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![Ilustração: Marcos Garuti](http://www.sescsp.org.br/files/artigo/0a018c44-c374-4b38-8173-d515ba4adc5d.jpg)
Sabe-se o quanto a sensibilização para os livros na infância é
importante na formação de adultos leitores. Livros ilustrados,
ficcionais, não ficcionais... As possibilidades são múltiplas. A dica é
explorar títulos diversos e estabelecer quanto antes uma relação afetiva
entre a criança e o livro. A coordenadora pedagógica da Comunidade
Educativa Cedac e do Laboratório de Educação Sandra M. Murakami Medrano e
a formadora de professores na ¿Comunidade Paraisópolis Cristiane
Tavares analisam o assunto.
Livro ilustrado não ficcional uma outra experiência leitora
por Sandra M. Murakami Medrano
por Sandra M. Murakami Medrano
Ao pensarmos em livros para crianças, normalmente nos vêm à lembrança
livros ficcionais, ou os chamados literários. Porém, ao nos determos um
pouco mais sobre os livros disponíveis, verificamos que não somente os
ficcionais encontram-se no rol de ótimos livros para encantar os
pequenos e possibilitar a eles a entrada na leitura. Que outros livros
são esses? Por ora os denominaremos não ficcionais, para distingui-los
dos primeiros. O que nos interessa, aqui, é propor uma reflexão sobre
que livros não ficcionais seriam boas portas de entrada para leitura das
crianças e quais contribuições esses livros podem trazer para a
formação dos leitores iniciantes.
Apesar dessa distinção entre ficcionais e não ficcionais, é preciso
considerar que a fronteira entre esses dois modos de conceber os livros é
bastante fluida e movediça. Para saber de que livros estamos falando,
vamos nos valer da ideia de continuum para compreender que estes podem
se posicionar ao longo de um eixo em que, de um lado identificamos os
livros informativos que organizam seu conteúdo como verbetes
enciclopédicos, como, por exemplo, o livro Procura-se! Galeria de
animais ameaçados de extinção (Vários autores/Mario Bag, Companhia das
Letrinhas/Ciência Hoje das Crianças, 2007), em que os dados científicos
são apresentados de maneira criteriosa ao longo do texto, acompanhado de
imagens que identificam visualmente o animal. Do lado oposto desse eixo
contínuo, poderíamos encontrar o livro Princesas esquecidas ou
desconhecidas (Salamandra, 2008), de Philippe Lechermeier e Rébecca
Dautremer, que parte de um conteúdo ficcional, mas o apresenta
utilizando o formato enciclopédico, com definições, exemplos, esquemas,
índice temático e alfabético, típico das enciclopédias mais renomadas.
Ao longo desse eixo poderiam estar diferentes livros que, ora mais
estritamente informativos, ora misturando aspectos ficcionais, mas se
valendo das características desses outros, formam um livro distinto das
ficções propriamente ditas, mesclando-se com elas, no entanto, em um dos
extremos. Podemos também pensar em outro continuum que parte de um
extremo definido pelos livros informativos sem enredo narrativo, como,
por exemplo, os livros como A joaninha (Melhoramentos, 1991), da coleção
Minhas primeiras descobertas, em que os dados sobre como é o inseto,
sua constituição, alimentação etc. são apresentados por meio de imagens
que se compõem a partir da sobreposição de páginas (uma opaca e outra
transparente) e informações científicas ao longo do livro.
