Uma palestra que explica porque usar nossas imaginações e
providenciar para que outros utilizem as suas, é uma obrigação de todos
os cidadãos
pelo The Guardian, em 15/10/2013
É importante para as pessoas dizerem de que lado elas estão e porque,
e se elas podem ou não ser tendenciosas. Um tipo de declaração de
interesse dos membros. Então eu estarei conversando com vocês sobre
leitura. Direi à vocês que as bibliotecas são importantes. Vou sugerir
que ler ficção, que ler por prazer, é uma das coisas mais importantes
que alguém pode fazer. Vou fazer um apelo apaixonado para que as pessoas
entendam o que as bibliotecas e os bibliotecários são e para que
preservem ambos.
E eu sou óbvia e enormemente tendencioso: eu sou um escritor, muitas
vezes um autor de ficção. Escrevo para crianças e adultos. Por cerca de
30 anos eu tenho ganhado a minha vida através das minhas palavras,
principalmente por inventar as coisas e escrevê-las. Obviamente está em
meu interesse que as pessoas leiam, que elas leiam ficção, que
bibliotecas e bibliotecários existam para nutrir amor pela leitura e
lugares onde a leitura possa ocorrer.
Então sou tendencioso como escritor. Mas eu sou muito, muito mais
tendencioso como leitor. E eu sou ainda mais tendencioso enquanto
cidadão britânico.
E estou aqui dando essa palestra hoje a noite sob os auspícios da Reading Agency:
uma instituição filantrópica cuja missão é dar a todos as mesmas
oportunidades na vida, ajudando as pessoas a se tornarem leitores
entusiasmados e confiantes. Que apoia programas de alfabetização,
bibliotecas e indivíduos e arbitrária e abertamente incentiva o ato da
leitura. Porque, eles nos dizem, tudo muda quando lemos.
E é sobre essa mudança e este ato de leitura que quero falar hoje a
noite. Eu quero falar sobre o que a leitura faz. O porquê de ela ser
boa.
Uma vez eu estava em Nova York e ouvi uma palestra sobre a construção
de prisões particulares – uma ampla indústria em crescimento nos
Estados Unidos. A indústria de prisões precisa planejar o seu futuro
crescimento – quantas celas precisarão? Quantos prisioneiros teremos
daqui 15 anos? E eles descobriram que poderiam prever isso muito
facilmente, usando um algoritmo bastante simples, baseado em perguntar a
porcentagem de crianças de 10 e 11 anos que não conseguiam ler. E
certamente não conseguiam ler por prazer.
Não é um pra um: você não pode dizer que uma sociedade alfabetizada
não tenha criminalidade. Mas existem correlações bastante reais.
E eu acho que algumas destas correlações, a mais simples, vem de algo muito simples. As pessoas alfabetizadas leem ficção.
A ficção tem duas utilidades. Primeiramente, é uma droga que é uma
porta para leituras. O desejo de saber o que acontece em seguida, de
querer virar a página, a necessidade de continuar, mesmo que seja
difícil, porque alguém está em perigo e você precisa saber como tudo vai
acabar… Este é um desejo muito real. E te força a aprender novos
mundos, a pensar novos pensamentos, a continuar. Descobrir que a leitura
por si é prazerosa. Uma vez que você aprende isso, você está no caminho
para ler de tudo. E a leitura é a chave. Houve um burburinho brevemente
há alguns anos atrás sobre a idéia de que estávamos vivendo em um mundo
pós-alfabetizado, no qual a habilidade de fazer sentido através de
palavras escritas estava de alguma forma redundante, mas esses dias
acabaram: as palavras são mais importantes do que jamais foram: nós
navegamos o mundo com palavras, e uma vez que o mundo desliza para a
web, precisamos seguir, comunicar e compreender o que estamos lendo. As
pessoas que não podem entender umas às outras não podem trocar idéias,
não podem se comunicar e apenas programas de tradução vão tão longe.
A forma mais simples de ter certeza de que educamos crianças
alfabetizadas é ensiná-los a ler, e mostrarmos a eles que a leitura é
uma atividade prazerosa. E isso significa, na sua forma mais simples,
encontrar livros que eles gostem, dar a eles acesso a estes livros e
deixar que eles os leiam.
Eu não acho que exista algo como um livro ruim para crianças. Vez e
outra se torna moda entre alguns adultos escolher um subconjunto de
livros para crianças, um gênero, talvez, ou um autor e declará-los
livros ruins, livros que as crianças devem parar de ler. Eu já vi isso
acontecer repetidamente; Enid Blyton foi declarado um autor ruim, RL
Stine também, assim como dúzias de outros. Quadrinhos tem sido acusados
de promover o analfabetismo.
