sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Leitura literária: a escola e a isenção do prazer e da obrigação

A pesquisadora Vera Bastazin explica como a leitura dos clássicos das literaturas brasileira e portuguesa ajuda na formação mais integral do estudante e por que esse tipo de leitura se tornou obrigatória nos principais vestibulares do país

Por Vera Bastazin*

Matéria publicada em 15/09/2010

No âmbito da educação brasileira, o exame vestibular tem sido marcado como um momento de extrema tensão para aqueles que se empenham na conquista de uma vaga em uma boa universidade. Considerado quase um ritual de passagem na vida acadêmica do jovem, o vestibular é visto como um grande desafio ou mesmo um momento de competição cruel.

Afora as questões de desnível socioeconômico que marcam diferenças substanciais entre aqueles que disputam, lado a lado, as vagas oferecidas, há de se destacar também as dificuldades expressivas do estudante brasileiro com relação às habilidades de escrita e leitura de textos e a carência de repertório cultural que a maior parte de nossa população jovem expressa.

Mas o que essas considerações têm a ver com a questão das leituras literárias, hoje obrigatórias, no exame vestibular?

Já está distante o tempo em que, constatado e debatido o fraco desempenho do estudante brasileiro, principalmente em relação à leitura e produção de textos, optou-se pela exigência da leitura de obras literárias no exame de vestibular. A fórmula seria simples: obrigado a ler para enfrentar seus concorrentes na prova de maior valor em número de pontos, o aluno deveria ser preparado, com antecedência, pelas escolas, para que, ao final do ensino médio, estivesse em condições para aproveitar de forma mais substancial a vaga que iria ocupar nos bancos das boas universidades. Sem dúvida, o efeito também deveria vir em cascata, isto é, as escolas, em geral, estariam investindo, desde cedo, maiores esforços na formação de seus alunos. A leitura dos clássicos das literaturas brasileira e portuguesa tornava-se o centro das atenções na ajuda de uma formação mais integral, com o reforço ao acesso ao conhecimento via prática de leitura de bons textos, entendidos também como modelos de escrita.

Parece-nos importante lembrar aqui que a leitura da obra literária, além de melhor habilitar o indivíduo para a compreensão de textos em geral, desperta no leitor a inquietação frente ao objeto literário e a vontade de decifrá-lo, como forma de vencer a obscuridade das palavras e chegar ao que poderíamos chamar de ‘prazer’ pela descoberta de possíveis significados. No contexto linguístico, decodificar a palavra significa vencer um obstáculo que, com o passar do tempo e com a habilidade de leitura, torna-se um procedimento praticamente automatizado. No contexto literário, ao contrário, o processo de decodificação, assim como os resultados atingidos, são sempre distintos e envoltos em certa novidade de procedimentos e informações.

Na literatura, a palavra parece estar sempre pronta a surpreender o leitor; ela pode ter seu significado afirmado, negado ou sugerido em uma direção inesperada. A função do texto literário é surpreender, quebrar com o automatismo da decodificação, exigir do leitor um empenho maior, fazê-lo pensar não em significados seguros, mas em possibilidades. É nesse sentido que a contribuição da literatura pode ir além do desenvolvimento da habilidade de leitura para atingir a plasticidade da mente que arrisca interpretações de forma a aprender a conviver com a dúvida e a instabilidade significativa de um mundo que é cada vez mais plural.

Habilidades mais complexas se desenvolvem. O literário motiva e requisita a leitura intuitiva e perspicaz, aquela que aguça os sentidos, abre-se para a pluralidade de significados. Ela habilita para a leitura de um universo mais amplo, onde todas as áreas do conhecimento podem estar contempladas. Ler o literário é apreender, em concomitância, dentro do universo estético, a pulsação da história, da filosofia, das ciências matemáticas, da mitologia, das religiões, das ciências sociais, da psicologia, enfim, de todo o universo de conhecimento humano. A boa literatura propicia ao leitor a interação consigo mesmo e com o outro, assim como estimula o diálogo, ou melhor, o discurso que se desdobra e se faz crítico-reflexivo.

Os propósitos da inserção de obras literárias no vestibular, não há dúvida, eram os melhores. A realidade, todavia, desconcertou os propósitos.

O que aconteceu entre uma proposta inteligente e uma execução que, passados anos consecutivos, não trouxe resultados benéficos aos nossos jovens e tampouco ao nosso sistema de ensino em qualquer de seus níveis?

Lançar os olhos para a educação básica e fundamental, salvo pouquíssimas exceções, faz-nos perceber que o livro de literatura infantil é bandeira de luta de poucos educadores. Afinal, parece não haver clareza quanto à importância do texto literário para a formação integral do indivíduo. Temos inúmeros índices de que são poucos os que acreditam que estimular o imaginário é permitir à criança uma vivência mais rica de sensibilidade e potencial criativo. Despertar o desejo pela aventura da viagem literária para conhecer outros povos e outros costumes é fazer ver ao jovem possibilidades de experiências que redimensionariam seu olhar e sua própria mente. Incitar o homem para o cultivo permanente de novas ideias e gosto pelo desafio de sentir e pensar o mundo por formas não convencionais é algo ainda pouco associado à aproximação e vivência do literário.

As escolas não assumiram, até hoje, o papel de defensoras dos estudos literários como forma de enriquecimento do processo educativo. Elas continuam ignorando ou omitindo-se no reconhecimento da importância do literário para a formação da sensibilidade estética associada aos mecanismos da razão crítica e criativa. Os professores, com sérias deficiências em sua formação, não se sentem à vontade e nem mesmo seguros para o enfrentamento da instabilidade significativa do texto literário. Eles também, provavelmente, procuram ainda verdades que a literatura não tem para lhes oferecer. Uma alternativa, das mais comuns, encontra-se na derivação dos estudos literários para abordagens biográficas ou de contexto histórico e social. O valor estético da obra é esquecido no meio do caminho.

Os cursinhos preparatórios, por sua vez, veem-se na obrigação de recuperar o tempo perdido. Na engrenagem dos conteúdos, criam mecanismos de informação sobre as obras que, se de um lado sobrecarregam o vestibulando em suas relações extraliterárias, pouco podem investir no trabalho de análise que revela a essência dos projetos poéticos inscritos em cada obra. Os resultados são um aluno que se ilude sobre o conhecimento que tem do texto e dos movimentos estéticos e instituições de ensino que se isentam de maiores comprometimentos.

Afinal, vivenciar a leitura do literário não é função que se cumpre da noite para o dia; ao contrário, é parceria que se realiza em processo, cultivando o gosto pela busca de alternativas no ato de construir a percepção e o próprio conhecimento como objetos sempre inconclusos. Conhecer significa interferir na realidade, crescer e transformar-se com ela. É processo que se constrói a cada passo-palavra, como vivência de algo que atrai e prende nas armadilhas da palavra, tal como uma serpente que, ao movimentar-se, surpreende pela rapidez e magia do próprio movimento.

* Vera Bastazin professora e doutora em Literatura e Crítica Literária no curso de pós-graduação da PUC de São Paulo.

Fonte: Univesp

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