Marta
Morais da Costa
é especialista em leitura, professora da Universidade Federal
do Paraná, integrante da Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio e autora, entre outros,
do livro Mapas do mundo. Vive em Curitiba (PR).
Já tratei de
leitura em muitos textos, já falei para algumas plateias, já tentei esclarecer
algumas conclusões que o trabalho com a formação de leitores acumulou em meu
currículo. Posso afirmar, com segurança, que obtive alguns resultados positivos
no convencimento da importância da leitura para as pessoas e para o grupo
social em que atuam. Em outras ocasiões, a resposta não foi tão estimulante
assim.
Professores me
consideraram idealista demais, crianças me consideraram uma avó “se achante”,
colegas de universidades não hesitaram em me denominar “especialista em
leitura” — a mim, que sei que nada sei, verdade aprendida com o filósofo
Sócrates —, avaliadores de meus livros julgaram-nos imperfeitos, equipes de
editoras acreditam que posso prestar alguma consultoria de valor no quesito leitura.
Como insegurança não é a mais perfeita de minhas qualidades pessoais, considero
que julgamentos tão divergentes não me causaram maiores traumas profissionais.
Em todo caso,
como não desejo, de forma alguma, motivar uma avaliação negativa de meu texto
nos leitores deste espaço, quero começar declarando algumas posições
ético-político-científicas a respeito da leitura. Como muitas pessoas de valor
já o disseram — e com elas eu concordo — a leitura vai além da alfabetização, da
capacidade de identificar palavras ou frases. A leitura tem a ver com
interpretação, com a compreensão de frases e textos organizados (habilidade indispensável)
e a compreensão das entrelinhas, presentes em qualquer texto, e que requerem a
participação ativa do leitor.
As palavras
dançam diferentes ritmos de acordo com os diferentes pares das contradanças textuais.
O significado tem o dom de alterar-se dependendo dos contextos em que palavras
e frases se situam. E quem vai buscar uma determinada coerência nessa flutuação
semântica é o leitor. Portanto, ler não é reconhecer o código linguístico; ler
é compreender contextos textuais, é escolher, entre os sentidos possíveis de um
texto, aquele que para o leitor apresenta alguma coerência. Por extensão, interpretar
não é estabelecer um sentido único, ou mais nocivo ainda, reproduzir o pensamento
expresso pela maioria dos leitores.
Também
esclareço que leitura rima perfeitamente com literatura; mas, para mim,
acompanhando Drummond, a rima não é a solução. Todos nós lemos textos dos mais
diferentes gêneros diariamente em nossa vida social e individual (cartazes,
folhetos, embalagens, a diversidade textual dos jornais e revistas, as
mensagens nas redes sociais, páginas de livros os mais variados e muitos outros).
Também não nos restringimos a lidar com a linguagem exclusivamente verbal e
somos envolvidos pelo visual, pelo auditivo, por suas combinações e diferentes
suportes (computador, cinema, televisão). Enfim, quando eu tratar de leitura,
não estou me restringindo aos livros de literatura. Essa é uma confusão frequente:
pergunte a alguém se ele gosta de ler e poderá ouvir como resposta: “Gosto,
sim, mas não tenho tempo — ou interesse — para ler romance”. Pergunte a outra
pessoa que livros leu recentemente e ela pensará de imediato que você quer
saber sobre a leitura da literatura. E pode, numa caricatura, responder: “Não
perco meu tempo com histórias que não existem — ou não servem para nada”. Vou
falar de leitura em sentido amplo, mas paradoxalmente preciso saber ler textos.
Sem distinção de gêneros textuais.
