Dezembro 2011
POR María Teresa Andruetto
Escritora argentina das mais premiadas e reconhecidas, desenvolve, há décadas, trabalhos em torno da leitura e literatura para crianças e jovens. Participou da elaboração de vários planos de leitura em seu país, assim como fez parte de equipes de capacitação de docentes em leitura e escrita criativa com crianças, adolescentes e jovens em situações de risco. No prelo A menina, o coração e a casa, editora Global. Para saber mais sobre a autora visite o site www.teresaandruetto.com.ar
“As palavras tiram as coisas do esquecimento e as colocam no tempo; sem elas, desapareceriam.”
Daniel Moyano
A história
1.
Durante muito tempo pensou-se que a primeira tipografia do Rio da Prata havia sido a Imprenta de los Niños Expósitos, instalada em Buenos Aires por Vierry Vértiz, onde se imprimiram os livros anteriores à Revolução de Maio de 1810. Mas a primeira tipografia dessas terras não foi importada da Espanha: criada e dirigida por guaranis convertidos por jesuítas, nasceu na selva e foi construída ali com tipos de fabricação própria e signos fonéticos novos, invenções para escrever uma língua desconhecida no velho mundo, porque o primeiro livro que se imprimiu e também os dois ou três que o seguiram foram traduções de dicionários, reflexões e evangelizações para o guarani, realizadas por homens de mesma cultura e pelos padres jesuítas. Depois de dez anos de trabalho, em 1705, em Santa María Mayor, na margem ocidental do Uruguai, imprimiu-se o primeiro livro, traduzido pelo Padre Joseph Serrano, que havia pedido aos reis autorização para publicar essas obras, pois “assim, a tipografia, como as muitas lâminas para seu realce, foram obra do dedo de Deus, tanto mais admirável, quando os instrumentos são uns pobres indígenas, novos na fé e sem a direção dos mestres da Europa, para que conste que tudo é favor do céu, que quis, por meio tão inesperado ensinar a eles as verdades da fé”. Oitenta anos depois desse feito, Virrey Vértiz fundou em Buenos Aires uma tipografia cujos primeiros tipógrafos foram os órfãos, filhos de pais desconhecidos, jogados no berçário público de caridade, inaugurado ao mesmo tempo que a tipografia destinada a seu sustento. Nela publicaram os periódicos literários, científicos e sociais e todas as folhas e folhetos anteriores ao estouro da Revolução de Maio. Assim, não foi com a Imprenta de los Niños Expósitos que tudo começou, ainda que tenhamos vivido muitas vezes como órfãos, esperando que os bens e legitimidade chegassem de outros lugares, vangloriando-se do que nos davam, desqualificando o que foi feito em casa, agradecidos pela dádiva
2.
Quis extrair dessa circunstância histórica pelo menos duas questões:
Por um lado a origem americana dessa primeira tipografia realizada, segundo documentos, por uns índios incultos que, contudo... assentaram a pedra angular da letra impressa entre nós, o que nos leva à escura e esquecida presença indígena na construção cultural e na história da letra em nosso país, e coloca as culturas originárias – também elas – no início do livro entre nós. O esquecido, o invisível, o apagamento ou o desaparecimento de nossos bens materiais e simbólicos, assim como a anulação, destruição cultural ou simplesmente a eliminação do outro, traçam uma linha histórica, que vai desde a conquista espanhola, a conquista do deserto, da guerra de reorganização nacional entre civis e a chamada luta da civilização contra a barbárie, até o golpe de Uriburu, a semana trágica ou o 55, desde os golpes de Estado dos anos sessenta até o Golpe de março de 1976, desde o desaparecimento de pessoas nos anos setenta até o desaparecimento do Estado e o empobrecimento social dos anos noventa, como uma recorrência do que se torna nossa sociedade. Assim como poderíamos ver o grito de independência e outros gritos como o de Alcorta, a lei Sáenz Peña, o 45, o voto feminino, a luta dos organismos de direitos humanos, os movimentos indígenas ou as ligas campesinas, como algumas das muitas tentativas de tornar visíveis certos outros, ocultos, pobres, desaparecidos, roubados, assassinados.
