quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Médicos e psicólogos receitam livros para tratar doenças físicas e emocionais

Cristina Almeida
Matéria publicada em 14/08/2008

Em um evento como a Bienal do Livro, que começa nesta quinta-feira, em São Paulo, muita gente pode se perguntar: existe público para tanto livro? A resposta seria afirmativa se as pessoas parassem para pensar que não somos nós que lemos os livros, mas eles que nos lêem. Se a arte imita a vida, as obras literárias são nosso espelho e, portanto, uma ferramenta para o autocconhecimento. E isso não tem nada a ver com literatura de auto-ajuda.

Livros têm sido utilizados no tratamento de vários tipos de doenças físicas e emocionais, incluindo dependências, abusos, disfunções e depressão. Embora o termo "biblioterapia" tenha sido cunhado recentemente, suas origens remontam à Antigüidade. Em Tebas, 1200 anos a.C., a inscrição na entrada de uma biblioteca - "O lugar para curar a alma" - sinaliza que os povos antigos já conheciam as propriedades terapêuticas da leitura.

A biblioterapia foi reconhecida nos EUA em 1939, mas somente em 1950 é que passou a ser utilizada como coadjuvante em terapias de grupo. Naquela época, guiadas por um comitê previamente designado pelas autoridades locais, as bibliotecas públicas organizavam encontros para que as pessoas tivessem a oportunidade de discutir suas dificuldades, devidamente guiados por um facilitador.

De acordo com os especialistas, a leitura permite que, através dos personagens e suas histórias, encaremos nossos problemas com maior distância, o que aumenta a possibilidade de compreendermos os sentimentos envolvidos em determinada circunstância dolorosa.

A técnica funciona em três etapas distintas: identificação (momento em que o leitor entra em contato com algum ponto em comum com a sua vida); catarse (ocorrida a identificação, o leitor se libera da tensão emocional); insight (nova perspectiva sobre determinado sentimento que repercute na vida prática, permitindo a mudança necessária).

OS CLÁSSICOS DA LITERATURA 'TERAPÊUTICA

Para mulheres envolvidas nas angústias domésticas e acabam atormentadas pelo desejo de evasão:
"Madame Bovary" (Gustave Flaubert), "Anna Karenina" (Leon Tolstoi), e "Casa de Bonecas" (Henrik Ibsen)

Para pais possessivos:
poema "Os filhos", do livro "O profeta" (Gibran Khalil Gibran)

Para adolescentes aflitos pela incomunicabilidade com os pais:
"Carta ao Pai" (Franz Kafka)

Para os deprimidos:
"Bartleby, o escrivão" (Herman Melville) e "Oblomov" (Ivan Goncharov)

Para quem está desesperançoso:
"As aventuras do Sr. Pickwick" (Charles Dickens)

Para viciados em trabalho que vivem estressados:
"Meditações" (Marco Aurelio) e "Cartas a Lucílio" (Lucio Sêneca)

Para os ansiosos e hipocondríacos:
"O mal obscuro" (Giuseppe Berto, Ed. 34)

Para mulheres que sabem que devem mudar, mas adiam uma decisão:
"Mulheres que amam demais" (Robin Norwood, Ed. Arx), "O despertar" (Kate Chopin, Ed. Paz) e "Mulheres que correm com os lobos", (Clarissa Pinkola Estés, Ed. Rocco)

Para quem não consegue administrar o sofrimento afetivo ligado à solidão e à traição:
"Fragmentos de um discurso amoroso" (Roland Barthes) e "Eros e Pathos" (Aldo Carotenuto, Ed. Paulus)


Um livro, três vezes ao dia

Andrea Bolognesi, psiquiatra italiano especializado em biblioterapia, diz que conheceu a técnica quando ainda era estudante de medicina. Identificando em si mesmo sinais evidentes de hipocondria e neurose, apresentou-se no consultório de um famoso neuropsiquiatra para pedir ajuda. Ao contrário do que esperava, o médico não lhe receitou um remédio, mas escreveu no corpo de seu receituário o título de um livro: "La nevrosi, un doloroso stile di vita" (A neurose, um doloroso estilo de vida, sem tradução para o português). Bolognesi conta que o livro lhe ajudou a entender melhor seus medos e ansiedades.