É tosco. É arrogante e é burro. Não existem autores ruins para
crianças, que as crianças gostem e querem ler e buscar, por que cada
criança é diferente. Eles podem encontrar as histórias que eles
precisam, e eles levam a si mesmos nas histórias. Uma idéia banal e
desgastada não é banal nem desgastada para eles. Esta é a primeira vez
que a criança a encontrou. Não desencoraje uma criança de ler porque
você acha que o que eles estão lendo é errado. A ficção que você não
gosta é uma rota para outros livros que você pode preferir. E nem todo
mundo tem o mesmo gosto que você.
Adultos bem intencionados podem facilmente destruir o amor de uma
criança pela leitura: parar de ler pra eles o que eles gostam, ou dar a
eles livros ‘chatos mas que valem a pena’ que você gosta, os
equivalentes “melhorados” da literatura Vitoriana do século XXI. Você
acabará com uma geração convencida de que ler não é legal e pior ainda,
desagradável.
Precisamos que nossas crianças entrem na escada da leitura: qualquer
coisa que eles gostarem de ler irá movê-las, degrau por degrau, à
alfabetização. (Além disso, não faça o que eu fiz quando a minha filha
de 11 anos estava gostando de ler RL Stine, que foi pegar uma cópia de
Carrie do Stephen King e dizer que se você gosta deste, adorará isto!
Holly não leu nada além de histórias seguras de colonos em pradarias
pelo resto de sua adolescência e até hoje me dá olhares tortos quando o
nome de Stephen King é mencionado).
E a segunda coisa que a ficção faz é construir empatia. Quando você
assiste TV ou vê um filme, você está olhando para coisas acontecendo a
outras pessoas. Ficção de prosa é algo que você constrói a partir de 26
letras e um punhado de sinais de pontuação, e você, você sozinho, usando
a sua imaginação, cria um mundo e o povoa e olha através dos olhos de
outros. Você sente coisas, visita lugares e mundos que você jamais
conheceria de outro modo. Você aprende que qualquer outra pessoa lá fora
é um eu, também. Você está sendo outra pessoa e quando você volta ao
seu próprio mundo, você estará levemente transformado.
Empatia é uma ferramenta para tornar pessoas em grupos, que nos
permite que funcionemos como mais do que indivíduos auto-obcecados.
Você também está descobrindo algo enquanto lê que é de vital importância para fazer o seu caminho no mundo. E é isto:
O mundo não precisa ser assim. As coisas podem ser diferentes.
Eu estive na China em 2007 na primeira convenção de ficção científica
e fantasia aprovada pelo partido na história da China. E em algum
momento eu tomei um alto oficial de lado e perguntei a ele “Por que? A
ficção científica foi reprovada por tanto tempo. Por que isso mudou?”. É
simples, ele me disse. Os chineses eram brilhantes em fazer coisas se
outras pessoas trouxessem os planos para eles. Mas eles não inovavam e
não inventavam. Eles não imaginavam. Então eles mandaram uma delegação
para os Estados Unidos, para a Apple, para a Microsoft, para o Google, e
eles perguntaram às pessoas de lá que estavam inventando seu próprio
futuro. E eles descobriram que todos eles leram ficção científica quando
eram meninos e meninas. A ficção pode te mostrar um outro mundo. Pode
te levar para um lugar que você nunca esteve. E uma vez que você tenha
visitado outros mundos, como aqueles que comeram a fruta da fada, você
pode nunca mais ficar completamente satisfeito com o mundo no qual você
cresceu. Descontentamento é uma coisa boa: pessoas descontentes podem
modificar e melhorar o mundo, deixá-lo melhor, deixá-lo diferente.E
enquanto ainda estamos nesse assunto, eu gostaria de dizer algumas
palavras sobre escapismo. Eu ouço o termo utilizado por aí como se fosse
uma coisa ruim. Como se ficção “escapista” fosse um ópio barato
utilizado pelos confusos e pelos tolos e pelos desiludidos e a única
ficção que seja válida, para adultos ou crianças é a ficção mimética,
espelhando o pior do mundo em que o leitor ou a leitora se encontra.
Se você estivesse preso em uma situação impossível, em um lugar
desagradável, com pessoas que te quisessem mal, e alguém te oferecesse
um escape temporário, por que você não ia aceitar isso? E ficção
escapista é apenas isso: ficção que abre uma porta, mostra o sol lá
fora, te dá um lugar para ir onde você esteja no controle, esteja com
pessoas com quem você queira estar (e livros são lugares reais, não se
enganem sobre isso); e mais importante, durante o seu escape, livros
também podem te dar conhecimento sobre o mundo e o seu predicamento, te
dar armas, te dar armaduras: coisas reais que você pode levar de volta
para a sua prisão. Habilidades e conhecimento e ferramentas que você
pode utilizar para escapar de verdade.
