Rita Pimenta
Um em cada cinco
europeus tem dificuldade em ler o mundo. Frase escolhida para título de
um relatório sobre literacia na União Europeia. E a princesa Laurentien
da Holanda, que liderou os peritos, não se conforma. "É preciso agir
já", diz. Os europeus de que se fala têm 15 anos.
Na
Holanda, 10 por cento da população têm problemas de iliteracia
funcional. Isto é, baixo desempenho na leitura e na escrita, o que
impede uma participação activa na sociedade. "Não se esperaria este tipo
de problemas num país como a Holanda, pois não?", diz a princesa
Laurentien, que veio a Lisboa para a VI Conferência Internacional do
Plano Nacional de Leitura.
Empenhada em provar que a iliteracia
não é "um exclusivo dos países em desenvolvimento", Laurentien van
Oranje diz que "a Europa precisa de acordar para este problema". Por
isso, dirigiu o Grupo de Peritos de Alto Nível sobre Literacia da
Comissão Europeia que fez o relatório. Um em cada cinco europeus tem
dificuldade em ler o mundo (publicado em Setembro) e apresentou-o no
final da semana passada aos ministros da Educação da UE, no Chipre.
Antes,
em Portugal, teve oportunidade de o mostrar a Nuno Crato e, durante a
sua comunicação na Gulbenkian, acabou por provocar risos na plateia ao
sugerir ao ministro da Educação: "Diga ao seu colega das Finanças que
investir na literacia compensa. Falem disso quando forem de férias
juntos." Isto porque a princesa Laurentien acredita que, "mobilizando os
diferentes ministros para o assunto e pondo a literacia no centro de
todas as políticas, o problema se resolverá mais facilmente".
Lembra
que "é a primeira vez que a literacia é analisada a nível europeu desta
forma e que a Europa tem muitas políticas segmentadas que, por não
contemplarem a questão, não vão conseguir alcançar os objectivos". E dá
ao PÚBLICO dois exemplos: o combate à pobreza ("se não se tiver
competência para ler e escrever, torna-se quase impossível sair da sua
espiral") e o investimento no digital ("não haverá pessoas conectadas se
não souberem ler bem nem escrever"). Reforça a ideia de que este
relatório é "um sinal de alerta". Ou seja: "Acordai." Segundo
Laurentien, temos de encontrar caminhos para chegar a estas pessoas e
descobrir o que precisam. Depois, há que insistir em argumentos
adequados para as convencer a superarem-se e a colaborarem no seu
próprio crescimento.
Mas os governos desejam mesmo uma população
informada e exigente? "Todos os discursos dizem: 'Queremos uma Europa
competitiva e inovadora'. Não podemos consegui-lo sem ser com base no
conhecimento, no saber", disse ao PÚBLICO na véspera da conferência.
"Nós falámos com os diferentes países da União e todos nos revelaram que
não se tinham apercebido da importância da literacia. Há dez anos que
trabalho sobre o assunto e foi muito difícil pô-lo na agenda política.
Na Holanda, já conseguimos. Tem de ser passo a passo."
Mesmo
quando os governos estão obcecados com o défice, o PIB, as dívidas?
"Temos de fazer com que entendam que a ideia não é investir em política
social 'em vez de' na literacia ou em políticas educativas 'em vez de'
na literacia. A literacia é um componente de todas as áreas e tem de
atravessar as diferentes políticas." Empresas, empregadores e outros
actores sociais ficarão a ganhar: "Os empregadores ficarão com
trabalhadores mais motivados, mais saudáveis, que faltam menos e são
mais atentos à segurança. Sabemos que é assim. E precisamos de
conquistar as empresas para a causa da literacia. Continua a ser o
dinheiro a mover o mundo".
A influência de Laurentien
multiplica-se em diversas actividades e instituições. Em 2004, criou a
Fundação Ler e Escrever dos Países Baixos. Em 2009, tornou-se enviada
especial da UNESCO da Literacia para o Desenvolvimento e foi patrona de
Amesterdão Capital Mundial do Livro. É também presidente da Fundação
Cultural Europeia e deu "uma grande ajuda no início do Plano Nacional de
Leitura" português, lembrou Isabel Alçada, a primeira comissária,
substituída entretanto por Fernando Pinto do Amaral.
Mas o que
faz uma princesa empenhar-se tanto no combate à iliteracia? "Eu não
mudei por me ter tornado princesa, por me ter casado com um príncipe
[príncipe Constantino]. Sou a mesma pessoa que era antes, só que tenho
mais responsabilidade. A de ser figura pública."
Laurentien, com
apelido de solteira Brinkhorst, é formada em Ciências Políticas pela
Universidade de Londres, fez mestrado em Jornalismo na Universidade da
Califórnia e trabalhou na CNN.
