Escritor português José Jorge Letria
reitera necessidade de treino
e ambiente propício
para a formação de leitores para a vida.
Foto: Amanda Perobelli
Para ser leitor, assim como no caso de um atleta de alta performance, é preciso mais do que talento ou simples vocação. Antes, são necessárias condições de treino e desenvolvimento para que a tarefa se desenvolva por completo. Esta é a tese do português José Jorge Letria para a manutenção do hábito de leitura entre crianças e jovens. “É bom que se perceba que são os autores dessa área (infantojuvenis) que formam os leitores para os livros de Clarice Lispector, José Saramago, Jorge Amado ou António Lobo Antunes. Quem não começa por um lado dificilmente chega ao outro”, afirma o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores.
No Brasil para a 22° Bienal Internacional do Livro de São Paulo e o lançamento de Brincar com as Palavras,
o autor, vencedor do prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil de melhor livro de literatura em língua portuguesa com Avô, Conta Outra Vez, revela a Carta Fundamental
como ter filhos e netos o impulsionou para o gênero e do papel
fundamental da família na manutenção e incentivo dos hábitos de leitura.
Carta Fundamental: O senhor afirma, em Brincar
com as Palavras, que as palavras foram seus “primeiros brinquedos, os
mais maleáveis e versáteis, os mais sedutores e indestrutíveis”. Essa
paixão refere-se mais à língua portuguesa ou à literatura?
José Jorge Letria: Refere-se às palavras em
geral, o que significa que a afirmação envolve, sobretudo, a língua
portuguesa enquanto base de comunicação e descoberta, e também a própria
criação literária, que só veio mais tarde, mas que já estava
presente pelo modo como me afeiçoava às palavras e as colecionava, pela
sua sonoridade e raridade.
CF: O senhor tem livros publicados de
diversos gêneros. De onde vem seu interesse pelo infantojuvenil? Que
diferenças há em produzir livros para crianças?
JJL: Comecei por publicar em livro
de poesia para adultos, em janeiro de 1973. Mas depois veio o interesse
pela literatura para crianças, em 1979, porque tinha filhos pequenos,
que também eram o meu público, e porque o meu percurso musical
como cantor-autor também passou pelas canções para crianças, que foram,
em larga medida, a porta que se abriu para eu começar a escrever para os
mais novos.
CF: É recente o reconhecimento, no Brasil, da
literatura infantojuvenil como gênero no meio acadêmico. O mesmo ocorre
em Portugal? Qual a sua visão sobre esse debate? Em sua opinião, o
gênero já tem seu lugar consagrado?
JJL: A literatura para os mais novos tem hoje mais
reconhecimento no Brasil, designadamente em nível acadêmico, do que em
Portugal, onde é um segmento importante da produção literária, plástica e
editorial, mas ainda é visto com desconfiança pelo mundo da
investigação acadêmica. O ideal seria considerarem-na de forma plena,
sem reservas ou preconceitos, mas enquanto tal não acontecer,
justifica-se o seu estudo autônomo. É bom que se perceba que são os
autores dessa área que formam os leitores para os livros de
Clarice Lispector, José Saramago, Jorge Amado ou António Lobo Antunes.
Quem não começa por um lado dificilmente chega ao outro. Para isso não
basta aprender a ler jornais esportivos.
CF: O mesmo se dá entre os escritores? Ou
ainda é corrente a ideia de que se trata de um gênero “mais fácil”,
“ingênuo”, que qualquer um pode escrever livros para crianças?
JJL: O fundamental num livro para crianças e jovens é
que seja inteligível, sem trair a beleza poética da palavra. Há, porém,
essa noção enganadora de que ela é uma literatura simples. A Cecília
Meireles enfrentou certo estranhamento quando publicou Ou Isto ou Aquilo,
por ser uma poetisa com obra consagrada a publicar para
crianças. Perguntaram-lhe, então, como era escrever para crianças, ao
que ela respondeu: “É o mesmo que escrever para adultos, só que
melhor”. Portanto, acho que exige um grande investimento, mas um esforço
de simplicidade, que exige muito trabalho de bastidor.
CF: O senhor já afirmou que, como autor, escreve
para ser lido, para tocar de alguma forma seu público leitor. Nesse
sentido, a figura do mediador tem papel essencial, por ser quem faz a
ligação entre as duas pontas desse processo. Que medidas são
essenciais para que essa mediação seja bemsucedida? Que tipo de formação
ou qualidades são essenciais a um bom mediador?
JJL: Um bom mediador tem de ser, antes de tudo,
alguém que goste verdadeiramente do que está a fazer e que acredite no
que faz. Por isso tem de gostar de livros e de ler, tem de gostar de
partilhar esse amor e de perceber que essa partilha com os mais novos
contribui para combater o analfabetismo, para formar leitores e até
escritores.