Outra forma de destruir o amor de uma criança pela leitura, claro, é
se assegurar de que não existam livros de nenhum tipo por perto. E não
dar a elas nenhum lugar para que leiam estes livros. Eu tive sorte. Eu
tive uma biblioteca local excelente enquanto eu cresci. Eu tive o tipo
de pais que podiam ser persuadidos a me deixar na biblioteca no caminho
do trabalho deles nas férias de verão, e o tipo de bibliotecários que
não se importavam que um menino pequeno e desacompanhado ficasse na
biblioteca das crianças todas as manhãs e ficasse mexendo no catálogo de
cartões, procurando por livros com fantasmas ou mágica ou foguetes
neles, procurando por vampiros ou detetives ou bruxas ou fantasias. E
quando eu terminei de ler a biblioteca de crianças eu comecei a de
adultos.
Eles eram ótimos bibliotecários. Eles gostavam de livros e eles
gostavam dos livros que estavam sendo lidos. Eles me ensinaram como
pedir livros das outras bibliotecas em empréstimo inter-bibliotecas.
Eles não eram arrogantes em relação a nada que eu lesse. Eles pareciam
apenas gostar do fato de existir esse menininho de olhos arregalados que
amava ler, e conversariam comigo sobre os livros que eu estava lendo,
achariam pra mim outros livros em uma série, eles ajudariam. Eles me
tratavam como outro leitor – nem mais, nem menos – o que significa que
eles me tratavam com respeito. Eu não estava acostumado a ser tratado
com respeito aos oito anos de idade.
Mas as bibliotecas tem a ver com liberdade. A liberdade de ler, a
liberdade de ideias, a liberdade de comunicação. Elas tem a ver com
educação (que não é um processo que termina no dia que deixamos a escola
ou a universidade), com entretenimento, tem a ver com criar espaços
seguros e com o acesso à informação.
Eu me preocupo que no século XXI as pessoas entendam errado o que são
bibliotecas e qual é o propósito delas. Se você perceber uma biblioteca
como estantes com livros, pode parecer antiquado e datado em um mundo
no qual a maioria, mas não todos, os livros impressos existem
digitalmente. Mas pensar assim é errar o ponto fundamentalmente.
Eu acho que tem a ver com a natureza da informação. A informação tem
valor, e a informação certa tem um enorme valor. Por toda a história
humana, nós vivemos em escassez de informação e ter a informação
desejada era sempre importante, e sempre valia alguma coisa: quando
plantar sementes, onde achar as coisas, mapas e histórias e estórias –
eles eram sempre bons para uma refeição e companhia. Informação era uma
coisa valorosa, e aqueles que a tinham ou podiam obtê-la podiam cobrar
por este serviço.
Nos últimos anos, nos mudamos de uma economia de escassez da
informação para uma dirigida por um excesso de informação. De acordo com
o Eric Schmidt do Google, a cada dois dias agora a raça humana cria
tanta informação quanto criávamos desde o início da civilização até
2003. Isto é cerca de cinco exobytes de dados por dia, para vocês que
mantém a contagem. O desafio se torna não encontrar aquela planta
escassa crescendo no deserto, mas encontrar uma planta específica
crescendo em uma floresta. Precisaremos de ajuda para navegar nesta
informação e achar a coisa que precisamos de verdade.
Bibliotecas são lugares que pessoas vão para obter informação. Livros
são apenas a ponta do iceberg da informação: eles estão lá, e
bibliotecas podem fornecer livros gratuitamente e legalmente. Crianças
estão emprestando livros de bibliotecas hoje mais do que nunca – livros
de todos os tipos: de papel e digital e em áudio. Mas as bibliotecas
também são, por exemplo, lugares onde pessoas que não tem computadores,
que podem não ter conexão à internet, podem ficar online sem pagar nada:
o que é imensamente importante quando a forma que você procura
empregos, se candidata para entrevistas ou aplica para benefícios está
cada vez mais migrando para o ambiente exclusivamente online.
Bibliotecários podem ajudar estas pessoas a navegar neste mundo.
