segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Ler ou não ler: eis a questão

William Grigsby Vergara é Desenhista Gráfico, estudou na UCA, Nicarágua. Veja este artígo completo na revista Envío. Visite: www.envio.org.ni

Artigo publicado originalmente em agosto/2008
Segundo o escritor marroquino-francês Daniel Pennac, o ser humano leitor é sujeito de dez direitos. O primeiro de todos, o direito a não ler. Parece que uma maioria de jovens nicaragüenses, consciente ou inconscientemente, não conseguiram ir além desse primeiro direito. Constituem a maioria quem se concede, diariamente, o direito a não ler. Entre um bom livro e um filme de televisão de má qualidade a oferta televisiva sai ganhando com mais freqüência do que nos agradaria confessar.

Pennac afirma que o dever de "educar" consiste em ensinar meninos e meninas a lerem, em iniciá-los na literatura, em dar-lhes os meios para julgarem se sentem ou não a "necessidade dos livros". E diz também que, embora se possa admitir sem problema que alguém recuse a leitura, torna-se intolerável que qualquer um seja –ou se sinta– recusado por ela. E na Nicarágua, rejeitamos a leitura? Por quê? Estamos perante um fenômeno de apatia generalizado, nacional? Por que estamos como estamos? Porque somos como somos? Como leitor meticuloso quis acercar-me a algumas das causas da não-leitura, quis saber se a juventude na Nicarágua exerce ou não e como os exerce os famosos dez direitos que têm como leitores, segundo Pennac: o direito a não ler, o direito a folhear os livros, o direito a não terminar um livro, o direito a reler, o direito a ler qualquer coisa, o direito a emocionar-se ao ler, o direito a ler em qualquer parte, o direito a somente folhear, o direito a ler em voz alta e o direito a guardar silêncio sobre o que leram.

A UCA: UMA GRANDE MASSA DE ESTUDANTES INCOMUNICADOS COM A LEITURA

Meu primeiro "caso" a ser estudado foi realizado na Universidade onde estudei. Vejamos o que acontece por trás dos muros da bela Biblioteca José Coronel Urtecho (JCU) e em suas antigas prateleiras. Segundo um estudo recente da Universidade Centroamericana (UCA), a média de empréstimos anuais de livros é de 26 por aluno. A cifra é algo escandalosa, considerando que a UCA tem pelo menos 6 mil estudantes em suas salas de aula. Na área de sala, onde não permitem retirar os livros emprestados, a média é de 20 empréstimos anuais por aluno. Isto significa que os universitários da UCA só fazem empréstimo de dois livros em cada quadrimestre, apesar de que em cada quadrimestre têm pelo menos quatro aulas.

Procuro à Coordenadora da Direção de Pesquisa da UCA, Wendy Bellanger. Também está muito surpresa. Explica-me que a Universidade está promovendo "cursos de leitura compreensiva" tentando remediar o escasso hábito de leitura entre os jovens. Também realizam oficinas de redação com estudantes de certas carreiras e nos mestrados e doutorados incluem uma oficina de leitura compreensiva que é dada também aos professores. Wendy faz aulas na Universidade: Introdução à Antropologia. Seus alunos, sociólogos e trabalhadores sociais, são incapazes de fazer referências corretas sobre a bibliografia que empregam. "Em vez de citar o autor, dizem-me: segundo o folheto tal e tal…".

QUANDO "A VERDADE" ESTÁ NA INTERNET

Outro problema é que até chegar ao livro que deseja ler, o estudante deverá passar por toda uma parafernália burocrática de trâmites institucionais. "Um estudante da UCA sempre tem que fazer fila para encontrar seu livro –diz Wendy– e por sua vez, a instituição tem medo de emprestar abertamente os livros, porque existe a idéia de que os estudantes não cuidam deles, estragam-nos". Uma biblioteca que tem medo de que roubem ou estraguem seus livros limita a experiência de pesquisar e interagir amistosamente com os livros. Em outras ocasiões, quando o livro é muito antigo e não há edições novas que evitem a queda das folhas só com o contato das mãos do leitor, o livro resulta tão pouco atraente que o jovem estudante o rejeita.

A experiência docente de Wendy contribui com outro interessante dado ao perfil da crise: "Cria-se a falsa idéia de que "a verdade" está na Internet. Com freqüência meus alunos fazem referências a Wikipedia, a nova autoridade dos estudantes". A inovadora oferta das bibliotecas virtuais está enchendo as salas com uma raça de preguiçosos buscadores. "Não lhes ensinam a serem seletivos com a Internet", queixa-se Wendy. O fato de que os professores se colocam atualmente em ambos pólos piora a situação: aqueles que apostam na riqueza da literatura on-line, pensando que o melhor canal de informação é a Rede; e os que são críticos das novas tecnologias, temem o desaparecimento do formato físico e o plágio da informação acadêmica. Com os professores polarizados, os jovens andam um pouco perdidos, navegando nesse grande oceano de sinais e significados que é a Internet. E o lado escuro que tem toda tecnologia fomenta as rotinas ociosas dos estudantes.