No outro extremo desse contínuo poderíamos encontrar os livros de
Babette Cole, como Mamãe nunca me contou (Ática, 2003), livro que – como
indica Ana Garralón – “combina ¿um texto mais ou menos ficcional, isto
é, pessoal, com uma estrutura interna ordenada e uma informação que,
apesar do tom às vezes informal, não abre mão do rigor”. Nesse segundo
continuum – que vai do livro informativo sem enredo narrativo ao
informativo com enredo narrativo –, poderíamos localizar na sequência
vários outros títulos partindo de um ponto a outro, como o livro
Adivinhem onde vivem (Brinque Book, 2012), de Liesbet Slegers; Lá em
casa somos (Cosac Naify, 2012), de Isabel Minhós Martins e Madalena
Matoso; Minha casa azul (SM, 2009), de Alain Serres e Edmeé Cannard; Eu
cresci aqui (Pequena Zahar, 2012), de Anne Crausaz; os livros de Peter
Sís: O muro (Companhia das Letrinhas, 2012), O mensageiro das estrelas
(Ática, 1999), A árvore da vida (Ática, 2004); alguns livros que contam
a vida de personagens conhecidos: Frida (Cosac Naify, 2004), de Jonah
Winter e Ana Juan; O menino que mordeu Picasso (Cosac Naify, 2011), de
Antony Penrose; Jemmy Button (Pequena Zahar, 2012), de Jennifer Uman
Valério Vidali e Alix Barzelay; Lineia no Jardim de Monet (Salamandra,
1992), de Christina Bjõrk e Lena Anderson; Diferente como Channel (Cosac
Naify, 2009), de Elizabeth Matthews; Um Outro País para Azzi (Pulo do
Gato, 2012), de Sarah Garland; É um livro (Companhia das Letrinhas,
2009), de Lane Smith; e Para que Serve um Livro? (Pulo do Gato, 2011),
de Chloé Legeay.
Essa pequena seleção não esgota os títulos que poderiam compor esse
contínuo, mas tem a intenção de colaborar na compreensão da ideia de um
universo de livros que são concebidos com uma diversidade de aspectos
que se movem de uma ponta a outra dependendo das características aqui
destacadas. Isso nos mostra que, tanto no que se refere ao extremo de um
livro com texto ficcional e formato enciclopédico como a um livro que
parte de uma narrativa com toque ficcional, mas com conteúdo científico
ou histórico, essa divisão entre ficção e não ficção é bastante tênue. A
análise dos continuuns permite, ainda, visualizar um conjunto de livros
com algumas qualidades distintivas ao longo de sua distribuição. Mas
qual a contribuição desses livros não ficcionais para a formação de
leitores e que experiência de leitura possibilitam?
Louise M. Rosenblatt, em La Literatura como Exploración (Fondo de
Cultura Económica, 2002), traz o conceito transacional da leitura, em
que propõe a superação da visão dualista de pensar o texto e o leitor na
qual ou o leitor atua sobre o texto (leitor interpreta o texto) ou o
texto atua sobre o leitor (leitor responde ao texto), para uma leitura
transacional, em que “o leitor infunde significados intelectuais e
emocionais à configuração de símbolos verbais e esses símbolos canalizam
pensamentos e sentimentos”.
Com essa forma de compreender a leitura, podemos considerar que o
sentido não está só no texto ou só no leitor, mas na relação entre
ambos, numa contribuição contínua para a construção de significados.
Assim, não é o texto em si que define como pode ser lido, mas é na
relação entre as intenções e conhecimentos do leitor e o conteúdo do
texto que se dá a leitura, a transação.
Essa leitura pode, segundo Rosenblatt, ser mais estética ou mais
eferente. Abordando sinteticamente aqui, a postura estética na leitura
estaria mais relacionada aos aspectos afetivos e a postura eferente,
centrada principalmente em selecionar e abstrair analiticamente as
informações. Pensando na formação de leitores, essas colocações nos
remetem à necessidade de proporcionar às crianças, desde muito cedo,
condições para que possam desenvolver a capacidade de adotar ambas as
posturas para serem leitores autônomos e críticos ao lidarem com a
diversidade de leituras que enfrentarão vida afora.
Uma das maneiras de possibilitar às crianças espaço para essa
experiência leitora é oferecendo livros que, segundo Ana Garralón, “são
excelentes para criar pontes entre essas duas formas de ler, estética e
eferente, auxiliando os leitores a indagar o que significa uma leitura
prática enquanto lhes oferecemos textos que lhes brindam leituras
estéticas sugestivas”. Exemplos desse tipo de livro são alguns dentre os
chamados livros álbum (livro ilustrado/álbum ilustrado/picturebook –
denominação em construção no Brasil), como os já citados livros de Peter
Sís ou o também citado Minha Casa Azul. Esses livros trazem informações
históricas ou científicas, por meio da amálgama texto-imagem-suporte,
típico do livro álbum, que possibilita ao leitor ora assumir uma postura
mais eferente ao analisar as informações, ora mais estética ao se
envolver com as imagens, as ideias e os sentimentos proporcionados pelo
livro.