Fui muitas
vezes surpreendida — e interrompida — quando lia em filas ou salas de espera por
pessoas bem intencionadas que entendiam que, se eu estava lendo um livro, é
porque estava com problemas, entre eles o da solidão. Para me fazer companhia e
me tirar da depressão, elas se propunham a interromper minha leitura sedutora. Como
provavelmente não eram leitoras, elas não entendiam que ler não é um ato
solitário ou fruto da solidão: o leitor está sempre acompanhado, não apenas do
autor do texto que lê, mas de todos os leitores desse mesmo texto que o antecederam;
também de todos os escritores que foram lidos para que o autor do texto
presente pudesse escrever o que escreveu. Em suma, a cadeia de autores e
leitores remonta a passados remotos e forma uma “trança de gente”, bela imagem criada
por Ana Maria Machado. Antes de tudo, ler é uma ação solidária de integração na
história da cultura. Ao ler, estou só fisicamente; mas mental, imaginária e
intelectualmente, estou bem (ou mal) acompanhado. Por isso, antes de
interromper, com boas intenções, a leitura de alguém embevecido, pense que pode
estar cortando — temporariamente — o fio humano que tece a história da cultura.
Esclarecidas
essas três linhas de compreensão, a saber, leitura não é ação exclusiva para a literatura;
ler não é apenas reproduzir um texto, mas interpretá-lo, compreendê-lo; ler, é
compartilhar e conviver com a história e a cultura, vou verificar como esses
princípios podem orientar a formação de leitores. Convém lembrar que para
desenvolver um bom trabalho de criação e formação de leitores é preciso
acreditar que a leitura representa um requisito indispensável e irrecusável
para o crescimento pessoal e profissional e para o desenvolvimento de um país
em todos os setores de atuação da sociedade que lhe dá existência.
A necessidade de mediadores
Na origem da
história de cada leitor está um mediador. Seja um parente (pais, avós, tios, irmãos),
um amigo, um professor, um religioso, um jornalista, em qualquer espécie de
interação social — conversas, aulas, saraus, pregações, filmes, mídia impressa.
Pense comigo, leitor, nas possíveis situações em que pode nascer um leitor. A
audição de um disquinho de histórias infantis, objeto do passado. Um livro
eletrônico infantil ou de pano ou de plástico, objetos do presente. Uma
história sussurrada no momento da chegada do sono, na voz carinhosa de quem se
quer bem. A fala do amigo que se admira ou do grupo em que se busca a inclusão.
Um comentário em roda de conversa sobre assunto científico ou curiosidade
histórica. Em todos eles, o leitor pode estar ali, ainda desconhecido para ele
mesmo, mas já apto a absorver o encantamento e a informação, a considerá-los
valiosos. É o passo inicial para viver o desejo de reencontrá-los nos mais
diversos objetos de leitura. Nem sempre o mediador (amigos, pais,
professores...) precisa ter qualificação pedagógica ou cientifica, mas é
imprescindível que ele desempenhe sua função com entusiasmo de quem foi afetado
pelo assunto, pelo livro, pelo texto.
Imagine que
uma pessoa deseja convencer um amigo a assistir a um filme e para tanto faz um
relato aos tropeços, sem emoção, monótono. Mesmo um filme bom não resiste a uma
apresentação medíocre. No entanto, um filme ruim pode ser embelezado por uma
retórica emocionada. Sem deixar de ser um filme ruim. Uma entrada segura para o
mundo da leitura pode estar numa mediação de qualidade. A vida do leitor em seu
nascimento é, como a vida em geral, também um espaço-tempo de contradições.
Reagimos ao ruim, ao mal feito, à imperícia, buscando em outras fontes a
perfeição. Quem não tem livros em casa, procura entre as estantes da
biblioteca. Quem não teve uma avó que lhe contasse histórias, vai em busca das
crianças que a tiveram. Quem não ouviu a discussão sobre um assunto que lhe
interesse, pergunta, pesquisa, incomoda (se) até encontrar quem ou o quê sacie
sua curiosidade. Os textos e livros interessam porque preenchem faltas e lacunas
e matam a sede de respostas.