Com estas realidades –uma onipresente cultura da transmissão oral nos professores, uma ausência de crítica perante os meios em massa dos estudantes e a ambigüidade das informações recebidas pela Internet sem o radar da seletividade – o que se colhe são deficiências na formação. O mundo universitário não fomenta a cultura que dá importância à transmissão escrita como veículo de informação e conhecimento. "O oral resulta mais fácil de digerir e de reter. E eu creio que isto não pode ser resolvido somente com cursos de leitura compreensiva. Para superar a apatia em relação aos livros deve-se começar a trabalhar nas escolas", conclui Wendy.

QUANDO PREFEREM A TELEVISÃO E O COMPUTADOR

Reybil Quaresma, 52 anos, motorista do Bibliobus desde o começo, conta-nos que é nos primeiros meses escolares, entre janeiro e abril, quando uma média de 200 meninos e meninas visitam diariamente o Bibliobus à procura de materiais para documentar-se e cumprir com suas tarefas escolares. Vêm das escolas que rodeiam a BAN na região de Las Brisas. Reybil parece preocupado: os moços só chegam para pesquisar temas acadêmicos, procuram textos escolares de Espanhol, Matemática, Física, Biologia e Ciências Naturais, mas não aparecem muitos leitores que procurem prazer e reflexão na leitura, apesar de que a biblioteca conte com um bom fundo bibliográfico (13 mil títulos). "Só procuram leitura-trabalho" . E Elizabeth acrescenta: "Hoje os jovens preferem a televisão e o computador".

O Bibliobus empresta uns 140 livros mensais em cada sistema penitenciário. Segundo Reybil, nos cárceres de Granada, Matagalpa, Chinandega e La Esperanza -único cárcere de mulheres no país- emprestam muitos livros de filosofia, poesia e auto-ajuda. "Cuidam dos livros, temos quatro ou cinco livros danificados durante o ano", afirma satisfeito o velho motorista desta biblioteca ambulante. O lugar onde se emprestam menos livros é no cárcere de mulheres: uns 47 livros em cada visita. "É que nem todas as detentas sabem ler, às vezes sobem ao Bibliobus só para folhear livros com ilustrações".

OS LIVROS DESAPARECERAM ALGUMA VEZ ?

Não se pode subestimar o valor de alguns jovens interessados em ler literatura como necessidade pessoal, que chegam ávidos à livraria, deixam um depósito de 20%, levam o livro que desejam e depois terminam de pagá-lo. Na maioria dos casos, estes jovens não são só leitores, são escritores novatos.

Na América Central os livros são caros em relação ao poder aquisitivo das pessoas. "Um livro que custa 13 dólares (250 córdobas) é um livro caro na Nicarágua, mas nos Estados Unidos ou na Europa não é. Na Europa um livro pode valer até 50 euros e ser acessível para quase qualquer cidadão. Nos Estados Unidos vi livros de autores nicaragüenses a 20, 25 ou 30 dólares que lá não são caros, mas aqui são", aponta Salvadora. Segundo sua experiência, há dois tipos de leitores jovens: aqueles que procuram a qualidade editorial e têm como pagá-la e os que compram na calçada da universidade ou num quiosque bem montado O amor nos tempos do cólera a 50 pesos numa versão empastada manualmente com um xerox pirateado. Consitui a maioria.

Salvadora Navas tem uma visão menos pessimista diante do eventual desaparecimento do livro em formato físico arrasado pelo boom das bibliotecas virtuais. "Eu acredito –diz– que o livro nunca desaparecerá. Desfrutar um livro é também tocá-lo. A Internet pode ser uma ferramenta para ampliar seus conhecimentos, mas é melhor ter um contato mais direto com o livro. A Internet só serve para você se atualizar e nem todos os jovens têm acesso a Internet. Para ler em profundidade um livro é preciso tempo suficiente e esse tempo você não o tem num cyber café. Creio que o livro nunca vai desaparecer. Para nós, que somos ávidos leitores, o maior prazer é que cada livro tenha marcado uma etapa de nossa vida".

O "DISCO RÍGIDO" CEREBRAL: LER COMPREENDENDO O QUE SE LÊ

Imaginando-me o sistema educativo nacional como uma grande escola cheia de professores que deveriam ser alunos, porque arrastam enormes deficiências para desenvolver sua tarefa, quero saber mais do que significa a " compreensão leitora". Como é o processo mental que, nos primeiros anos da educação primária, dá-nos a capacidade para compreender um parágrafo de linguagem escrita, condicionando assim nossa capacidade futura para compreender um livro inteiro?

Existem estudos que medem a capacidade das crianças para ler e escrever. Vanessa Castro me explica: "Este estudo, para medir a capacidade em lecto-escritura, começou a ser aplicado na África e depois no Peru, já em espanhol. Com a ajuda do RTI (Research Triangle Institute) e com fundos de USAID quisemos ver se poderia ser aplicado na Nicarágua. Conseguimos. Ele foi feito na língua mískita e em espanhol, em outubro e novembro de 2007. Visitamos 47 escolas -um dia em cada escola- fazendo uma prova curta e oral em cada uma para ter a certeza de que o aluno a compreendesse. Como projeto piloto, aplicamos esta prova em 2.200 crianças. Depois refizemos a prova com os erros já corrigidos -sempre com o apoio da USAID e RTI-, desta vez em 125 escolas".

