Matéria publicada em 08/08/2012
Fonte: Ecofuturo Blog
Fonte: Ecofuturo Blog
“As
histórias são bálsamos medicinais. Achei as histórias interessantes
desde que ouvi minha primeira. Elas têm uma força! Não exigem que se
faça nada, que se seja nada, que se aja de nenhum modo – basta que
prestemos atenção”.
Esta
afirmação da psicanalista norte-americana Clarissa Pinkola Estés,
claro, não é nenhuma novidade. Mas vale pela precisão e beleza com que
nos recorda de uma atitude que a humanidade reconhece pelo menos desde
que nos humanizamos. Se, como diz o filósofo espanhol Fernando Saváter,
não nascemos humanos, “nos tornamos humanos por convívio e por contato”,
essa sofisticada metamorfose jamais se manteria em pé, não fosse nossa
capacidade de ouvir e de narrar histórias. Na mínima melodia articulada
pela voz humana se identifica o DNA dos homens e mulheres que somos ou
que haveremos de ser. É por isso que a imagem de nossos ancestrais em
volta do fogo contando “causos” de terror ou de glória será sempre atual
– ainda que a atualizemos munidos de livros, celulares e tablets.
Mas
desde esse feito extraordinário e decisivo que foi a invenção da
linguagem, muitas tecnologias foram desenvolvidas em favor da nossa
necessidade ancestral de narrar. De todas elas, nenhuma foi tão
decisiva, irreversível e transformadora da nossa relação com a palavra
como a invenção da escrita. Não cabe desenvolver aqui a reviravolta que
isso ocasionou na mentalidade humana, e sobre isso são escritas até hoje
milhares de teses em todo o mundo. Para a nossa abordagem, entretanto,
basta destacar que uma técnica (a leitura) não veio substituir a outra
(contar histórias) – mas atentar para as diferenças entre uma outra é
fundamental, quando queremos promover de fato a formação de leitores.
De ler e de contar
Contar
história é uma maneira antiquíssima e eficaz de fortificar e perpetuar a
cultura, através da transmissão de valores éticos ou morais, de
técnicas essenciais à manutenção da comunidade, de ritos de passagem
inerentes aos ciclos da vida, etc. Passadas de geração para geração, de
boca em boca, se ajustam e se transformam conforme as necessidades. Como
a palavra também cura, é “bálsamo medicinal” – pode alegrar, comover,
acalentar, entreter, fazer rir, consolar –, contar histórias tem muito
de improviso e adaptação ao contexto e à função a que se destina,
dependendo muito da impressão que se quer imprimir na alma daquele que
ouve. “Quem conta um conto aumenta um ponto”, já dizia um antigo
antepassado nosso cujo nome se perdeu na história, mas que com certeza
foi um grande narrador. E isso vale mesmo para histórias que foram
escritas. No ato de contar, o material escrito não precisa estar presente,
pois o que interessa é o enredo, a narrativa. Sendo assim, além da
própria voz, podemos usar recursos diversos, como fantoches, técnicas
teatrais, caracterizações de personagens, objetos, música, etc.
Agora, ler é outra história. Na leitura de um conto, mesmo o ponto permanece onde está. Até porque a função da escrita é preservar tanto a história quanto a forma como ela está registrada.
Portanto, se é para acrescentar alguma coisa, isso corre por conta de
quem ouve: vai depender de como a história se acomoda no espírito de
quem a recebe, que é livre para interpretar. Mas àquele que se comprometeu a ler para os outros cabe respeitar cado ponto, cada vírgula e a inteireza da frase.
Ler em voz alta: um triângulo amoroso entre você, o livro e o pequeno leitor
Vale
enfatizar: não se trata de substituir uma prática pela outra, nem de
estabelecer que esta seja melhor do que aquela – enfim, não se trata de
hierarquizar. Ambas as práticas são importantes para a aquisição da
linguagem e o desenvolvimento da escrita. Mas, em se tratando de
promoção de leitura e formação efetiva de leitores, a presença do livro e
o respeito às particularidades da leitura são indispensáveis, e aí
precisamos ficar atentos entre as diferenças entre ler e contar.