Por outro lado, quiseram trazer o caráter mestiço daquela criação levada a cabo pelos guaranis na adjacência, a dependência e o intercâmbio com os jesuítas. O encontro de línguas que isso implica e a tradução como ponte, construção, transformação, subserviência, e como base de uma cultura que resiste à simplificação folclórica e ao pitoresco, porque precisa explorar sua identidade na mistura de textos, de gestos, de visões de mundo e de línguas de diferentes procedências como modo de se fundar. Construção mestiça de nossa cultura e – em última instância de toda cultura – saída da endogamia, como condição necessária para ser e em consequência o rechaço de toda ideia purista de raça, classe, de cosmovisão ou de língua. Essa condição de mestiçagem insistente – sustentada apesar de toda tentativa de destruição – entre diversas zonas, classes, geografia, línguas, atravessa também a literatura argentina, cujos referentes podem ser provenientes de um povoado como Jujuy, ser da aristocracia polaca e se tornar marginal em Buenos Aires, escrever em francês disfarçado com os modismos do Rio da Prata ou em um espanhol com inflexões do inglês, imaginar seus relatos no campo de batalha ou escondido atrás de um nome de homem no amanhecer da pátria, exercer como professores, jornalistas, corretores, telegrafistas, donas de casa ou membros da classe dominante. A nossa literatura provém, talvez mais que a de outros países, de um amplo leque de diversas procedências que se torna visível a partir dos anos cinquenta, quando começam a circular escritores pertencentes aos estratos médios, muitos deles das províncias, que não se dedicam em tempo integral a seus escritos porque têm que trabalhar em outras atividades para viver, o que constitui o coração de nossa diversidade literária e de sua consequente riqueza.
3.
Quem sou?, se pergunta Juan José Castelli em La revolución es un sueño eterno, de Andrés Rivera:
Eu, que me pergunto quem sou, olho minha mão, esta mão, e a palma que sustenta esta mão, e a letra apertada e ainda firme que traça, com a pluma esta mão, nas folhas de um caderno de capa vermelha.
Olho a mesa em que apoiei o caderno de capa vermelha, e olho, na mesa, um tinteiro com base de pedra, e a vela, grossa, que ilumina o caderno, a mesa, minha frente, minha boca e a mão que escreve...
Quem sou?
Esse Castelli literário que evoca o orador da Revolução de Maio enquanto agoniza de um câncer na língua, escreve o que lembra e o que sente em um caderno de capa vermelha. Também descobrimos quem somos à medida que narramos aos outros e a nós mesmos o que nos aconteceu. As palavras, como disse Moyano, “tiram as coisas do esquecimento e as colocam no tempo”, caminham no emaranhado da linguagem, para nomear o mundo e nos permitir encontrar um lugar nele. Palavras nossas e palavras de outros, porque a “presença interpelante do outro... nos torna seres vivos” (Joan-Charles Mèlich. Filosofia de la infinitud), nos tira do autismo, nos torna humanos. A necessidade de sermos ouvidos e a importância de ouvir constroem nossa memória: precisamos alcançar certo sentido do que foi, discutir acerca do que nos acontece e compreender o que aconteceu, se queremos abrir um lugar no presente. Sem uma relação com o que foi, com os homens e mulheres que antes foram, jamais poderíamos responder a pergunta que se faz Castelli de Rivera: Quem sou? Quem somos? De que maneira chegamos até aqui?Olho a mesa em que apoiei o caderno de capa vermelha, e olho, na mesa, um tinteiro com base de pedra, e a vela, grossa, que ilumina o caderno, a mesa, minha frente, minha boca e a mão que escreve...
Quem sou?
