Matéria publicada em setembro/2011
Um itinerário possível para a formação de leitores
POR María Beatriz Medina
María Beatriz Medina nasceu na Venezuela. Formada em letras, autora, mediadora, pesquisadora na área de leitura y literatura infantil, professora, e consultora. Atualmente participa da Comissão Executiva do Banco del Libro, é presidente da filial venezuelana do IBBY e membro do Conselho de Sinergia, uma rede de associações da sociedade civil venezuelana.
Quando recebi o convite para refletir sobre leitura e qualidade de ensino, me posicionei a partir do ponto de vista de meu trabalho como promotora de leitura. E desse lugar me aproximei do tema, agradecendo o convite, pois tais reflexões nos permitem tomar distância e pensar sobre o que fazemos e como fazemos.
O engate inicial com essa temática começou a se delinear a partir do que já trazíamos dentro dos alforjes, como mediadores preocupados em formar um sujeito leitor independente, crítico e cidadão responsável. Isto é, o desideratum implícito – ainda que no discurso – presente em todos os espaços de promoção de leitura e, principalmente, na escola.
Parecia fácil. Comecei fazendo um balanço das possibilidades que a leitura oferece por e para a formação, mas no caminho comecei a perceber – uma vez mais – que aproximar-se da leitura e do trabalho de formar leitores é uma tarefa árdua, se avaliada pelas dimensões da busca e pelo fio da evolução de um conceito sempre em reformulação.
I. Do que estamos falando quando falamos em leitura?
Não podemos dizer que compartilhamos do mesmo conceito de leitura revisto e transformado por motivações ideológicas e pedagógicas e matizado por contribuições de concepções sociolinguísticas e socioculturais de diferentes naturezas. Hoje em dia, inclusive, se cai muitas vezes no erro de considerar que ler é simplesmente a habilidade de decifrar signos, quando o ato de ler vai muito além deste deciframento.
A leitura é acumulativa e propõe sempre um diálogo entre o leitor e os códigos verbais e não verbais, que se transforma em um espaço de elaboração e de construção de um ser social e individual. A leitura é, antes de tudo, um ato comunicacional e – por isso – uma prática social que entrelaça o texto escrito e o uso da linguagem. Quando nos aproximamos com atenção da prática leitora, ou do uso da leitura dos textos escritos, podemos percebê-la como uma prática social vital, situada na interação pessoal.
David Barton e Mary Hamilton, no texto “La literacidad entendida como práctica social”, consideram que a leitura é capaz de “dar sentido às vidas por meio das práticas cotidianas”.
Não se trata de uma referência casual, pois aqueles que como eu trabalham em projetos de promoção de leitura podem constatar que a leitura dá sentido à vida, não apenas nas práticas cotidianas, mas em situações difíceis, em que a ficção ou a metáfora se transformam em ferramentas de exceção “para ler o entorno e interpretar a realidade”. Por isso é necessário formar leitores como habitantes do mundo, parafraseando Daniel Goldin.
Mas a leitura funciona também como uma estratégia para o ensino, ainda que tenhamos que evitar o perigo de cair no reducionismo instrumental ao considerá-la apenas uma ferramenta para o desenvolvimento de competências que se identificam com a compreensão das estruturas lógicas para apreender de qualquer maneira um texto proposto.
II. Para que formar leitores?
O tema da formação de leitores está relacionado ao tipo de cidadão que queremos. Sem sombra de dúvidas, aspiramos a um leitor crítico, capaz de se posicionar no mundo, um leitor que transcenda o mero deciframento e seja capaz de abordar a leitura informativa e estética, enfrentando o texto, questionando-o, sentindo-o.
A palavra escrita e a leitura nos ajudam a criar espaços para o desenvolvimento e a transformação individual e social, uma vez que a experiência estética abarca a vastidão de nossa contraditória condição humana e estabelece pontes com a realidade na qual estamos submersos. Ela faz isto, claro está, de maneira metafórica e abstrata, para possibilitar o desenvolvimento do ser social.
III. Quem é o responsável pela formação de leitores?
O Estado, sem dúvida. Ele é o centro decisivo na hora da formulação, orientação e coordenação das políticas públicas de leitura. Formar leitores exige o compromisso do Estado e uma sólida articulação de distintas esferas da vida social: em primeiro lugar a escola, a biblioteca, as organizações sociais que trabalham com a leitura e a indústria do livro.
A formação de leitores, cabe frisar, é uma pratica ancorada em solidas premissas sobre a leitura, tais como:
- Constitui-se num elemento inevitável na hora de educar para a vida democrática e participativa.
- É um espaço para a formação do cidadão responsável.
- Transforma-se na “ferramenta” do desenvolvimento de seres autônomos e críticos.
- É uma bússola que orienta no campo da informação e leva ao conhecimento.
Somos obrigados a levar em conta as necessidades do contexto. Pois é justamente quando o contexto se faz presente, o momento em que começam a sucumbir as certezas destas e de outras premissas; isto porque a prática nos demonstra a saciedade da condição modificadora da realidade.
Como aponta Anne-Marie Chartier, ao longo do tempo a urgência de educar respondeu a um desafio social urgente (salvar sua alma, construir a República, inserir-se no mundo do trabalho). Hoje a urgência se articula em torno da formação de cidadãos.
III. Voltando ao tema que nos interessa: Leitura e qualidade do ensino.
Em uma primeira aproximação, vemos uma equação direta que deveria nos levar a fechar questões acerca do trabalho contínuo e sustentado de formação de leitores em todos os espaços que assumem esta tarefa. Obviamente, a escola não é uma exceção.