" Sobre a prova de espanhol que fizemos em abril e maio de 2008, com 6.700 crianças, comprovamos que quanto mais pobres forem os meninos mais difícil será o domínio da lecto-escritura. Medimos a prova por letras, palavras lidas em um minuto e no final por um ditado. Depois o domínio foi medido através da compreensão leitora, fazendo perguntas sobre o que leram. Segundo o padrão mundial ideal e já fixado –sobretudo com os dados de Cuba e do Chile, que vão à cabeça–, no final do segundo grau o menino deveria estar lendo de 46 a 60 palavras por minuto, porque o processo de aprendizagem que o cérebro segue é este: em 12 segundos o cérebro humano deve processar em sua memória curta uns 7 itens, que são: primeiro as letras, depois as palavras e a seguir as orações".

OS JOVENS NICARAGÜENSES QUE LÊEM E QUE ESCREVEM

Com o que aprendi sobre o processo que se desenvolve no cérebro na compreensão leitora, noto um futuro comprometido. Não estamos à altura das exigências de um mundo competitivo, de países com musculaturas econômicas e culturais baseadas no exercício educativo que oferecem a seus estudantes, muito superior ao nosso. De todas formas, resulta-me paradoxal que um país com tantos escritores e poetas leia tão pouco.

Vou, finalmente, à procura de uma escritora de longa trajetória. Quero conhecer suas reflexões, perguntar-lhe o que fazer para que a juventude se aproxime mais da leitura, indagar por que se tornou quase moda ser escritor sendo um jovem leitor.

Vidaluz Meneses é escritora, bibliotecóloga, membro da ANIDE (Associação Nicaragüense de Escritoras) e vice-presidenta do CEN (Centro Nicaragüense de Escritores). Ela acredita que a juventude lê, mas lê na Internet. No entanto, admite que "um livro inteiro é algo excessivo para ler na Internet". "Por um lado -diz- a juventude se aproxima da Internet porque é uma das exigências do mundo moderno, e por outro lado as universidades mandam seus estudantes pesquisarem na Internet".

Será que o livro sobreviverá ?, pergunto à leitora e escritora. "O livro sempre vai existir -me diz, segura-. Não podemos negar as vantagens da Internet, mas deve-se procurar um balanço. O risco que corremos é que nem sempre há informação qualitativamente verificável na Internet. A Rede é uma excelente fonte de consulta e cada vez mais pessoas se somam à massa de internautas. A Internet tem uma graça que os livros físicos não têm : dá a você a possibilidade de interagir. Existem fóruns onde você coloca sua opinião, blogs com pontos de vista diferentes e informação multimídia de intercâmbio. Para o jovem isso é interessante, essa possibilidade torna o meio mais atraente e de alguma maneira o induz ao hábito da leitura. O que preocupa da Internet é que ela causa problemas na ortografia e empobrece a linguagem. O Chat/Bate-papo se transforma em um canal de mensagens onde a linguagem se deforma. O mesmo ocorre com o celular. Os blogs cumprem uma função interessante na afirmação da identidade juvenil. O jovem encontra ali uma maneira de se projetar para os demais, ajudando-o a se autoafirmar".

NEM TUDO ESTÁ PERDIDO

Alguma conclusão? Penso que nem tudo está perdido. Ainda que os jovens mergulhem lenta, mas profundamente nas águas virtuais da Internet, os grupos reduzidos que lêem estão exercendo seus dez direitos como leitores. Não interessa se escolhem literatura contemporânea ou se preferem os clássicos, retirando-os de suas tumbas. Não importa se acreditam que escrevendo bem jovem, influenciados pelas velhas vanguardas, e enchendo as bases de tantos concursos literários, talvez se tornem intelectuais precoces e escritores novatos. O que importa é que, segundo Daniel Pennac, o verbo ler não suporta o imperativo, uma aversão que compartilha com outros verbos: o verbo amar e o verbo sonhar. Ame-me! Sonhe! Não funciona. Leia! Leia! Você vai ter que ler, rapaz! Suba para o seu quarto e leia! Resultado? Nenhum.


Crianças e jovens lerão cada vez mais à medida que nosso sistema educativo dê espaço à literatura de todas as épocas, incluindo a moderna, e melhore as políticas dirigidas às escolas públicas. Na medida em que se levem mais a sério os indicadores dos estudos sobre lecto-escritura haverá mais participação de leitores nas bibliotecas. Se isto acontecer, os jovens encontrarão no mundo dos livros matéria-prima, para imaginar um mundo melhor do que o conhecido atualmente, entenderemos melhor o que nos espera no século 21, nosso século.

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Fonte: Amaivos
Fonte: (Fonte: Agência Brasil)

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