Que relação há entre um passado de “manual” e nossa vida de todos os dias? Que relação entre os gestos repetidos dentro de casa e o público fechado em seus sentidos até tornarem-se alheios? A história de cada um de nós, até em seus aspectos mais privados, forma parte de um passado comum, e não é possível reconstruir o passado pessoal sem reconstruir ao mesmo tempo um passado de época. Poder nos olhar na trama do que nos precedeu e reconhecer nela aspectos próprios, constrói nossa identidade e nos sustenta. A memória é um contínuo movimento desde o individual até o social e desde nossas condições presentes de ontem e de amanhã, em um cruzamento de forças, de lutas, por retomar laços perdidos, dialogar com zonas recolhidas e ainda invisíveis, aprender com os erros e acertos dos que vieram antes, com intenção de nos construir individual e socialmente, porque não há futuro individual separado do futuro de todos. Quem somos? De onde viemos? Por que dessa maneira e não de outra? Interessa-me compreender como as políticas econômicas de um país ou do mundo, o liberalismo, a globalização a ditadura ou a guerra, vão repercutir nos cantos mais inesperados de nosso mundo pessoal, em nossa sexualidade, em nossa condição de pais, ou de filhos ou de empregados, ou... De onde vêm nossas contradições, nosso desejo de ser “de outra parte” ou “de outra maneira”, nosso ceticismo, nossa criatividade? De onde esse arquivo de palavras e de imagens que arrastam até nós guerras, miséria, orfandade, mas também profundos gestos de amor, de dignidade, de responsabilidade para com os outros?
Vivemos em um país ainda em construção, com aspectos muito complexos que incluem tanto o desejo de integração como o de destruição do outro, um país onde é, ainda, muito difícil alcançar certos acordos, certos contratos sociais que incluam a todos. Essa construção de identidade, o ponto crucial, se faz, em boa medida, através da memória, mas essa memória coletiva não é unívoca, mas um tecido feito por indivíduos afetados/atravessados de diferentes modos por certos feitos. O olhar atento a um passado recuperado em sua complexidade e, sobretudo em sua diversidade, nos ajuda a compreender que esse trabalho não nos é alheio, que podemos formar parte desse tecido com nossas ideias, experiências e sentimentos, que isso que hoje consideramos “nosso” foi realizado alguma vez por um indivíduo ou uma comunidade ou um setor social e conseguiu sobreviver para além das fronteiras culturais, étnicas ou lingüísticas que os geraram. “Ignoro meu nome, Fábulo antes de me enviar aqui... [...]... apagou tudo o que havia em minha memória, abrindo espaços para por nela a memória de seu povo. E me entregou as palavras, que são minha única realidade, ao menos aqui, neste refúgio”, disse Daniel Moyano em Tres golpes de timbal. Precisamos reler o passado, colocar nele palavras que permanecem invisíveis, compreender, porque se o negamos, “as promessas não cumpridas, os sonhos destruídos e os projetos que naufragaram” (Raúl Vidal, Ciclo de conferencias sobre olvido y memoria. Córdoba, 10/04/2010), o que não teve lugar, regressa e traz sintomas no corpo social, nos adoece.
A escola
1.
Na “Fundação mítica de Buenos Aires”, que Borges incluiu no Caderno San Martín em 1929, se diz que os homens dividiram um passado ilusório, e que “só faltou uma coisa: o lado da rua”. A dificuldade de incluir pessoas diferentes de nós parece ter sido uma constante em nossa história, talvez também nas histórias de outros povos. De escutar, de prestar atenção ao que ouvíamos, de voltar os olhos ao que permanecia excluído, esquecido ou negado, pudemos também compreender e ser compreendido, além de nos tornarmos mais responsáveis. A pergunta que habilita uma escuta tem estatura ética porque dá condições ao outro, nos permite acomodar sua humanidade, posicioná-la nesse relato de todos. Ajudar as novas gerações a se fazer perguntas, a escutar o outro e a si próprio, para que possam compreender quem são e apropriar-se de suas vidas, é uma das questões mais substanciais que a educação pode fazer. Um professor e uma escola predispostos a escutar e a proporcionar que os alunos se escutem e escutem ao outro, constroem um território de atenção horizontal, não só de declínio de um relato instituído, e se constituem ao mesmo tempo em veículos de tradução, pontes de fala entre partes. Qualquer que seja o nível de educação em que esteja inserto, o professor pode – hoje mais que nunca – gerar perguntas acerca do modo em que vivemos, porque apesar de tudo o que possa parecer, ensinar está entre os trabalhos menos alienados, é uma das preocupações humanas em que mais e melhor podemos exercer um olhar crítico, problematizar a realidade, tomar distância do estabelecido.
2.