Comparada à narrativa oral, a leitura é algo muito recente e ainda
estamos aprendendo como é que se faz. Grandes leitores e autores, como
Goethe, advertem que aprender a ler é algo que não paramos de aprender
durante uma vida inteira!
Em
abril de 2010, veiculamos em nosso antigo blog uma excelente entrevista
com a fonoaudióloga e assessora em leitura pública Lucila Pastorello.
Vale a pena reproduzir abaixo alguns trechos preciosos que nos ajudam a
pensar e aperfeiçoar nossas práticas de mediadores de leitura. Vejamos.
Com
a leitura a coisa é um pouco diferente. Um professor e pesquisador da
USP, o Claudemir Belintane, que orientou meus estudos de doutorado,
costuma dizer que na leitura há uma lei-dura.
Não dá para adaptar, inventar; o leitor deve ler aquilo que está
escrito, já que uma das funções da escrita é registrar um texto, em seu
conteúdo e sua forma.
Se
a ideia é promoção de leitura, é claro que ler em voz alta é a prática
mais indicada, pois a presença do escrito (do livro, por exemplo) na
atividade faz com que aqueles que ouvem e veem (crianças, normalmente,
mas funciona com adultos também) fiquem interessados em saber de onde
vêm as palavras, a história que envolvem a todos na voz do leitor. A
criança vê o leitor vendo o escrito. O leitor, por sua vez, tem um
compromisso com o texto escrito e com os ouvintes: ele testemunha a
língua, está sujeito às leis da escrita, mas ao mesmo tempo pode deixar
sua marca interpretativa com sua voz, fazendo o texto passar por seu
corpo e atingir o corpo dos outros.
Ao
lermos em voz alta, o texto escrito está presente, o que cria uma
triangulação na situação: a escrita, o leitor e aquele que escuta e
observa a leitura. Esta triangulação é essencial para trabalharmos o
desejo pela leitura e pela escrita. A transição, falando especificamente
em pessoas em processo de alfabetização, se dá naturalmente quando há
desejo pelo escrito, quando o não-leitor inveja o leitor e se lança no
árduo caminho de ser letrado. Está aí um bom sentido para o termo
"mediador de leitura". A leitura em voz alta é uma oferta, um presente
para o futuro. Ler para o outro é sempre importante, ainda mais
tratando-se de um leitor em formação. Devemos lembrar que a
alfabetização é o domínio de uma técnica, mas a formação de um leitor
leva anos. Quantos anos? Provavelmente a vida!
Feitos
esses esclarecimentos preciosos, uma pergunta não quer calar: por que
ainda somos resistentes em admitir essas diferenças e por que, sempre
que podemos, colocamos a contação de histórias no lugar da leitura em
voz alta? Lucila esclarece.
Contar
histórias tem sido uma prática mais intensa justamente por conta de
suas características: liberdade para criar, resgate de elementos da
cultura popular e arrebatamento do espectador através de uma cena
dramática, muito próxima do teatro. Além disso, no Brasil, quando
falamos aos professores sobre leitura em voz alta, é comum percebermos a
associação ao controle, com a avaliação e não com a fruição do texto e a
criação de sentidos interpretativos. Esta associação pode ser motivada
pelo uso autoritário e normativo da leitura. Se pensarmos que ler é
transformar o material gráfico em material sonoro, aí pensamos que
existe uma “leitura certa” e uma “errada”. Mas, se considerarmos que ler
é produzir sentidos, a leitura em voz alta passa também a ser uma forma
de singularizar o discurso, de oferecer aos outros a sua leitura
particular.