Uma experiência pessoal dura, de
"isolamento" e "exclusão", na juventude terá ampliado a sua
sensibilidade para situações semelhantes às que sentem as pessoas "que
não sabem ler o mundo". Foi assim: "Quando tinha 16 anos, fui para o
Japão com os meus pais. Saí de um sistema holandês para um sistema
francês e não sabia pronunciar uma única palavra. Foi muito difícil não
conseguir comunicar com os meus colegas na escola, que também não
estavam muito interessados em entender-me. Senti-me muito isolada. Não
tive pena de mim própria, mas foi uma experiência muito forte."
A
partir de então, fez tudo o que podia para que "toda a gente se
sentisse incluída". E agora pode mais. "O desconhecimento de uma língua
leva uma pessoa a sentir-se muito só e infeliz. O mesmo se passa com
quem não sabe ler ou lê mal. Tem vergonha, esconde-se, torna-se insegura
e desconfiada. Não quero isso para ninguém."
Ler pode ser uma chave
Outra
história pessoal: "Alguém muito próximo de mim admitiu, há dois anos,
que não conseguia ler em condições. Sentia-se tão triste que, ao
revelá-lo, se desfez em lágrimas. Eu conheço-a há anos e nunca
desconfiei."
A princesa Laurentien não tem dúvidas de que "ler e
escrever não são apenas competências técnicas que se aprendem e pronto",
são "a chave para os cidadãos sentirem que fazem parte da sociedade".
Por isso continua a empenhar-se tanto. "Se de alguma forma conseguirmos
passar-lhes o sentimento de que realmente importam, a sua confiança
aumentará e passarão a acreditar que é possível. É isso que quero para
toda a gente. Confiança e capacidade de acreditar. Mesmo do ponto de
vista estratégico e político, fazem-se imensos progressos assim."
Mas
não será fácil convencer um miúdo de que ler e escrever é importante e
que o conhecimento é precioso quando este vê a profissão dos pais,
professores ou jornalistas, por exemplo, ser completamente
desvalorizada. "O que se pode dizer a esse miúdo é que, queira ele ser
bombeiro, operário numa fábrica ou ter qualquer outra profissão, será
sempre mais fácil conseguilo se dominar a palavra escrita. Tenho
consciência da situação difícil que se atravessa, mas não podemos
desistir. No momento em que começarmos a desistir da educação, estamos
perdidos. A palavra escrita é central nas sociedades actuais."
Olhar
a literacia a partir do berço é o caminho e já se sabe que se deve
começar logo por aí. Mas há equívocos. "Os programas de leitura
dirigem-se quase sempre para as crianças e no pressuposto de que haverá
um adulto que lhes irá ler uma história ao deitar, por exemplo. No
entanto, muitas vezes há uma percentagem elevada de adultos que não
conseguem ler para as crianças. E o programa vai por água abaixo",
conclui.
A justificação para a Europa se ter deixado chegar a
estes níveis "inesperados" de iliteracia encontra-a na excessiva
confiança que se depositou nos sistemas: "Nós pensámos que, tendo tudo a
funcionar, como o acesso alargado à educação, os infantários, as
creches, as escolas, os professores qualificados, o trabalho estava
feito. Mas enganámo-nos." Uma série de aspectos importantes foram
ignorados: "Não pensámos em qualidade, não pensámos no que fazer com
culturas diferentes. Tomámos tudo por garantido. E criámos um tabu: as
pessoas que começaram a ter estes problemas não falavam disso. Pensavam
que eram as únicas e foram-se escondendo. Temos de acordar a Europa e
derrubar esse tabu."
O poder das crianças
A terminar o
encontro com o PÚBLICO, a princesa Laurentien da Holanda quer falar
sobre o seu livro para crianças Mr. Finney e o Mundo de Pernas para o Ar
(ilustração de Sieb Posthuma, edição da Esfera do Caos). E falou. "Se
me tivesse perguntado o que espero do papel de Mr. Finney em Portugal,
ter-lheia dito que espero que motive as crianças a conversar sobre
problemas ambientais com os pais. Acredito no poder do discurso das
crianças, é muito coerente e eficaz. Elas vão obrigar os pais a verem-se
ao espelho e a questionarem-se."
Também quer levar este diálogo
para as escolas, por isso visitou a Escola Francisco Arruda, em Lisboa.
"Não se pode ensinar apenas como funciona a Natureza. Mr. Finney
questiona mais do que explica." Conta ainda que fez um pacto com os
alunos que conheceu. "Pedi-lhes que, da próxima vez que vissem lixo no
chão, o apanhassem. Selámos o acordo com um aperto de mão. E eles
comprometeram-se a cumpri-lo."
Nuno Crato também se comprometeu a, nas próximas férias, mostrar o relatório a Vítor Gaspar.
Fonte: Jornal "Público"
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