Eu não acredito que todos os livros irão ou devam migrar para as
telas: como Douglas Adams uma vez me falou, mais de 20 anos antes do
Kindle aparecer, um livro físico é como um tubarão. Tubarões são velhos:
existiam tubarões nos oceanos antes dos dinossauros. E a razão de ainda
existirem tubarões é que tubarões são melhores em serem tubarões do que
qualquer outra coisa que exista. Livros físicos são durões, difíceis de
destruir, resistentes à banhos, operam a luz do sol, ficam bem na sua
mão: eles são bons em serem livros, e sempre existirá um lugar para
eles. Eles pertencem às bibliotecas, bem como as bibliotecas já se
tornaram lugares que você pode ir para ter acesso à ebooks, e
audio-livros e DVDs e conteúdo na web.
Uma biblioteca é um lugar que é um repositório de informação e dá a
cada cidadão acesso igualitário a ele. Isso inclui informação sobre
saúde. E informação sobre saúde mental. É um espaço comunitário. É um
lugar de segurança, um refúgio do mundo. É um lugar com bibliotecários.
Como as bibliotecas do futuro serão é algo que deveríamos estar
imaginando agora.
Alfabetização é mais importante do que nunca, nesse mundo de
mensagens e e-mail, um mundo de informação escrita. Precisamos ler e
escrever, precisamos de cidadãos globais que possam ler
confortavelmente, compreender o que estão lendo, entender as nuances e
se fazer entender.
As bibliotecas realmente são os portais para o futuro. É tão
lamentável que, ao redor do mundo, nós observemos autoridades locais
apropriarem-se da oportunidade de fechar bibliotecas como uma maneira
fácil de poupar dinheiro, sem perceber que eles estão roubando do futuro
para serem pagos hoje. Eles estão fechando os portões que deveriam ser
abertos.
De acordo com um estudo recente feito pela Organisation for Economic Cooperation and Development,
a Ingaterra é o “único país onde o grupo de mais idade tem mais
proficiência tanto em alfabetização quanto em capacidade de usar ou
entender as técnicas numéricas da matemática do que o grupo mais jovem,
depois de outros fatores, tais como gênero, perfis sócio-econômicos e
tipo de ocupações levados em consideração”.
Colocando de outro modo, nossas crianças e netos são menos
alfabetizados e menos capazes de utilizar técnicas de matemática do que
nós. Eles são menos capazes de navegar o mundo, de entendê-lo e de
resolver problemas. Eles podem ser mais facilmente enganados e iludidos,
serão menos capazes de mudar o mundo em que se encontram, ser menos
empregáveis. Todas essas coisas. E como um país, a Inglaterra ficará
para trás em relação a outras nações desenvolvidas porque faltará mão de
obra especializada.
Livros são a forma com a qual nós nos comunicamos com os mortos. A
forma que aprendemos lições com aqueles que não estão mais entre nós,
que a humanidade se construiu, progrediu, fez com que o conhecimento
fosse incremental ao invés de algo que precise ser reaprendido, de novo e
de novo. Existem contos que são mais velhos que alguns países, contos
que sobreviveram às culturas e aos prédios nos quais eles foram contados
pela primeira vez.
Eu acho que nós temos responsabilidades com o futuro.
Responsabilidades e obrigações com as crianças, com os adultos que essas
crianças se tornarão, com o mundo que eles habitarão. Todos nós –
enquanto leitores, escritores, cidadãos – temos obrigações. Pensei em
tentar explicitar algumas dessas obrigações aqui.
Eu acredito que temos uma obrigação de ler por prazer, em lugares
públicos e privados. Se lermos por prazer, se outros nos verem lendo,
então nós aprendemos, exercitamos nossas imaginações. Mostramos aos
outros que ler é uma coisa boa.
Temos a obrigação de apoiar bibliotecas. De usar bibliotecas, de
encorajar outras pessoas a utilizarem bibliotecas, de protestar contra o
fechamento de bibliotecas. Se você não valoriza bibliotecas então você
não valoriza informação ou cultura ou sabedoria. Você está silenciando
as vozes do passado e você está prejudicando o futuro.
Temos a obrigação de ler em voz alta para nossas crianças. De ler pra
elas coisas que elas gostem. De ler pra elas histórias das quais já
estamos cansados. Fazer as vozes, fazer com que seja interessante e não
parar de ler pra elas apenas porque elas já aprenderam a ler sozinhas.
Use o tempo de leitura em voz alta para um momento de aproximação, como
um tempo onde não se fique checando o telefone, quando as distrações do
mundo são postas de lado.
Temos a obrigação de usar a linguagem. De nos esforçarmos: descobrir o
que as palavras significam e como empregá-las, nos comunicarmos
claramente, de dizer o que estamos querendo dizer. Não devemos tentar
congelar a linguagem, ou fingir que é uma coisa morta que deve ser
reverenciada, mas devemos usá-la como algo vivo, que flui, que empresta
palavras, que permite que significados e pronúncias mudem com o tempo.