Se
ler é algo que se exercita e se aprende pela vida toda, podemos e
devemos oferecer leitura sempre e em todos os lugares, inclusive para
pessoas plenamente alfabetizadas. Segundo Lucila:
Podemos
ler com as crianças desde muito cedo; antes de serem alfabetizadas,
elas podem “ler as imagens” enquanto você lê o escrito (a leitura
imagética é uma forma interessante e importante de acesso ao sentido de
um texto). Aos poucos, à medida que a criança caminha em seu processo de
alfabetização, podemos variar os papéis, inventar outros. Ler para o
outro é uma expressão de afeto e cuidado. E para pensar: até que idade
queremos ser cuidados? Alberto Manguel, um importante escritor e
pesquisador argentino, descobriu a potência da leitura em voz alta lendo
para um grande escritor argentino, Jorge Luis Borges, que estava
perdendo a visão. A partir daí Manguel passou a incorporar a leitura em
voz alta como uma prática interativa: passou a ler em voz alta em casa,
com sua companheira. Em alguns países como França e Portugal, atualmente
existem sessões de leitura em voz alta abertas ao público: a leitura em
voz alta é uma oferta e não necessariamente uma alternativa a cegos e
analfabetos. Não se trata de suprir, mas de ofertar.
Um presente pra você, leitor
Dissemos
parágrafos acima que, na contação de histórias, o que importa é a
narrativa, o conteúdo que é contado – o enredo da história. Mas, quando
se trata de leitura de literatura, interessa não só o que se conta, mas
também a forma como o autor narra. Por exemplo, qualquer um de nós pode
dizer que, do alto de um voo de avião, as coisas aqui embaixo parecem
tão minúsculas que um homem, um cavalo e um boi se tornam verdadeiras
formiguinhas. Mas existe um jeito de dizer isso que só pode ser dito por
Guimarães Rosa. Do conto “As margens da alegria”, extraímos a seguinte
pérola: “Se homens, meninos, cavalos e bois – assim insetos?”.
E
não para por aí o deslumbramento desse conto. Ele inteiro é construído
com pérolas, para o nosso “milmaravilhamento”. Um menino vê pela
primeira vez um peru no quintal e de repente não é mais um peru, é a
coisa mais deslumbrante do mundo, é uma experiência arrebatadora, é a
iluminação de uma vida inteira:
“O
peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração.
Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão –
brusco, rijo, – se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso
de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de azul-claro, raro, de céu
de sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e
planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto – o peru para
sempre. Belo, belo! Tinha qualquer de calor, poder e flor, um
transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia.
Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado,
andando, gruziou outro gluglo. O menino riu, com todo o coração. Mas só
bis-viu. Já o chamavam, para passeio”.
Não
é maravilhoso?! É aquele tipo de leitura para ser relida. Relida, não:
translida. Não, ainda não é isso, é aquele tipo de coisa que exige ser:
pro-cla-ma-da! É daqueles trechos pelos quais passamos e imediatamente
queremos chamar todo o mundo para ver-ouvir-ler-se-maravilhar. Exige ser
compartilhado!
Tudo
bem, vocês já perceberam com toda razão que Guimarães Rosa é no mínimo o
escritor de cabeceira de certas pessoas aqui no Ecofuturo... Mas,
experimente ler o trecho acima em voz alta. Leu? Então, tem mais:
experimente a sensação de movimentar bem os lábios, sentindo cada
movimento, abrindo bem a boca, articulando cada palavra vagarosamente,
sentindo o movimento da língua, conforme a exigência de cada sílaba,
atento à delícia da pronúncia e à sonoridade – especialmente em:
“empáfia”, “torneado”, “redondoso”, “entufou”, “ríspida grandeza
tonitruante” e “abotoado grosso de bagas rubras”... Aposto que você
sentiu um negócio estranho e maravilhoso no próprio corpo.
Sentiu? Então, corre e anuncie aos outros a boa nova!
Excelente o teu blog rs
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