Ao longo do tempo os livros assumiram formatos diferentes, foram lidos e escritos de modo diverso
Por Patrícia Mariuzzo
Matéria publicada em 15/09/2010
“Pequenas marcas pretas sobre a folha branca ou caracteres na tela do computador capazes de nos levar ao pranto, abrir nossa mente a novas ideias e entendimentos, inspirar, organizar nossa existência e nos conectar ao universo”; assim o linguista norte-americano Steven Fischer define a escrita. Tão antigas quanto o próprio homem, a escrita e a leitura surgiram para complementar a comunicação oral. O homem de Neandertal [1] e os primeiros Homo sapiens liam entalhes em ossos. A arte rupestre, gravada nas paredes das cavernas da pré-história, era também um tipo de leitura pleno de significado. Leitura e escrita surgiram para comunicar e perpetuar o pensamento humano. Como nos diz Fischer em seu livro História da Leitura (Unesp, 2006), para transformar o pensamento em pedra.
Formas de ler
Pouquíssimas pessoas dominavam a cultura da escrita na Antiguidade. Segundo Fischer, até o século V a.C., a prática de leitura abrangia, na maior parte, registro de contas, embarques de mercadorias e documentos jurídicos. Textos literários existiam em número bastante limitado. Aliás, um dos motivos para textos antigos nos parecerem repetitivos, dispersos e repletos de divagações se deve ao fato de serem a literatura de uma sociedade apoiada no discurso oral e não no texto. A Ilíada e a Odisséia, do século VIII a.C. e atribuídas ao poeta grego Homero, são poemas para serem declamados, e não lidos. Mesmo durante toda a Idade Média, leitura e oralidade conviviam, se chocavam e se entrelaçavam.
Outra diferença reside nos suportes para os textos. Os rolos [2], uma das formas de apresentação dos livros na Antiguidade, determinavam uma relação totalmente diferente com a leitura. Eles tinham que ser desenrolados da esquerda para direita conforme a leitura avançava, deixando o leitor com as duas mãos ocupadas. Liam-se pequenas partes de cada vez e recuar no texto era difícil. Uma questão fundamental, apontada por André Belo no livro História & Livro e Leitura (Autêntica, 2002), era que o rolo tornava impossível escrever apontamentos ao mesmo tempo em que se lia. Por conta disso, muitas vezes a leitura era feita em voz alta e outra pessoa fazia anotações.
Além do rolo, existiram diversos outros suportes para a escrita na Antiguidade. Na Mesopotâmia (região onde hoje fica o Iraque), tabuinhas de argila eram usadas desde o terceiro milênio antes de Cristo. Tecidos, conchas, cerâmica, marfim, folhas de palmeira também já foram utilizados para escrever. Isso sem falar na escrita em pedra, abundante na arquitetura das cidades romanas antigas. “Cada uma dessas diferentes formas de livro implicou diversos modos de escrever e ler. Obrigou ao uso de determinado tipo de instrumento, certa postura corporal, um modo de organizar o texto (ou a imagem), dependendo da textura do suporte ou do seu formato”, enumera André.
O livro, como o conhecemos hoje, apareceu entre os séculos II e IV da Era Cristã. “Era escrito e copiado à mão, era menos portátil do que os livros atuais, mas era já um códice [livro, em latim], isto é, um conjunto de cadernos costurados uns aos outros e encadernados”, afirma André Belo. “Quando o códice se generalizou, ele trouxe consigo novos hábitos intelectuais e posturas corporais. O corpo do leitor ficou mais livre para manusear o livro. A possibilidade de avançar ou recuar livremente, folheando o livro, permitiu comparações ágeis entre seções, contribuindo para o aparecimento da paginação, para a criação de índices e para o estabelecimento de comparações entre as diversas partes da obra”, detalha o historiador. Essa foi, segundo ele, uma das razões pelas quais o novo formato se desenvolveu rapidamente entre as comunidades cristãs. “O códice era muito adaptado à consulta e à pregação do texto sagrado, um livro composto de diversos ‘livros’, exigindo saltos frequentes entre eles”, complementa.