Agora é ele quem, sentado do outro lado da mesa, receita livros para seus pacientes, acreditando que, em alguns casos, eles têm um efeito mais profundo que o dos remédios. "É importante ressaltar, porém, que se trata de uma técnica coadjuvante que pode potencializar algum tratamento tradicional em curso, mas jamais substituí-lo", explica o psiquiatra.

Em geral as questões que permitem o uso da técnica são aquelas de natureza existencial, como os ritos de passagem do tempo (adolescência, menopausa, velhice e morte). E, para Bolognesi, os clássicos são o melhor remédio. "Eles nunca saem da moda porque prestam algum serviço à alma dos homens", elogia.

Na Itália, a iniciativa de Andrea Bolognesi não é isolada. Várias instituições públicas, como a Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina e Cirurgia da Universidade da Catânia, utilizam a técnica para os casos de depressão. Em outra parte do país, no Hospital Santa Maria Nova (Reggio Emilia), uma biblioteca foi especialmente organizada para oferecer aos pacientes e a seus familiares ajuda psicológica.

Para crianças também

No Brasil, uma das maiores entusiastas da biblioterapia é a psicóloga Lucélia Paiva, que há vinte anos usa a técnica em seu consultório e em hospitais, além de realizar workshops em todo país para médicos, educadores e psicólogos.

Para ela, a biblioterapia facilita a interação por meio do livro, mas também pode ser utilizada como auxiliar de outras técnicas lúdicas: "o objetivo é abrir um canal de expressão para que a pessoa seja capaz de lidar melhor com os sentimentos que a afligem".

Especializada em tratar questões que tenham a ver com a morte (não necessariamente a morte física), a psicóloga prioriza a literatura infantil em seu rol de livros terapêuticos. Ela explica que é na infância que se deve começar a falar sobre certas questões para as quais nem mesmo profissionais da área médica estão completamente preparados para enfrentar: "A nossa cultura é aquela que não fala da morte e, portanto, ninguém sabe realmente como lidar com as perdas em todos os níveis".

Usando livros infantis para discutir temas existenciais tão profundos, Paiva explica que esse tipo de ferramenta na psicoterapia atua como as outras formas de expressão artística: por meio dela, a pessoa consegue desfazer os nós que dificultam a verbalização. "Através da narração literária, vem a possibilidade de falar sobre o que foi lido e que, no final, é o próprio sentimento da pessoa", explica.

Indagada se num país como o Brasil, que conta poucos leitores, os pacientes resistem à sugestão de introduzir a literatura numa sessão de terapia, a psicóloga opina: "As pessoas não lêem porque não encontram eco naquilo que lêem".

LIVROS QUE AJUDAM A EXPLICAR A MORTE PARA AS CRIANÇAS

Sobre a morte na velhice:
"O teatro de sombras de Ofélia" (Michael Ende, ed. Ática)

Sobre a perda de avós:
"Vovô foi viajar "(Maurício Veneza, ed. Compor)

Sobre a perda de pais:
"A montanha encantada dos gansos selvagens" (Rubem Alves, ed. Paulus) e "Não é fácil pequeno esquilo" (Elisa Ramon, ed. Callis)

Sobre a perda de irmãos:
"Emmanuela" ( Ieda Pereira de Oliveira, ed. Saraiva)

Sobre os ciclos de vida:
"A história de uma folha", (Leo Buscaglia, ed. Record); "Caindo morto" (Babette Cole, ed. Ática)

Sobre as características e causas de morte, rituais de despedida e diferentes visões sobre o assunto:
"Quando os dinossauros morrem" (Marc e Laurie Brown, ed. Salamandra - esgotado)

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