CF: Que papéis desempenham a família e o mediador ou a escola?
JJL: Acredito que a mediação se baseia em
três pilares: a família, a escola e o bibliotecário. A família porque,
se há livros em casa, se há hábitos de leitura, estamos meio caminho
andado. Depois, o professor e o bibliotecário, que são complementares. O
grande problema é que, se nas guerras a primeira vítima é a verdade,
nas crises a primeira vítima é a cultura. E, num momento como o que vive
Portugal, ninguém compra livros e isso dificulta muito as
coisas. Assim, a escolha de obras tem de ser mais criteriosa, mesmo que
isso signifique editar menos. Todavia, sempre que me encontro com
professores e mediadores, tento reforçar neles o sentido de confiança e
na estratégia de responsabilidade pelo que fazem. Há que ser um trabalho
de paixão, e não burocrático, pois são eles que devem mostrar às
crianças que é possível, mesmo com as cargas horárias que têm hoje, que
as absorvem muito, há sempre espaço para a leitura. A criança chega em
casa cansada e tem o computador, os cursos, o jazz, os esportes, e é
importante demonstrar a eles e aos pais que a leitura tem seu espaço e
que é mais estruturante que a maior parte dessas coisas.
CF: Numa pesquisa sobre os hábitos
dos brasileiros, a Retratos da Leitura no Brasil, aferiu-se que, no
País, são lidas quatro obras por ano, apenas metade delas na íntegra. O
professor é listado como o principal motivador do hábito, porém, o
número de obras lidas cai sensivelmente após a saída da escola. Como
evitar esse fenômeno? A escola é suficiente para formar leitores para
toda a vida?
JJL: É natural que as crianças nas escolas leiam
mais livros que os adultos. Por várias razões: são obrigadas a fazê-lo,
têm mais tempo e a leitura faz parte do seu plano de formação. Os
adultos têm menos tempo e a vida mais atarefada com o trabalho e as
preocupações profissionais, familiares e sociais. Mas compete depois à
família e à comunidade não deixarem morrer o interesse pelo livro e pela
leitura. Se os pequenos leitores ficarem desenquadrados e sem estímulo,
dificilmente se tornarão grandes leitores, e é do núcleo dos grandes
leitores que saem os grandes escritores. É um pouco como o esporte de
alta competição: não basta ter talento e vocação, é preciso ter
condições de treino e desenvolvimento.
CF: Como costumam ser seus encontros com jovens
leitores, como ocorreu recentemente na Bienal do Livro de São Paulo? Que
impacto esses megaeventos têm para atrair e formar leitores?
JJL: Estive diversas vezes na Bienal do
Livro de São Paulo e acho positivo que sempre haja muitos jovens. Nessa
passagem pelo Brasil, pedi para visitar algumas escolas e me surpreendi
com o envolvimento das crianças. As perguntas eram espontâneas, e
denotavam que eles haviam de fato lido o livro e que aquelas eram
curiosidades delas. Alguns tinham curiosidades sobre o processo de
escrita próprias de uma criança que está ela mesma envolvida com o
ato de escrever. Essa relação com os leitores é um complemento muito
importante ao nosso trabalho e hoje se está a perder. As editoras estão
muito tecnocratas e distantes, e aqui no Brasil há uma relação mais
humanizada entre autor e leitor. Já tenho títulos programados para os
próximos anos, e quero muito aprofundar essa minha relação com o Brasil.
CF: Autores lusófonos como Couto, José Luandino
Vieira e José Eduardo Agualusa tiveram suas obras difundidas no
Brasil graças ao incentivo do governo português. Apenas agora o
brasileiro ensaia uma contrapartida. Como avalia o intercâmbio
de autores entre países de língua portuguesa?
JJL: O apoio à internacionalização da produção
cultural de um país é fundamental, tenha a forma que tiver, e deve ser
assegurado sem discriminações ou ao sabor do interesse de grupos
editoriais ou outros. Também acredito muito no apoio oficial à tradução,
pois é uma via essencial para que livros de autores lusófonos sejam
editados e lidos noutros idiomas. Conheço mal o que se passa no Brasil a
este nível, mas conheço o enorme potencial da cultura brasileira e a
sua capacidade de se afirmar no mundo. Veja-se, a título de exemplo, o
que se passa com a música, com as novelas da televisão ou com o cinema.
Estou a falar de uma verdadeira potência cultural em nível
global. Compete a quem decide e a quem legisla criar condições para que
esse patrimônio se mundialize, o que é bom para o Brasil e para todo o
universo lusófono. E eu acredito cada vez no potencial cultural,
econômico, social e até político da lusofonia. Esta língua que nos une
há séculos tem de marcar de forma clara o seu lugar neste mundo em
transformação profunda e acelerada.
Fonte: Carta Capital
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