Publicada no jornal Gazeta do Povo em 18/09/2012
Felipe Lindoso, pesquisador e consultor de leitura
O jornalista, tradutor e consultor Felipe Lindoso tornou-se uma voz
necessária ao se falar de leitura no Brasil. Por uma razão prática – ele
povoou de informações seguras um setor dado a discursos inflamados e
bem-intencionados a favor do livro. O resultado é flagrante. Para ele,
ler é atividade lúdica e necessária, mas também é algo tão concreto
quanto o mercado da soja.
Parece exagero, mas ao costurar leitura e desenvolvimento, o
especialista em políticas públicas criou uma estratégia para fazer do
negócio dos livros e da leitura um assunto tão sério quanto os demais.
Não é uma guerra vencida. Há muito que se palmilhar para que os índices
de leitura no Brasil estejam à mesma mesa de negociação em que se
discute o pré-sal ou o Código Florestal. Mas o pesquisador figura entre
os que trabalham para criar uma cultura que considere as letras um
capital decisório no vai não vai que balança as economias emergentes.
O livro O Brasil pode ser um país de Leitores?, de 2004, é uma prova
de sua ambição. A obra radiografa os maus humores nacionais com o livro e
a literatura desde os princípios da Nação. Entre uma tragédia e outra, o
estudo levanta fontes para outros pesquisadores – como os interessados
em entender um fenômeno como Ágape, o livro de 7 milhões de exemplares
do padre Marcelo Rossi. E retoma pendengas já bastante debatidas, porém
crônicas, como os tropeços da escola e da família na formação dos
leitores.
Felipe Lindoso é entrevistado da série “Leitura na prática”, que a Gazeta do Povo publica até 21 de outubro. Confira:
Para que tornar-se um leitor?
Quem lê e amplia seus horizontes culturais tem mais oportunidades de
se desenvolver. Mas essa é uma opção individual, desde que estejam dadas
as condições de escolha. O que acontece hoje é que as oportunidades de
acesso ao livro são reduzidas. As famílias não são leitoras, as escolas
ainda não preparam as condições para essa escolha, e o sistema de
bibliotecas públicas é precário, para usar uma palavra suave. Por isso,
ser leitor ou não independe de uma escolha. Na maioria dos casos, não há
oportunidades.
É possível reaprender a ler?
Em uma palestra, o professor Ítalo Moriconi [organizador de Os cem
melhores poemas brasileiros do século] assinalou o quanto temos que
aprender, inclusive sobre as posturas necessárias para uma boa leitura.
Essa postura não é “natural”, é socialmente induzida. Ler é uma questão
de aprendizado e de escolha. Mas é importante destacar que ler não é
obrigação. Pode ser uma necessidade, inclusive profissional. Há pessoas
que desfrutam da leitura por prazer. Outras, ainda, por convicções
religiosas ou políticas. Por essas características, a leitura não
acontece somente nos momentos de lazer e descanso, quando concorre com a
tevê, o cinema, a música e a simples conversa. A leitura depende de
circunstâncias...
Aproveitando a deixa, qual o papel da escola nessa seara...
Deixar de tornar a leitura obrigatória. Deixar os livros à disposição
dos alunos para que escolham o que querem ler, em literatura. Aí o
professor pode motivar os alunos para ler alguns títulos, mas sem
obrigação. Como diz o Ziraldo, o importante é ler, não aprender...
O que diria das bibliotecas escolares?
Salvo as proverbiais exceções, são muito ruins. Começa que na maioria
das escolas não existe biblioteca, nem como “salas de leitura”. Já vi
escolas nas quais as diretoras “despejaram” a biblioteca para abrigar
mais alunos. Mas as bibliotecas são ruins sobretudo porque as
professoras não são leitoras, não foram formadas e capacitadas para
transmitir o gosto pela leitura. Daí que não ligam para as bibliotecas.
As bibliotecas muitas vezes viram lugar de “castigo”: aluno mal
comportado vai para a biblioteca, na qual encontra muitas vezes
professoras afastadas da sala de aula, por alergia a giz, problemas
nervosos e outros quetais.
O que fazer para que melhorem?
Melhorando – e muito – a qualidade dos professores. Depois, é preciso
capacitar adequadamente os encarregados das bibliotecas. Não que devam
ser necessariamente bibliotecários – mas um conjunto de bibliotecas
escolares deveria ser supervisionado por bibliotecários. Os que ali
trabalham precisam ser formados para a função, e não ocupar o lugar como
um quebra-galho qualquer. Finalmente, a biblioteca escolar precisa ter
um acervo amplo, com diversidade de escolhas, tanto de literatura quanto
dos chamados paradidáticos. E com liberdade para os alunos escolherem o
que desejam ler. Sem imposições e muito menos vigilância e censura.
Na última edição da pesquisa de Retratos da Leitura no Brasil
os professores aparecem como principais incentivadores do livro,
ultrapassando em influência os pais. O que diria?
O grande problema é que a maioria das famílias é de não leitores. O
contato com os livros não aparece em casa, tanto por essa razão como
também por questões econômicas. Livros são caros, proporcionalmente ao
nível de renda dos brasileiros. Programas como o “Agentes de leitura”,
que vai às casas para trabalhar com as famílias a questão da leitura,
levam livros e indicam as bibliotecas. É uma possibilidade.
Em seu livro O Brasil pode ser um país de leitores? o senhor
fala do papel das religiões na difusão da leitura. Continua pensado
assim?
Historicamente, os países do protestantismo clássico se beneficiaram
da doutrina que dá aos fiéis o contato direto com a divindade, no qual a
leitura da Bíblia assumia um papel de importância. A Igreja Católica,
ao contrário, sempre acreditou nos intermediários. A primeira tradução
da Bíblia em português só aconteceu em meados do século 19. Entretanto,
hoje, os fundamentalistas evangélicos aqui no Brasil assumem esse papel
de intermediação. A compra de Bíblias é o maior fenômeno editorial do
Brasil – e do mundo – mas daí a dizer que a Bíblia é lida vai um grande
passo. Hoje não acredito que qualquer religião contribua positivamente
para a leitura e a ilustração, e aí estão os fundamentalistas negando a
ciência e a evolução.
Podemos pensar em um índice de desenvolvimento a partir da leitura?
Basta ver a quantidade de bibliotecas e os índices de leituras dos
países avançados econômica e socialmente. Só nos EUA existem quase 200
mil bibliotecas públicas. Na Europa Ocidental – França, Inglaterra,
Itália e mesmo a Espanha e Portugal – a questão do acesso aos livros é
considerado de importância estratégica. No Brasil, quando existem, as
bibliotecas geralmente estão no centro que, quando não degradado, ainda é
o reduto das elites.