A formação do leitor pode, dessa forma, se dar também por meio de um
livro não ficcional, a partir de uma experiência leitora distinta, uma
leitura que abre para novas questões, instiga novos conhecimentos,
desafia intelectualmente o leitor, de forma a colocá-lo numa posição
ativa de construção de conhecimentos. Garralón, Ana. “Ficção e
informação: tendências nos livros informativos”. Revista Emília:
revistaemilia.com.br/mostra.php?id=126
“o amálgama texto-imagem-suporte, típico do livro álbum,
(...) possibilita ao leitor ora assumir uma postura mais eferente ao
analisar as informações, ora mais estética”
Sandra M. Murakami Medrano é pedagoga e mestre em didática pela
Universidade de São Paulo (USP), coordenadora pedagógica da Comunidade
Educativa Cedac e do Laboratório de Educação e colaboradora da revista
Emília
Livro ilustrado: um “concerto polifônico” para o deleite do leitor
por Cristiane Tavares
por Cristiane Tavares
A expressão “concerto polifônico” foi usada pelo autor e ilustrador
Renato Moriconi para definir o livro ilustrado. Moriconi, em parceria
com o escritor Ilan Brenman, recebeu os prêmios “melhor livro-imagem” em
2011, com Telefone sem Fio, Companhia das Letrinhas, e “melhor livro
para a criança” em 2012, com O Alvo, Editora Ática, pela FNLIJ (Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil). Segundo ele, “há no livro
ilustrado três línguas diferentes – a palavra, a imagem e o projeto
gráfico ou arquitetura do livro – que, se bem usados, fazem dele um belo
concerto polifônico, com sons e silêncios próprios”. Exemplo disso pode
ser observado no próprio livro O Alvo, selecionado para integrar o
Catálogo White Reavens 2012 de uma das mais importantes bibliotecas
especializadas em literatura infantil e juvenil do mundo, a
Jugendbibliothek de Munique, na Alemanha.
Em O Alvo, de imediato o leitor se depara com uma flecha que atravessa a
capa vazada e o convida a seguir o tracejado livro adentro. O suporte é
criativamente atingido como alvo que se expande também nas guardas, ao
abrirmos o livro. Enquanto o texto verbal apresenta uma narrativa de
origem judaica recontada sem grandes alterações, com a linearidade
clássica do enredo comum às narrativas de tradição oral, a ilustração
brinca com a busca certeira por um alvo, apresentando-o a cada página em
um lugar diferente e abrindo para a plurissignificação: variedade de
pontos de vista, importância da perspectiva, flexibilidade necessária
para encontrar respostas a perguntas essenciais, dentre outras.
Partindo da metáfora do concerto proposta por Moriconi, podemos
entender como atributo principal do livro ilustrado a integração de
diferentes vozes que compõem um todo indissociável, produtor de sentido.
Diferente do que ocorre nos chamados livros com ilustração, nos livros
ilustrados (picturebook) também conhecidos como livros-álbum, a imagem
não é mero complemento do texto, o suporte não é simples receptáculo e o
projeto gráfico tem forma e conteúdo. Todos esses aspectos conversam
simultaneamente com o leitor, convocando para uma “desautomatização do
olhar” (Chklovski, 1976). Ler, reler, ver e voltar a ver são movimentos
comuns diante de um livro ilustrado: “O livro álbum possibilita uma
atenção ao objeto livro em sua plenitude – os formatos, as cores, as
informações omitidas e complementares no texto e na ilustração. Ao ler
Quero meu chapéu de volta, de Jon Klassen, WMF Martins Fontes, para
crianças pequenas, por exemplo, já é rotineiro o voltar das páginas para
o início para melhor compreender a trama”, relata Magno Rodrigues
Faria, pedagogo, educador de biblioteca e contador de histórias no
Instituto Acaia, em São Paulo.
Tanto o estranhamento provocado pelo desafio de deslocar o olhar linear
rotineiro diante do objeto livro como as constantes releituras que
muitas vezes esse tipo de livro requer acionam uma atividade leitora
pautada na interação não apenas entre o leitor e as diferentes
linguagens, mas também entre os leitores. Depois de ler um bom livro
ilustrado, é preciso falar sobre o que foi lido, visto, percebido,
provocado. Comentar a leitura para melhor se apropriar dela. A
polifonia, portanto, caracteriza tanto a composição do livro ilustrado
como as experiências leitoras que proporciona: o sentido se constrói,
interna e externamente ao objeto, mediante essa multiplicidade de vozes
que o circundam.