A grande difusão
Por volta de 1439 [3], o inventor alemão Johannes Gutenberg cria a prensa mecânica com tipos móveis, modificando radicalmente a forma de publicar livros. O primeiro livro impresso por ele foi a Bíblia. Boa parte dos estudiosos do livro e da leitura aponta a invenção da imprensa como a grande revolução cultural nos meios de comunicação e na leitura, multiplicando o número de textos em circulação e tornando os livros mais baratos e acessíveis. Em um livro clássico nos estudos de comunicação – A Galáxia de Gutenberg (1962) - o pesquisador canadense Marshal Mcluhan defende que a invenção da imprensa constituiu uma ruptura fundamental na história da cultura, dando origem a um novo modo de percepção – a do homem tipográfico, no qual o sentido da visão substitui a voz na comunicação. Para o historiador francês Roger Chartier, no entanto, o que permanece no livro depois de Gutenberg é mais importante do que o que muda: características herdadas do livro manuscrito, como a estrutura de páginas, colunas e linhas, capítulos etc. não se modificam. Para ele, a impressão de Gutenberg não cria um objeto novo nem estabelece uma nova relação com a leitura, como aconteceu com o aparecimento do códice.
Mais ou menos revolucionário, o livro impresso consagrou-se como a principal forma de transmitir textos. Uma das consequências da invenção da imprensa, entre tantas, foi a capacidade de preservação dos registros escritos. Os manuscritos, muitas vezes edições únicas, eram mais vulneráveis. Segundo André Belo, a produção de vários exemplares de um mesmo livro criou, pela primeira vez, a sensação de uma vitória sobre o tempo e o espaço. A partir dali tudo que se criava poderia ser escrito, reescrito e dado à posteridade.
Súditos da palavra
A imprensa conhece outra grande modificação no século XIX, quando surge a tipografia mecânica a vapor. Seu impacto maior, no entanto, não foi nos livros, mas na produção de grandes tiragens de jornais e outras publicações de baixo custo, entre elas os livros de bolso. Tais mudanças implicam, por sua vez, o aumento do número de leitores e os tipos de gêneros publicados. É nessa época que surgem os subgêneros literários: romance policial, ficção científica, terror, tentando suprir as demandas de uma sociedade que se transforma pela industrialização. É também nesse período que surge a literatura infantil, que se tornaria, no final do século XX, o grande filão do mercado editorial. Para André Belo, tamanha difusão não acontece unicamente por motivos técnicos. Existe um conjunto de motivos culturais e econômicos envolvidos nas mudanças, entre eles o desenvolvimento da escolarização. “A leitura transcende a página impressa da Bíblia, dos hinos, dos romances, das revistas ou dos jornais, passando a fazer parte de sinais das ruas, letreiros de lojas, rótulos de produtos, propagandas. Para onde quer que se olhasse, havia algo para ler”, explica.
O fim do livro?
Com a popularização dos jornais no século XIX, vários autores acreditavam que o livro seria substituído pelos periódicos, mais baratos e acessíveis ao grande público. Diante da popularização da internet, dos jornais e livros em formato eletrônico, a preocupação com o futuro do livro cresce novamente. André Belo não vê oposição imediata entre computador e internet e livro e leitura. “Já se fala há várias décadas na ‘morte do livro’, à qual estaria associada uma crise da leitura. Mas isso não pode ser entendido no sentido literal. Não só a produção de livros em papel no mundo aumentou muito ao longo da segunda metade do século XX — o que deve continuar a ocorrer —, como aumentou o número de textos impressos, sob múltiplas formas, e o de leitores em todos os países”, diz ele. “O temor do desaparecimento do livro exprime mais uma forma de angústia difusa — que em geral vem das pessoas que leem mais do que a média e que vivem em países onde se lê mais do que a média — sobre as possibilidades de transmissão do saber letrado, considerado clássico, às novas gerações. Essa angústia é compreensível porque vivemos num tempo acelerado, de mudanças tecnológicas vertiginosas, que afetam toda a economia da edição, do livro ao jornal, e afetam também os modos concretos como lemos e recebemos a informação”, sentencia.