Que lugar a leitura ocupa nisso? “Os que mais precisam são os que menos podem dizer sua palavra”, disse essa escritora, filósofa, santa que foi Simone Weil. Aproximar a palavra aos que mais carecem dela, fazer que tenham voz e voto em uma espécie de “novo sufrágio universal”, é algo que ainda devemos construir. Quando lemos, ensinamos, escrevemos ou ajudamos outros a ler, a ensinar, a escrever, as palavras nos vinculam ao mesmo tempo ao individual e ao social, porque a leitura é, ademais daquela prática solitária e gostosa a que frequentemente nos referimos, um instrumento de intervenção sobre o mundo que nos permite pensar, tomar distância, refletir, uma esplêndida possibilidade para dar lugar às perguntas, à discussão, ao intercâmbio de percepções e à construção de um juízo próprio. Mas para isso... cito: “no âmbito escolar não pode haver más leituras. Porque não se trata só de formar leitores: trata-se de formar bons leitores. Se não, é como uma espécie de fetichismo da leitura pela leitura, ou da esperança de que, embora leia livros ruins, ‘já o lemos trazidos pela república da leitura’. A escola tem que formar um leitor que rechace um livro quando está mal escrito”, disse Martín Kohan.
3.
Os livros que lemos são manifestações estéticas acerca de outras ficções representativas, em uma forma de memória feita de matéria concreta no imaginário, em que as vozes que acreditamos esquecidas ou perdidas ou impossíveis são trazidas para nos ajudar a ver e a nos construir. Na literatura, na arte, a humanidade encontrou um veículo para transmitir suas representações do mundo, diferentes, segundo a época e as condições sociais, econômicas, culturais. Cada livro – cada novela, cada conto, cada poema – contém, com maior ou menor felicidade, uma leitura do mundo, e ler o que foi escrito é ingressar no registro de memória de uma sociedade, a que essa sociedade considera (e isto não é simples, ao contrário, é um verdadeiro campo de batalha) por alguma razão, perdurável; é entrar nesse imenso tapete tecido diante de diferentes circunstâncias por tantos seres ao longo do tempo. Assim, então, poderíamos dizer que a história da literatura e a arte é também a história da subjetividade humana e das condições materiais e simbólicas em que essa subjetividade se estende. Contra o impulso e a descarga individual, contra o puro entretenimento e o adormecimento da consciência, a arte nos recorda de quem somos, nos propõe uma das imersões mais profundas em nós e na sociedade de que fazemos parte.
Esse tecido é tão intenso quanto heterogêneo, porque é feito de infinitas contribuições singulares. Então, tomar a palavra para que ingressem também nossos fios no tapete, os fios de todos. Múltiplas memórias relativizando-se umas com as outras para que nem o passado nem o imaginário se fechem em um relato único, para que permaneça em um estado de interrogação que nos permita encontrar as palavras necessárias para narrar o que ainda não foi narrado. Na construção desse tecido de subjetividades, se inscreve boa parte da importância da literatura em uma sociedade, já que nossas expectativas e suas manifestações são intensos exercícios de compreensão do que acontece a nós e a outros imaginários, ou do que poderia acontecer.
4.
Assim, ler/escutar/escrever é abrir para nós e para os outros um caminho de liberdade. Mas se trata de algo dado de uma vez e para sempre de um caminho, porque já não é em um livro ou em uma ação, mas no trânsito, na precariedade do que se está deixando de ser para se tornar outra coisa, nesse rio do tempo que vai de uma palavra a outra, de um livro a outro, de um gesto a outro, onde se aprende e onde se ensina. Podemos oferecer livros e traçar estratégias de leitura, mas servirão pouco se desarticularmos a capacidade de disparar a letra, se desativamos sua qualidade de nos transformar, nos incomodar, de nos fazer pensar. Ouvi dizer, uma vez, de uma professora: “quero ser uma simples ponte entre os livros e meus alunos”. Não sei se pode haver definição melhor para um professor, em qualquer nível de educação, que queira ser uma ponte pela qual transita um saber recebido, processado naquilo que existe de mais pessoal, posto em discussão no espelho refratário da própria ideologia, para passá-lo logo como um saber que se deseja deixar para os que chegam, um saber, segundo consideramos, os que nos seguem não deveriam perder, para que a vida se faça mais intensa, de maior espessura, com mais entidade e identidade ou simplesmente mais suportável. Então, um professor como ponte entre o que houve antes e o que virá, uma ponte através da qual se produz um encontro. Mas nos tornarmos ponte não é uma tarefa mecânica e ingênua, tampouco isenta de ideologia. Somos o que vivemos e lemos, e somos o resultado de por em questão isso que vivemos e lemos. Temos para isso certa liberdade para eleger, ainda que não possamos escolher as condições em que fazemos essas escolhas; embora muitas vezes possamos sequer decidir as condições em que ensinamos, porque essas condições estão atravessadas por uma rede social, econômica, política, das quais nem sempre temos consciência.