Nós escritores – e especialmente escritores para crianças, mas todos
os escritores – temos uma obrigação com nossos leitores: é a obrigação
de escrever coisas verdadeiras, especialmente importantes quando estamos
criando contos de pessoas que não existem em lugares que nunca
existiram – entender que a verdade não está no que acontece mas no que
ela nos diz sobre quem somos. A ficção é a mentira que diz a verdade,
afinal. Temos a obrigação de não entediar nossos leitores, mas fazê-los
sentir a necessidade de virar as páginas. Uma das melhores curas para um
leitor relutante, afinal, é uma estória que eles não são capazes de
parar de ler. E enquanto nós precisamos contar a nossos leitores coisas
verdadeiras e dar a ele armas e dar a eles armaduras e passar a eles
qualquer sabedoria que recolhemos em nossa curta estadia nesse mundo
verde, nós temos a obrigação de não pregar, não ensinar, não forçar
mensagens e morais pré-digeridas goela abaixo em nossos leitores como
pássaros adultos alimentando seus bebês com vermes pré-mastigados; e nós
temos a obrigação de nunca, em nenhuma circunstância, escrever nada
para crianças que nós mesmos não gostaríamos de ler.
Temos a obrigação de entender e reconhecer que enquanto escritores
para crianças nós estamos fazendo um trabalho importante, porque se nós
estragarmos isso e escrevermos livros chatos que distanciam as crianças
da leitura e de livros, nós estaremos menosprezando o nosso próprio
futuro e diminuindo o deles.
Todos nós – adultos e crianças, escritores e leitores – temos a
obrigação de sonhar acordado. Temos a obrigação de imaginar. É fácil
fingir que ninguém pode mudar coisa alguma, que estamos num mundo no
qual a sociedade é enorme e que o indivíduo é menos que nada: um átomo
numa parede, um grão de arroz num arrozal. Mas a verdade é que
indivíduos mudam o seu próprio mundo de novo e de novo, indivíduos fazem
o futuro e eles fazem isso porque imaginam que as coisas podem ser
diferentes.
Olhe à sua volta: eu falo sério. Pare por um momento e olhe em volta
da sala em que você está. Eu vou dizer algo tão óbvio que a tendência é
que seja esquecido. É isto: que tudo o que você vê, incluindo as
paredes, foi, em algum momento, imaginado. Alguém decidiu que era mais
fácil sentar numa cadeira do que no chão e imaginou a cadeira. Alguém
tinha que imaginar uma forma que eu pudesse falar com vocês em Londres
agora mesmo sem que todos ficássemos tomando uma chuva. Este quarto e as
coisas nele, e todas as outras coisas nesse prédio, esta cidade,
existem porque, de novo e de novo e de novo as pessoas imaginaram
coisas.
Temos a obrigação de fazer com que as coisas sejam belas. Não de
deixar o mundo mais feio do que já encontramos, não de esvaziar os
oceanos, não de deixar nossos problemas para a próxima geração. Temos a
obrigação de limpar tudo o que sujamos, e não deixar nossas crianças com
um mundo que nós desarrumamos, vilipendiamos e aleijamos de forma
míope.
Temos a obrigação de dizer aos nossos políticos o que queremos, votar
contra políticos ou quaisquer partidos que não compreendem o valor da
leitura na criação de cidadãos decentes, que não querem agir para
preservar e proteger o conhecimento e encorajar a alfabetização. Esta
não é uma questão de partidos políticos. Esta é uma questão de
humanidade em comum.
Uma vez perguntaram a Albert Einstein como ele poderia tornar nossas
crianças inteligentes. A resposta dele foi simples e sábia. “Se você
quer que crianças sejam inteligentes”, ele disse, “leiam contos de fadas
para elas. Se você quer que elas sejam mais inteligentes, leia mais
contos de fadas para elas”. Ele entendeu o valor da leitura e da
imaginação. Eu espero que possamos dar às nossas crianças um mundo no
qual elas possam ler, e que leiam para elas, e imaginar e compreender.
• Esta é uma versão editada da palestra do Neil Gaiman para a Reading
Agency, realizada dia 14 de outubro de 2013 (segunda-feira) no Barbican
em Londres. A série anual de palestras da Reading Agency começou em
2012 como uma plataforma para que escritores e pensadores
compartilhassem ideias originais e desafiadoras sobre a leitura e as
bibliotecas.
Fonte: Index-a-Dora
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