ática, 1989.
COELHO, N.N. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira: séculos XIX e XX. São Paulo : EDUSP, 1995.
MARTUCCI, E.M. Aprendendo a contar histórias. In: _______. Formação de contadores de histórias. São Carlos : UFSCar, 1999. (Apostila)
TAHAN, Malba. A arte de ler e de contar histórias. Rio de Janeiro : Conquista, 1957.
ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. 8.ed. São Paulo : Global, 1994.
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