5.
“Que revolução compensará o sofrimento dos homens?”, se pergunta o Juan José Castelli criado por Andrés Rivera. Que sociedade desejamos para nós e para nossos filhos? O que estamos dispostos a fazer e a que estamos dispostos a renunciar para construir essa sociedade que desejamos? Em que nos compensou a revolução cujo bicentenário celebramos? Que dívidas devemos ainda pagar para ser dignos de dizer liberdade, independência...?
Sempre houve uma vinculação entre a guerra e a palavra, entre as lutas pelo poder e os relatos. Essa tensão entre a letra e o chumbo, e entre ambos e o bronze, nos lembra que a palavra, a imprensa, o livro, a literatura, não são artefatos ingênuos nem estão fora do cruzamento de interesses e ideologias de uma sociedade. Os homens da Revolução de Maio e os homens de letras e em suas obras, tanto quanto em seus atos, revelaram de diversas maneiras os projetos ideológicos. “Com a espada, com a pena e com a palavra”, repetimos esse refrão durante décadas, a letra se tornou pena, a materialização da metáfora do poeta espanhol Blas de Otero acerca da poesia como uma arma carregada de futuro. Pensávamos que Sarmiento, Echeverría, Eduarda Mansilla ou Juana Gorriti não sabiam que estavam, com suas penas, livrando batalhas? Devemos pensar que eram ingênuos e desconheciam a importância e defender suas ideias, de deixá-las por escrito, de gravá-las na pedra, de difundi-las aos quatro ventos?
Faz um tempo visitei a mostra das mulheres na Casa do Bicentenário. Entre tantas visões sobre tantos aspectos que tinham a ver com as mulheres, há imagens sobre as prisioneiras. As cativas do grande relato nacional são brancas em mãos selvagens, descendentes de europeus cujos brutais captores são os indígenas. Uma metáfora que explica essa situação relaciona-se a das lutas entre a civilização europeia, de classe, e a barbárie autóctone, pobre. Tudo isso, que em algumas ocasiões foi verdade, e muitas mulheres brancas foram levadas por indígenas às suas aldeias, contrasta, contudo, com acontecimentos de nossa história conhecidos por todos, o conquistador branco ingressando em territórios aborígenes, matando e destruindo; sabemos que houve, também, muitas prisioneiras indígenas nas mãos de captores brancos, e que a mulher como estopim de guerra é uma constante na história dos povos, contudo, o relato que herdamos e que aceitamos, acriticamente, é o relato dos brancos. Os aborígenes não puderam completar, menos ainda, impor seu relato e o relato de todos, falar das mulheres presas e de seus homens e mulheres aculturados, pobres ou assassinados. O mais terrível de tudo não é sequer isso, e sim que isso se ensina, se transmite destituído de sua brutalidade ideológica, nas escolas onde os alunos são netos, bisnetos daqueles homens e mulheres despidos e assassinados. Não faz muito, em uma atividade que desenvolvi em uma escola da Patagônia, uma professora do planalto que se apresentou como de origem mapuche, disse: “meus alunos, todos indígenas, comparecem todos os dias a uma escola que se chama General Roca e são obrigados a saudar como herói a quem destruiu seus povos; o que diríamos se uma criança de origem judaica tivesse que estudar em uma escola chamada Adolf Hitler? A rua central de mais de uma cidade patagônica, para dar outro exemplo, se chama Primeros pobladores, em referência aos primeiros colonos que chagaram aos vales no início do século XX. Desse modo, devemos pensar que os homens e as mulheres que habitaram antes esses vales não eram povoadores? Ou acaso queremos, inclusive, dizer que não eram homens? Distanciar-nos para pensar e tomar posição com relação ao que ensinamos, processar os acontecimentos de nossa história, revisar esse passado que nos precede para que inclua a todos de um modo digno em nossa particularidade e em nossa diferença é, ainda em muitos casos, nossa dívida. A escola não é só o espaço para instalar a leitura – a grande ocasião, para dizer como Graciela Montes – mas também um espaço para construir consciência acerca de nós mesmos, desenvolver nosso pensamento, não dar o mundo por ordenado. Aprendemos e ensinamos a ler, mas, nem sempre aprendemos e ensinamos a ler entrelinhas, a entrar nos meandros de um relato. Talvez em algum momento possamos voltar a uma ideia de professor e de escola que tenham muito para ensinar, um professor e uma escola que nos ajudem a pensar acerca de nós mesmos. “Meu papel no mundo, [...] não é somente o de quem constata o que acontece, mas também o de quem intervém”, dizia Paulo Freire, para lembrarmos do que, muitas vezes nos esquecemos, ou querem que esqueçamos: a importância transformadora que um professor pode ter.