No entanto, para que essa equação se faça realidade, é necessário assumir a leitura como um elemento vital de desenvolvimento humano e promover, ao mesmo tempo, a internacionalização de uma verdadeira valorização dessa prática.
É tarefa dos docentes articular caminhos que deixem inequívoca a condição essencial da leitura para o ser humano e abram as comportas para a multiplicidade de possibilidades que oferece ao leitor como ferramenta para a comunicação e a experiência docentes.
IV. Como conseguir isso na prática?
1. Em primeiro lugar, repetirei uma máxima: criando dentro da escola espaços e tempos de leitura de uma grande variedade de textos. Isto é, propiciando em espaços leitores e bibliotecas escolares o encontro com textos de diferentes formatos, alinhados com os objetivos escolares e assumindo a leitura como condição essencial para o desenvolvimento pessoal e social, como centro das práticas educativas (no plural) e como eixo transversal.
Uma prática que implique na intenção de construir um marco do fazer educativo em afinidade com as correntes contemporâneas teóricas e práticas, por meio de um leque de opções leitoras que se transforma no ponto de encontro de inclinações e preferências temáticas.
2. Cabe-nos, portanto, reverter o lema da descolarizacão que nós, promotores de leitura, temos defendido, uma vez que boa parte das práticas escolares tinham desterrado a condição prazerosa que as primeiras aproximações com a leitura exigem, isto em nome do “trabalhoso prazer de ler”, que promove esse tropeçar com a linguagem escrita, “com as suas ambiguidades e entonações”. Hoje em dia não é mais suficiente escutar a narração do conto, é preciso “tê-lo lido, isto é olhá-lo como uma forma e transitá-lo, palmo a palmo, como quem percorre um terreno minado” – como afirma María Fernanda Palácios. A literatura é, dentre todos os textos escritos, um recurso de exceção para o desenvolvimento da leitura. María Eugenia Dubois afirma que o “Sistema educativo em geral nunca levou em conta a transcendência de ler desde uma postura estética: evocando imagens, recordações, sentimentos, emoções. A leitura se estuda na escola como algo à margem, que está fora de nós mesmos para ser carregado, levado, recordado, mas não vivido, sentido.”
E é assim porque a literatura põe à prova nossa visão ordinária das coisas, e questiona nossos preconceitos. Permite ao homem, pegando emprestadas as palavras de Stevenson “chegar a compreender que não tem sistematicamente razão, e que aqueles de quem discorda não estão sempre absolutamente equivocados.”
3. Reivindicar a literatura dentro da escola. O que implica a “criação de um itinerário de leitura por parte dos docentes que permita às novas gerações transitar para as possibilidades de compreensão do mundo e desfrutar para a vida que a literatura abre”, como diz Teresa Colomer na introdução de Andar entre livros.1
Traçar, então, um itinerário de leitura, que depurado, decantado, maduro, permite uma experiência de mudança pessoal e social na qual cada um pode se reconhecer ou não. A escola não pode se isolar do contexto social no momento de estabelecer os objetivos de ensino, seus conteúdos e a maneira de transmiti-los.
Nessa aceitação transversal da leitura é preciso sustentar, em primeiro lugar, a leitura estética que nos leva a enfrentar os desafios das estruturas mentais e abre brechas na consciência do leitor, o que pode nos distanciar da literariedade.
Com isso não se quer dizer excluir a leitura informativa, apenas que o itinerário do leitor se afirma desde uma aproximação estética para abrir as comportas da compreensão textual que deriva de outros tipos de texto que dinamizam o aprendizado.
4. Criar as condições para um verdadeiro trabalho em rede, que tem se limitado a ser apenas anunciado, como podemos comprovar na prática com frequência. Um trabalho no contexto de políticas de leitura e escrita educativas, em torno das quais se articulam as estratégias interdisciplinares que fomentam a competência discursiva na aula.
5. Formar o docente como leitor, como conhecedor das propostas textuais estéticas e informativas e envolver a família no processo. Essas ações se dirigem, principalmente, às crianças e jovens em processo de formação. É precisamente para esse destinatário que a articulação se faz necessária. A escola e a família constituem instituições básicas de qualquer formulação de planos integrais de leitura; daí o trabalho de sensibilização e capacitação de pais e professores se convertem em etapas inevitáveis em programas dessa natureza.
Enfim, estamos diante de um itinerário possível, que ganha sentido apenas a partir de uma verdadeira valorização da leitura que nos conecte com a realidade através da palavra que tudo contém e que é, principalmente, uma forma de interagir com a realidade, de reinterpretá-la. Assim, a leitura se constitui – tomando emprestada uma expressão dos pescadores da costa oriental da Venezuela – num cabo de terra.
TRADUÇÃO: DOLORES PRADES
* Texto apresentado no Encontro de Leitura e Qualidade do ensino, organizado pela OEI e a Fundação SM, em Bogotá, novembro de 2009.
Bibliografia citada:
Agenda de políticas públicas sobre o livro e a edição, CERLALC.
Caraballo, Darwin; Pífano Clementina; Medina, María Beatriz. Consultora: María Elena Zapata. Libros para niños y jóvenes. Documentos de trabajo de Desarrollo Social – Educación. Caracas: Corporación Andina de Fomento, 2005.
Chartier, Anne-Marie. Enseñar a leer y escribir: una aproximación histórica. Espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2004.
Larrosa, Jorge. La experiência de la lectura: espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
Palácios, Maria Fernanda. Cuentos para volar: 10 relatos venezolanos para celebrar un doble aniversario. Caracas: Producto, 2002.
Rosenblatt, Louise M. La experiencia de la lectura: espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.
Fonte: Revista Emília
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