Como leitora, apreciadora e “colecionadora” de livros infantis, é assim
que Ana Claudia Rocha, diretora do Centro de Estudos e Projetos em
Educação Movimenta, define sua relação com o livro ilustrado: “É muito
comum encontrar-me com o encantamento das pessoas diante desses livros
múltiplos, observando como o jogo entre palavra e imagem ganha a cena da
comunicação mais fluida e ágil, compartilhada em outro canal, que não o
da densidade singular da leitura solitária. O contato com esses livros
quando estamos em situação coletiva provoca um verdadeiro “frisson”,
tamanha a reverberação!”.
Se falar sobre o livro ilustrado após sua leitura é quase uma condição
para a construção do sentido, outra característica emerge do contato do
leitor com o objeto: sua natureza dialógica. Como já vimos, as
linguagens verbal e visual estão em necessário diálogo com o suporte. Do
mesmo modo, as relações que o leitor estabelece durante a leitura se
amplificam e ressignificam à medida que uma conversa sobre o livro
acontece. O aspecto dialógico se estabelece, sobretudo, no espaço entre o
dito e o não dito, de onde brota a arte: “Vejo o livro-álbum como um
objeto artístico a partir do qual se constroem vários significados, se
realizam conexões, relações intertextuais e se estabelecem certas
rupturas com as técnicas narrativas habituais. Nesse tipo de livro as
ilustrações sugerem mais do que dizem, insinuam mais do que revelam e
reinam a sutileza, a ironia...”. É assim que Fernanda Glaessel Ramalho,
pedagoga que trabalha com formação de professores, define o livro
ilustrado.
Na escola, à leitura compartilhada de um livro ilustrado, mediada pelo
professor, quase sempre se segue uma conversa apreciativa durante a qual
a escuta da percepção do outro repercute na experiência leitora de cada
um. Até mesmo a leitura de uma nova versão para um dos mais conhecidos
contos de fadas pode suscitar leituras surpreendentes, quando
apresentada sob a forma de livro ilustrado. É o caso de Uma Chapeuzinho
Vermelho, de Marjolaine Leray, publicado em 2012 pela Companhia das
Letrinhas. No livro, os papéis do lobo mau e da Chapeuzinho
subvertem-se. A ilustração funciona como contraponto irônico ao
apresentar, em traços simples, a lápis, nas cores preto e vermelho, uma
Chapeuzinho frágil e ainda menor que o diminutivo que já a acompanha,
contracenando com um lobo faminto e viril. Fragilidade por trás da qual
se esconde a astúcia feminina responsável pela surpresa revelada ao
leitor apenas nas últimas páginas.
Como objetos artísticos, os livros ilustrados podem converter-se,
ainda, em “campo de experimentação para autores e leitores”. É o que
pensa a premiada autora e ilustradora mineira Angela Lago: “... somamos o
texto e a imagem ao próprio suporte que é o livro. Podemos usar o
ângulo da página na construção dos desenhos, ou a passagem das folhas
como um corte em que se impõe a narrativa. De alguma maneira, autores e
leitores do livro-álbum nos qualificamos para ler também os suportes com
as suas particularidades. Entender o livro como mídia nos faz
aprofundar a compreensão dos diferentes diálogos possíveis entre as
várias linguagens”.
Exemplos como os citados por Angela Lago estão na própria origem do
livro ilustrado contemporâneo. Autores, ilustradores e editores
audaciosos romperam com estereótipos predominantes sobretudo nos livros
destinados ao público infantil e apostaram no deleite estético de um
leitor sem idades. Caso do clássico Onde vivem os monstros, de Maurice
Sendak, publicado originalmente em 1963 e editado no Brasil em 2009,
pela CosacNaify, mesmo ano em que foi adaptado para o cinema por Spike
Jonze. Ao trazer para as páginas de um livro o universo do inconsciente
infantil em toda a sua complexidade, condensando-o em uma breve e
intensa aventura narrada verbal e visualmente, Sendak mostrou que é
vasto e ilimitado o campo da experimentação artística.
“As relações que o leitor estabelece durante a leitura se
amplificam e ressignificam à medida que uma conversa sobre o livro
acontece”
Cristiane Tavares é mestre em Literatura e Crítica Literária pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), trabalha com
formação de professores na Comunidade Paraisópolis e colabora para a
revista Emília
Fonte: Revista e online/SESC
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