A pluralidade da leitura
Leitores são
como a vida: histórias diversificadas, ora cômicas, ora trágicas, ora
monótonas, ora carregadas de aventuras. Analisando o leitor ou a leitora que
somos, constatamos com facilidade o quanto somos volúveis. Gostamos hoje do que
acharemos tedioso amanhã. Colocamos valor no livro ou no texto que no futuro poderemos
considerar medíocre, equivocado, dispensável. Tratamos, na leitura do presente,
de forma diferenciada e em categorias de importância o livro da moda, o ensaio
filosófico (histórico, médico, jurídico, etc.), o clássico da literatura, os
quadrinhos, a obra gastronômica, o guia de viagens, o jornal. Na verdade mais
elementar da leitura, somos, cada um de nós, muitos leitores. Iniciantes nos
manuais de uso da tecnologia, doutores nos assuntos que nos afetam
profundamente, aprendizes nos temas que queremos dominar, satisfeitos e
relaxados com as obras de fácil leitura e assim por diante. Subimos e descemos os
degraus das categorias de leitores com rapidez e alguma facilidade.
O leitor, pra
valer, é ao mesmo tempo como o malandro oficial de Chico Buarque — está na
coluna social, deseja ser malandro federal, tem gravata e capital — e como o
malandro pra valer, que tem mulher e filhos, mora longe e “chacoalha no trem da
Central”. Assim, o leitor das estatísticas, genérico, impessoal, badalado ou execrado,
sob domínio das classificações universais e objeto das políticas empresariais
do livro, não é o único que nos habita. Somos, no exercício da leitura,
“trezentos ou trezentos e cinquenta”, como Mário de Andrade se definia.
Os infinitos acervos
Essa multiplicidade permite
compreender por que as portas de entrada da leitura são muitas e, por vezes,
surpreendentes. Bruxos, vampiros, cabanas, números, fórmulas, imagens, sons
podem estar na fonte primeira da sede saciada. O perigo não está nessa fonte,
está, sim, em converter a fonte em único lugar onde se pode beber. Há lagos,
rios, corredeiras, cascatas e oceanos, em que se apresentam e despenham as
águas da leitura. Para beber, para banhar-se, para afogar-se, para aceitar ou
recusar. O leitor pode viver sua vida leitora no mesmo lago, mas jamais compreenderá
a força do oceano. Pode ler exclusivamente quadrinhos a vida inteira, mas
perderá as imagens incompletas dos grandes romances. Pode ler exclusivamente
textos científicos, mas perderá o movimento intenso e prismático dos quadrinhos
e a força imaginária da literatura. Poderá ler exclusivamente a ficção, mas não
aprenderá a intensa liberdade da poesia e o rigor especulativo do discurso
histórico. O escritor japonês Haruki Murakami afirma: “Se você só lê os livros
que todo mundo está lendo, você só pode pensar o que todo mundo está pensando”
. Os infinitos acervos Essa multiplicidade permite
compreender por que as portas de entrada da leitura são muitas e, por vezes,
surpreendentes. Bruxos, vampiros, cabanas, números, fórmulas, imagens, sons podem
estar na fonte primeira da sede saciada. O perigo não está nessa fonte, está,
sim, em converter a fonte em único lugar onde se pode beber. Há lagos, rios, corredeiras, cascatas e oceanos, em que se
apresentam e despenham as águas da leitura. Para beber, para banhar-se, para
afogar-se, para aceitar ou recusar. O leitor pode viver sua vida leitora no
mesmo lago, mas jamais compreenderá a força do oceano. Pode ler exclusivamente quadrinhos
a vida inteira, mas perderá as imagens incompletas dos grandes romances. Pode ler
exclusivamente textos científicos, mas perderá o movimento intenso e prismático
dos quadrinhos e a força imaginária da literatura. Poderá ler exclusivamente a
ficção, mas não aprenderá a intensa liberdade da poesia e o rigor especulativo do
discurso histórico. O escritor japonês Haruki Murakami afirma: “Se você só lê
os livros que todo mundo está lendo, você só pode pensar o que todo mundo está
pensando”.
Formar
leitores é oferecer às pessoas a oportunidade de descobrirem-se múltiplas na multiplicidade
incontrolável dos textos.
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