A literatura
1.
Uma obra é o espaço onde se encontram – no momento único que oferece a leitura – quem escreve e quem lê, duas subjetividades, às vezes, de diferentes séculos, culturas e línguas. Ouvir a voz, o grito, o sussurro, a dor ou o assombro de uma cortesã da dinastia Tang, um funcionário do século de Péricles, um camponês maya k’iché, uma solteirona norte-americana do século XIX ou uma aristocrata russa do início do século XX é um encontro que só a arte nos permite. Lemos devido à nossa necessidade de ensimesmar-nos, mas também porque buscamos – intensa e desesperadamente – nos comunicar. Sempre pensei, enquanto fazia saraus literários em instituições prisionais, em clínicas geriátricas, e também nestes últimos anos, enquanto escrevo na minha casa, que as palavras e os livros não são importantes por si mesmos, mas porque a um extremo e a outro do escrito e do lido, há pessoas que se encontram. Os livros são pontes entre pessoas, pontes para “aprender a pisar, a sustentar-se”, como disse a poeta uruguaia Circe Maia. A literatura não é somente um conjunto de palavras colocadas em harmonia sobre a página, é também pensamento, utilizado para ser a mais complexa construção social, que é a linguagem, e se tenta construir uma língua privada. Por isso a literatura, como todas as artes, mas esta ainda mais, é ao mesmo tempo íntima e social no que diz respeito às ideias, mas mais ainda no modo de utilizar a linguagem e na maneira como ela se mostra na subjetividade. Assim, o cosmos de significação pessoal que construímos ao escrever e que recriamos ao ler, se dirige duplamente à sociedade de onde provém, porque se constrói como um bem social e porque se alimenta dos relatos que essa sociedade gera, o que, duplamente, nos inclui.
O real e o ficcional se fundem nos processo de criação de uma obra. Uma novela, por exemplo, é uma mentira que construímos para dizer uma verdade que ainda não conhecemos: uma verdade mais verdadeira que a verdade. Tudo está no mundo, pronto para ser arrebatado: nossa experiência e a de outros acerca de cada coisa. A arte se alimenta, se apropria do que é de todos. A apropriação que faz a literatura sobre o patrimônio comum – a linguagem – regressa mais tarde ou mais cedo por suas causas e nos pede que voltemos a cabeça para os outros, Pede-nos que olhemos, escutemos, com atenção, com persistência, com imprudência ou desobediência, não para dar respostas, mas para gerar perguntas. Um escritor é como um “cachorro cheirando os rastros que o mundo deixa”, diz o cineasta alemão Alexander Kluge, alguém que, com certo olfato, emoção e muito amor pelo detalhe, imagina o que poderia ter sido.
2.
Para terminar, um breve fragmento da comovedora novela de J. M. Coetzee, A idade do ferro, em que a protagonista, uma mulher sul-africana, branca, professora universitária, velha e doente, escreve sobre uma foto à sua filha que vive nos Estados Unidos:
Aquele dia nos fotografaram em um jardim. Atrás de nós, há umas flores que parecem malva-rosas. À nossa esquerda há uma cama de melões. Reconheço o lugar... Ano passado, a fruta, as flores e as verduras brotavam naquele jardim, lançavam suas sementes, ressuscitavam a si mesmas e nos bendiziam com sua presença abundante. Mas quem atendia tudo aquilo com seu amor? Quem cuidava das malva-rosas? Quem colocava as sementes de melão no solo quente e úmido? Era meu avô que se levantava às quatro da manhã com o frio que fazia para abrir a comporta e deixar que a água entrasse no jardim? E se não era a ele, a quem pertencia, realmente, o jardim? Quem são os fantasmas? E as presenças? Quem, fora da foto, apoiados em seus rastelos e suas pás, esperando para voltar ao trabalho, se apóiam, também, na borda do retângulo, dobram e quebram para dentro?