Nesse sentido, uma das mudanças importantes apontadas pelo pesquisador é a perda da influência do saber transmitido pelo livro, principalmente a partir da segunda metade do século XX. “Há outra maneira de considerar a ‘morte do livro’, que é vê-la em um sentido mais metafórico, em que o livro é como um símbolo de uma ordem do saber, ao qual corresponderia uma leitura mais lenta e mais protegida de interferências exteriores. Acredito que aí a discussão é mais interessante porque menos concentrada na nostalgia do livro como objeto”, finaliza.
Leitura como espaço de poder
Nem sempre a leitura foi vista como algo positivo. Houve momentos da história em que se tentou afastar as pessoas da leitura. Nos séculos XV e XVI, logo após a invenção da imprensa, proliferam a criação de instituições de censura prévia e a elaboração de listas de livros proibidos. Segundo Roger Chartier, no livro A aventura do livro: do leitor ao navegador (Unesp, 1999), durante muito tempo a leitura das mulheres e das crianças foi controlada. Pode-se comparar essa obsessão com o medo que a Igreja sentia diante da leitura da Bíblia por todos os cristãos. Conclui-se daí que a difusão dos livros promovida pela imprensa não teve como efeito imediato tornar a leitura uma prática solitária como conhecemos hoje. Bibliotecários, padres e professores intermediavam o acesso aos livros, procurando desviar o público de certas obras, como os romances ou os livros de quadrinhos.
Em artigo no livro Leitura, História e História da Leitura (ALB/Fapesp/Mercado das Letras, 1999), Márcia Abreu, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, explica que, em certa altura do século XVIII, imaginou-se que a leitura oferecesse perigo para a saúde. Por conta do esforço continuado, ela prejudicaria a vista, o cérebro, os nervos e o estômago. “Maior cuidado inspiravam as leituras que apresentavam ‘perigos para a alma, aquelas que colocavam em risco a moral ao divulgarem ideias falsas, estimulando demasiadamente a imaginação e combatendo a honestidade e o pudor’”, afirma a pesquisadora. Os romances pareciam ser os mais ameaçadores. Há também a questão do poder político. De acordo com Márcia, ler e ter acesso à instrução escolar poderia gerar descontentamento e insubordinações entre os pobres. “A leitura não é prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder”, conclui.
Saiba mais:
A aventura do livro: do leitor ao navegador. Roger Chartier. UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999.
História & livro e leitura. André Belo. Autêntica, 2002.
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[1] O Homem de Neadertal é classificado pela maioria dos antropólogos como uma subespécie do Homo sapiens (Homo sapiens neanderthalensis). Sua provável existência certamente compreendeu o período entre 70.000 e 40.000 anos atrás, habitando a Europa e a Ásia. Contudo há quem considere que essa subespécie não é o ancestral direto do homem moderno, mas uma subespécie que se extinguiu há cerca de 40 mil anos, certamente em razão de eventos de competição com o homem atual (Homo sapiens), surgido por volta de 90 mil anos, a partir do Homo erectus. A partir da descoberta de fósseis como o Homo sapiens de Steinheim e o Homo sapiens Rodesiano, cujos cérebros possuíam 83% do volume do cérebro atual; podemos estimar que os primeiros Homo sapiens surgiram há mais de 300.000 anos. Eram caçadores hábeis, cozinhavam carne, usavam roupas de pele de animais e construíam lanças e cabanas. (
http://www.brasilescola.com/).
[2] Os livros eram guardados na forma de rolos na famosa Biblioteca de Alexandria, considerada uma das maiores referências culturais da Antiguidade. Foi organizada no início do século III a.C., durante o reinado de Ptolomeu II, no Egito. Estima-se que a Biblioteca tenha abrigado mais de 500 mil rolos, o que representava um número muito menos significativo, já que uma obra podia ocupar, sozinha, dez, vinte, até 30 rolos.
[3] Para a imprensa se constituir em uma revolução, ela dependeu de muitos fatores culturais e econômicos, como, por exemplo, da disponibilidade de papel. Um fato que atesta isso é que na China, no século XI, e na Coreia, no século XIII, os caracteres móveis já eram conhecidos, feitos de terracota ou de metal. No entanto, por razões políticas e culturais, a escala de sua produção era reduzida.