Dies irae, dies illa, aqueles em que o ausente está presente e o presente ausente. A foto já não ensina quem estava aquele dia no quadro do jardim mas os que estavam ali. Guardadas todos esses anos em lugares seguros por todo país, em álbuns e em caixas de papelão, esta foto e milhares como ela amarelaram sutilmente, metamorfosearam-se. O banho de fixar a foto não saiu bem, ou bem o revelado foi mais além do que alguém havia sonhado, mas se transformaram em negativos, um tipo novo de negativos em que começamos a ver o que costumava ficar fora da moldura, oculto.
Quem sabe o festejo maior nesse aniversário seja poder olhar com atenção o que ao longo de duzentos anos esteve fora da moldura, oculto. Inclusive descobrir que, muitas vezes, os que não apareciam na foto, os que apoiavam seus rastelos e suas pás na borda do retângulo, esperando que a encenação terminasse para continuar cuidando e regando a plantação, eram não só nossos antepassados, mas nós mesmos.Dies irae, dies illa, aqueles em que o ausente está presente e o presente ausente. A foto já não ensina quem estava aquele dia no quadro do jardim mas os que estavam ali. Guardadas todos esses anos em lugares seguros por todo país, em álbuns e em caixas de papelão, esta foto e milhares como ela amarelaram sutilmente, metamorfosearam-se. O banho de fixar a foto não saiu bem, ou bem o revelado foi mais além do que alguém havia sonhado, mas se transformaram em negativos, um tipo novo de negativos em que começamos a ver o que costumava ficar fora da moldura, oculto.
* Texto apresentado no Congresso Internacional Lectura 2011 “Para ler o século XXI”, Habana, Cuba Outubro 2011.
Referências bibliográficas
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Castrillón, Silvia. Biblioteca escolar: ¿Un modelo legitimista o una propuesta transformadora? Encuentro de Bibliotecas Públicas y Escolares organizado pela Escuela Interamericana de Bibliotecología de la Universidad de Antioquia de Medellín, setembro, 2009.
Castrillón, Silvia. Presencia de la literatura en la escuela. 4º Congreso Latinoamericano de Lectura y Escritura, 4 a 7 de agosto de 1997, Lima, Perú.
Coetzee, J. M.. A idade do ferro. São Paulo: Siciliano, 1992.
Freire, Paulo. Pedagogía do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
Kluge, Alexander. Entrevista: www.goethe.de/mmo/priv/5128030-STANDARD.pdf
Kohan, Martín. Recorriendo la literatura argentina: blogs.educared.org/guiadeletras/2009/08/13/recorriendo-la-literatura-argentina-martin-kohan/
Larrosa, Jorge. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
Maia, Circe. Dossier. Diario de poesía. Nº 43. Primavera 1997.Buenos Aires/Rosario.
McLaren, Peter. Pedagogía, identidad y poder. Rosario: Homo Sapiens, 2003.
Mèlich, Joan-Carles. Filosofía de la finitud. Barcelona: Herder, 2002.
Montes, Graciela. La gran ocasión, la escuela como sociedad de lectura. Plan Nacional de Lectura.planlectura.educ.ar/pdf/La_gran_ocasion.pdf
Moyano, Daniel. Tres golpes de Timbal. Buenos Aires: Sudamericana, 1990.
Rivera, Andrés. La revolución es un sueño eterno. Buenos Aires: Seix Barral, 2005.
Vidal, Raúl. Ciclo de conferencias sobre olvido y memoria. Córdoba: Casa de Pepino, 10/04/2010.
Weil, Simone. La gravedad y la gracia. Madri: Trotta, 1994.
TRADUÇÃO THAÍS ALBIERI
Fonte: Revista Emília
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